Coelho Neto, o mistério da esfinge

Thomas Alves Häckel

RESUMO: O artigo tem por objetivo o estudo do romance Esphinge (1906), de Coelho Neto, levando em consideração os aspectos da modernidade, os processos de modernização e a importação e absorção dos inventos óticos no cotidiano dos indivíduos. Pretendo analisar se a confluência de mecanismos estéticos presentes no romance não está a serviço de uma maneira de narrar coerente com a sensibilidade moderna, apresentando sustos, riscos e fascínios comuns aos novos leitores. Tudo aquilo que foi dito como superficial, então, não teria como provocação o contato com o outro corpo, o do leitor? Sugiro que a obra de Coelho Neto é um corpo-romance, em contato com quem o lê, no intuito de suscitar sensações próximas às predominantes no cotidiano das pessoas com os recursos de modernização nas primeiras décadas do século XX.

PALAVRAS-CHAVE: Coelho Neto; sensibilidade moderna; escrita pictórica.

ABSTRACT: This article’s objective is the study of Coelho Neto’s novel Esphinge (1906), taking into consideration the modernity aspects, the modernization processes, and the importation and absorption of the optical invents in the individuals’ everyday life. I intend to analyze if the aesthetic elements’ confluence in the novel is not working as a way to coherently narrate the modern sensibility, presenting scares, risks and fascinations, usual to the new readers. Therefore, wouldn’t everything that was said in a superficial way have, as a provocation, the contact with the other body: the reader? I suggest that Coelho Neto’s literary work is a novel-body, in contact with who reads it, being its aim to give rise to similar sensations to the ones that were predominant in the everyday life of people, with the modernization resources of the early decades of the XX century.

KEYWORDS: Coelho Neto; modern sensibility; pictorial writing.

 

COELHO NETO NO PALCO DA CRÍTICA

Um dos nomes mais importantes e esquecido do período da belle époque carioca, atualmente, tanto pela crítica quanto pelos leitores, é Coelho Neto. O escritor maranhense, participante da vida ativa do Rio de Janeiro, teve uma vasta obra literária, da qual constam crônicas, textos teatrais, críticas e romances, como Sertão (1896), A Capital Federal (1893), A Conquista (1899), Turbilhão (1906), Esfinge (1908), Rei Negro (1914), Fogo Fátuo (1929) etc.

Foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras e presidente da mesma no ano de 1926. Sua figura ficou, ao longo do tempo, marcada por um modo de fazer literário, fruto da heterogeneidade estética do período, em meio à efervescência da vida literária carioca.

Suas obras e de outros escritores foram classificas por Lúcia Miguel-Pereira (1950) como “sorriso da sociedade”, pois se caracterizavam por uma visão de literatura não como debate sobre a condição humana, mas sim manifestação do bem-estar social. Tais escritores, cujas obras são abarcadas por esse conceito, portanto,

Não descem de ordinário às regiões onde moram as dúvidas, nem tampouco se alçam a debater os problemas eternos; a inquietação que de longe em longe deixam transparecer tem sempre um ressaibo artificial. As grandes questões do destino humano interessam-nos menos do que o quotidiano […]. (MIGUEL-PEREIRA, 1950, p. 245)

A autora, ao tratar especificamente de Coelho Netto, coloca como problema a questão formal e o equilíbrio entre ideia e expressão. Ela diz que o autor priorizou a arquitetura verbal em detrimento da emoção, do conceito, do processo de escrita e da representação literária. Para a crítica, as paisagens se coloriam excessivamente, os diálogos tornaram-se eriçados pelo acúmulo de locuções, tudo apenas no intuito de “amontoar vocábulos” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, p. 252), fazendo do escritor um “artífice” produtor de “literatice”: em vez de dar espaço a sua capacidade criadora, tornara-se apenas executor obsessivo de uma escrita de efeito, em prol de um transbordamento verbal em sons e imagens.

Talvez se possa sintetizar a personalidade literária de Coelho Neto dizendo que, a despeito da sua inegável vocação intelectual, foi vítima de um terrível engano: tomou o meio pelo fim, confundiu expressão e ideia, instrumento e concepção. Deixou-se dominar pela palavra, em lugar de dominá-la. (MIGUEL-PEREIRA, 1950, p. 251)

De acordo com Lúcia Miguel-Pereira, essa falta de falta de perspectiva crítica, por parte do escritor, também o impediu de se manter fiel a um único estilo literário. Há livros próximos ao romance romântico, tradicional, realista, outros com inclinações simbolistas, regionalistas, de aventuras, até a presença do naturalismo e parnasiano.

Maurício Silva (2011) propôs conceitos bastante semelhantes aos de Lúcia Miguel-Pereira – conhecidos como “literatura academicista” e “formalismo estético” –, apoiado no livro de Alfredo Bosi (1969), trata da estética conservadora advinda do período parnasiano, mantida nas primeiras décadas do século XX, “como uma cultura acadêmica e bacharelesca, fundada na erudição jurídica e gramatical” (BOSI, 1969, p. 115). Era preciso cumprir um determinado número de características como

Apego ao formalismo parnasiano, que se excedia na busca de um vocabulário raro e precioso; a “tese”, abonada pela maior parte dos academicistas, de que a verdadeira arte de ficção se constrói por meio de um linguajar escorreito, ideário […]; a “necessidade” de uma expressão literária diferenciada por parte dos acadêmicos, que se pautavam pela ideologia do escritor como um aristocrata da arte; o esforço em tornar concreto um dos pressupostos estéticos da Academia Brasileira de Letras, qual seja, a supervalorização da Língua Portuguesa como critério de excelência artística. (SILVA, 2011, p. 100)

Coelho Neto seria o representante máximo desse modelo de literatura. Teria uma capacidade de produção linguística típica da Academia Brasileira de Letras, além de proximidade com o parnasianismo. O formalismo, recurso estético-literário, apontado pelos críticos, evidenciava-se na linguagem feita com preciosismo vocabular, com purismo gramatical e com rebuscamento do vernáculo (SILVA, 2011).

A busca pela palavra difícil seria, segundo os críticos, uma marca retórica de toda essa literatura preciosista, dada até mesmo pelo lugar presente do momento literário, com os olhos voltados para a Europa e uma vontade de estabelecer uma “alta literatura” que via na sofisticação linguística uma forma de consagração.

Era problemático para os críticos, também, o poder plástico com o qual Coelho Neto envolvia suas palavras. O uso exacerbado do vocabulário de efeito imagético daria às referências estilísticas uma capacidade de descrição grandiloquente da paisagem, com uma exuberância sem muita referência realista. Assim, entre imagens idealizadas, as descrições de Coelho Neto seriam consideradas como extremamente fantasiosas (MIGUEL-PEREIRA, 1950) e assemelhavam-se bastante a cenografias com uma presença entre o onírico e o fantástico, distanciando-se da tendência naturalista ou realista da época.

Já Brito Broca (1958) diverge em parte da crítica, apresentando um estudo mais favorável ao escritor. Para ele, grande parte da hostilidade que Coelho Neto recebeu deve-se ao fato do desconhecimento da obra ou ao conhecimento falho e superficial ao analisar um corpus específico em detrimento de uma leitura mais abrangente e analítica de seus livros. É justificável esse posicionamento, porque a ampla produção do escritor, somada à irregularidade na classificação de seus textos, facilita os juízos apressados acerca do autor. Além disso, a forte presença do movimento modernista, com a negação do que se produzia no Rio de Janeiro, deu um novo panorama para a historiografia literária brasileira, colocando autores como Coelho Neto como uma figura a ser combatida.

O crítico defende o escritor perante os argumentos mais comuns contra a sua obra, propõe outro olhar sobre as obras de Coelho Neto além do vocabulário preciosista, do linguajar refinado e da prolixidade: seus usos estilísticos não eram sempre predominantes e sua arte não era feita somente de tais recursos.

As paisagens marcadas pelas impressões oníricas, com grande presença da imaginação, também não precisam ser vistas necessariamente como um defeito, mas sim como uma escolha estética do escritor no ato de narrar. Nada impedia, em sua obra, de perceber a presença da cidade e do sertão, mesmo que por meio de uma visão metafórica, sem a necessidade de enveredar pelos caminhos da figuração realística.

Os textos críticos sobre o autor são, portanto, flutuantes entre uma postura mais amena ou uma mais agressiva em relação à produção. Costumam focar em alguns elementos específicos em detrimento de outros, além da escolha específica de romance, fazendo um apanhado que, dependendo da visão com a qual o crítico trabalha, cria-se um Coelho Neto diferente.

2 O MISTÉRIO É O (OU NO) ROMANCE?

Todos aqueles anos pensara na literatura (o que a reclusão, a categoria social, o sexo tornam desculpável) como alguma coisa selvagem como o vento, ardente como o fogo, rápida como o raio; uma coisa errante, incalculável, insólita […]. (WOOLF, 1978, p. 157)

Como constatei na seção anterior, a flutuação da crítica impossibilita qualquer visão sobre o autor, senão a leitura própria de sua obra por quem pretende estudá-la. Por isso, escolhi o romance Esfinge, publicado em 1908. A razão dessa escolha é o seu caráter ambíguo e complexo: trata-se de um enredo fantástico, passado no Rio de Janeiro, numa pensão coordenada por Mrs. Barkley, onde vive um sujeito que logo se distingue por sua estranheza. Seu nome é James Marian, e tal característica se dá por ser visto como um homem com o rosto de uma mulher, atributo crucial para o desenvolvimento da narrativa. A seleção do romance é feita, também, pela imprecisão formal, pela linguagem estranha – comumente vista pela crítica como preciosismo gramatical – e pelas questões que se dão a partir da relação entre o corpo do personagem e o corpo do romance. Isto é, proponho enfrentar não só o personagem James Marian, como também a forma do romance.

Já nas primeiras páginas, o leitor se depara com um texto repleto de imagens, compostas nas ambientações das cenas quase cenográficas, mostrando a preocupação com a plasticidade da palavra. Assim, a obra exercita o refinamento e a sensibilidade do leitor ao afetá-lo sensorialmente por meio da escrita, pictórica. É com o uso de elementos sinestésicos, de adjetivos e de construções fantasmagóricas que a mensagem é transmitida para o leitor. Elas dão cor ao romance:

Brandt abriu uma das persianas e logo um ramo de jasmineiro, estrellado de flores, inclinou-se com intimidade invadindo o aposento.
O luar parecia de neve.
Fóra, á margem, as arvores faziam um sussurro de sêdas amarrotadas e, a espaços, gritos agudos, lancinantes, maguavam o silencio. Era na vizinhança, uma senhora a rolar gorgeios em falsete hysterico. (NETO, s/d, p. 24)

São perceptíveis as aparições de imagens típicas do romantismo, aprofundadas com estratégias de movimento, cor e som, capazes de transmissão sensorial. As descrições unem-se ao senso de movimento e à hábil maneira de trabalhar o subentendido no momento em que a narrativa sofre cortes, caminhando de uma ideia à outra na ruptura da descrição, aproximando os recursos folhetinescos dos romances românticos àquele mundo construído ali. No trecho acima, os jasmineiros e o luar funcionam como figuras típicas de candura, sugerindo percepção de cor e impressão ao leitor na intenção de transmitir tátil e visualmente as sensações. Ao mesmo tempo, isso se conjuga com o escuro, com o anoitecer, com os jardins que se esgueiram e mostram cenas aterrorizantes, aproximando-se do gótico e namorando com o escuro.

Há, também, além da estética romântica e gótica, uma aproximação com o naturalismo nas descrições físicas relacionadas às expressões de dor, agonia e morte:
Tomei o primeiro bond que descia, ansioso pelo tumulto da vida. Mas toda cidade estava cheia do meu terror.
No escuro das ruas solitárias cruzavam comigo, em desfile aéreo, finas funéreas silhuetas fluidas, halos pairavam ante meus olhos e desapareciam súbito.
Em uma baiuca, perdida em viela escusa, mulheres esbagaxadas, em mangalaça bulhente, os cotovelos fincados em mesas sórdidas, rolando os olhos vítreos, enalnaguecidos pela embriaguez, fumavam, chalravam entre sucios de malandragem noturna, ao som roufenho de uma sanfona que deles premia. (NETO, s/d, p. 93)

A partir dos trechos levantados, noto o interesse na sobreposição de imagens, que lembram escolas literárias (simbolistas, naturalistas, românticas, góticas), mostrando uma hibridez de tendências apresentadas pelo narrador.

Permito-me a pausa para ressaltar o momento da virada do século XIX para o XX em que o livro fora escrito. Um período de mudanças com a modernização e transformações urbanas no Rio de Janeiro, capazes de colocar a experiência subjetiva dos cidadãos em choque com o ambiente. É o que Singer (2004) denomina de hiperestímulo: a busca pela novidade preza por formas cada vez mais luminosas, maiores, expressivas, reproduzindo mais estímulos.

Portanto, a simultaneidade dessas tendências e as tentativas de inovação são trazidas no romance sem uma delimitação rígida, mas com o foco de atingir, pela justaposição delas, o leitor.

Essa simultaneidade reflete-se, também, nas imagens do Rio de Janeiro. Há momentos em que o texto evoca a avenida (e a Avenida Central é a principal figura arquitetônica desta época) não pelo discurso comum e moderno presente como símbolo de progresso, mas pelo seu caráter escuro, sombreado, a exemplo dos passeios do narrador pelas ruas à noite:

A rua, com a longa colunada de palmeiras como a galeria de um templo, era cruzada por passeantes, gozando a frescura. Criados passavam recolhendo do serviço.
[…] Segui vagarosamente em direção à avenida. As palmeiras farfalhavam sem descontinuar. Bonds passavam cheios, em comboios de dois e três. No limiar de uma porta, que abria sobre tenebroso corredor, dois homens, em mangas de camisa, cantarolavam, sentados, as pernas estendidas na calçada.
A avenida larga, quase deserta, com as grandes pérolas das lâmpadas espalhando clarão pálido, estava silenciosa, como adormecida.
De instante a instante um automóvel surgia aos ronquidos, flamejando, ou era um carro moroso que rodava com o cocheiro hirto, os passageiros recaídos, calados, desalentados como se voltassem de um funeral.
Encostei-me à muralha debruçando-me sobre o mar picado de luzes. (NETO, s/d, p. 84-85)

A descrição da avenida é importante para a leitura do romance pela sua condição imagética, desde as palmeiras farfalhando, os bondes cheios até o automóvel flamejando. Ao mesmo tempo em que o personagem caminha extasiado com o movimento e fascínio das ruas, elas sugerem temores e receios, quando ele se depara com o corredor tenebroso e o ronquido do carro. O cenário demonstra outra forma de ver a cidade, com forte presença do que pode se chamar de espírito do tempo, essa ambiência das questões espaço-temporais revestidas de dor, de impotência, de morte, como outra leitura deste progresso que acomete a cidade: “Falamos em progresso e rolamos na morte.” (NETO, s/d, p. 123).

Esse mesmo leitor, por outro lado, já se adaptava também, na segunda metade do século XIX, aos inventos óticos, uma combinação estranha de fantasia e de realidade no cotidiano dos deles. Tal tecnologia, produtora de um senso de magia nos indivíduos, perpassa pelo romance de Coelho Neto a partir de um sensualismo da linguagem, o que trato como o imbricamento de tendências estéticas, sensações e imagens a fim de refinar a sensibilidade do leitor, além de também não passarem despercebidas dentro do enredo. Os personagens comentam, mostrando a discussão entre arte, comércio, fotografia e sua capacidade de diálogo com esse novo mundo:

E Pericles, desde a sopa de legumes até a goiabada, falou da fotografia dos grandes progressos da arte, de uma objetiva que encomendara, de certas palavras de sensibilidade prodigiosa, do futuro fotográfico do mundo: todo o progresso contido entre as quatro paredes negras de uma câmara escura. […] Um ladrão furta-nos a carteira, um assassino crava-nos a faca, záz! O aparelho estampa-lhe, não só a figura, como os movimentos e, no júri, é só desenrolar a fita e eis o monstro projetado na tela da Justiça com um flagrante nas costas. (NETO, s/d, p. 81-83)

Péricles, um dos personagens, aponta como os inventos óticos auxiliaram para fixar a face do “criminoso”. Torna-se visível essa nova forma de domínio principalmente pela fotografia como registro de imagem; assim, atua diretamente não só na resolução de um crime, mas também como forma de arquivar o rosto do indivíduo, capaz de ser estampado e guardado no imaginário. Isso sucedeu numa política de maior normatização da subjetividade e dos corpos, relembrando o artifício tanto do espetáculo como do controle presente na sociedade. Tal debate dentro do romance auxilia a repensar Coelho Neto distanciado das questões trazidas da modernidade, quando esse se mostra consciente que os novos parâmetros da sociedade revolucionam o conceito de imagem para o leitor, exigente de uma nova sensibilidade, agora, moderna.

Observa-se, então, diferentes maneiras de incorporar a ideia de modernidade e sua sensibilidade na literatura: a) o caráter até aqui mostrado de refinamento, de hibridez, e a incorporação dos dispositivos folhetinescos, dando à narrativa um senso de magia e pintura, ao provocar sensorial e sensualmente a linguagem; b) a apreensão mais realista do mundo, incorporando a ideia de arquivar a realidade da fotografia, como é possível perceber no excerto:

O arranjo da sala revelava o artista. Moveis amplos, macios e confortáveis: otomanas e divas de marroquim verde, com almofadas em pilhas, o grande piano Bechstein, de cauda, aberto, e um harmonium. Alto biombo de Jacarandá e sêda, marchetado, figurava em bordados de ouro, fantasmagórica paisagem ribeirinha, cheia de cegonhas voando longínquas ou fincadas numa pata, olhando pensativamente os fios trêmulos d’agua. O tapete fofo, cor de púrpura, afogava os passos calando de todo o ruído. (NETO, s/d, p. 24)

Questiono, portanto, a visão disseminada pela crítica literária de um romance distanciado dos debates sobre modernidade, por apresentar um caráter mais feérico. É nesse próprio caráter, na simultaneidade do tradicional e do novo, que se dá a modernidade. Isso se complementa, também, por duas formas presentes no romance analisado de se atingir o diálogo com o progresso a partir da temática: desejo, perpassado por toda a obra apenas como lances, detalhes e passagens, que está entre as letras do romance, no mais simples olhar para o mundo moderno e, aproximando-se do duplo: “sempre o opposto é preferido – o desejo é ave solta e caprichosa que voa para o contraste.” (NETO, s/d, p. 160). Essa questão especificamente se dá como eixo de maior mistério, e vem com estratégias bem marcadas do romanesco e do romance tradicional, a narrativa dentro de outra narrativa: conta-se a história da criação de James Marian a partir dos manuscritos que ele dá ao protagonista (e narrador) para traduzir.

A narrativa introduzida no meio do romance tem como tema a formação do personagem, por meio da ciência e do misticismo, sob o assunto da androginia.[1] O debate feito pelo duplo é sobre a indefinição sexual do personagem James Marian. Na pensão em que vive com o narrador, ele se apresenta como homem, mas tem uma face extremamente delicada e típica de mulher. O personagem, então, representa uma construção andrógina de indivíduo: passado por uma cirurgia ao juntar dois corpos – um feminino e outro masculino – tornou-se um terceiro indivíduo, dividido entre dois gêneros, com sua identidade instável. Reconstrói-se um sujeito, de subjetividade flutuante e ambígua dentro de um só corpo. O conflito entre as almas é o cerne da modernidade: eis como duas coisas distintas ocupam um mesmo espaço, brigam por sua autonomia mostrando como o caráter moderno cria mecanismos capazes de controlar cada vez mais o imaginário do leitor da época ao tentar sistematizar seu corpo e suas almas.

Seu caráter andrógino caracteriza-se, também, nas figuras de Siva e Maya, símbolos projetados na narrativa como exemplos de perfeição de masculinidade e feminilidade, trazendo ao protagonista a configuração da sua identidade pela visualização para o leitor do sentido dos dois gêneros:

Em toda essa delícia só um dissabor perturbava a doçura do meu viver e vinha das súbitas mudanças, da versatilidade em que se debatia minh´alma indecisa e vária, ora inclinada, com mais afeto, a Siva, ora votada inteiramente a Maya. (NETO, s/d, p. 100)

Ficam visíveis, como estopim da dubiedade, as personificações dadas como dois lados da mesma figura, que vêm crescendo durante todo o relato da adolescência do personagem numa atmosfera vaga, etérea, praticamente indefinida num contexto espaço-temporal. Ela se integra (e se reforça) na própria justaposição de imagens de James Marian, ora em aparições concretas e diante dos personagens pragmáticos da pensão, ora como fantasma, impreciso, vago, caminhando entre os jardins. E, ainda, concretiza-se na projeção do tema místico com um recurso clássico do romanesco, o sono de três meses: “— Se houve prodigio, esse foi o vosso somno de tres mezes. Adormecestes quando ainda os corvos esgaravatavam a neve.” (NETO, s/d, p. 162).

O romance dialoga, novamente, com o romântico, ao apresentar o médico responsável pela androginia, Arhat, como uma metáfora do criador da vida. Essa mistura de estilos e gêneros é própria do romance como gênero, por um lado; e, por outro, produz o aguçamento da sensibilidade do leitor pelas imagens místicas, ao reforçar o novo, que vê o diálogo dentro do corpo-romance de dois tempo-espaços num só lugar, tal qual a modernidade apresenta como construção (BENJAMIN, 1994).

É importante pensar neste recurso do século XIX: o médico, cientista, entre a medicina e o mistério, trazendo para um só corpo atormentado as duas almas:

Recolhi os despojos ao meu gabinete de estudo e, examinando atentamente os corpos, reconheci que um era de menino, a esse a cabeça ficara em pasta informe; o outro, de menina, tinha o peito esmagado; era uma massa de carne espontada de astilhas d´ossos, sangrando aos jorros. […] Tomando a cabeça da menina e adaptando-a ao corpo do menino restabeleci a circulação, reavivei os fluidos e assim rebatendo os princípios, desde o Atma, que é a própria essência divina, refiz uma vida, em um corpo de homem, que és tu. (NETO, s/d, p. 167-168)

O corpo atormentado vive no contexto carioca, vindo da Inglaterra, criado no Oriente. O relato foge ao espaço determinado por meio do vago, incapaz de dar ao leitor as referências para as explicações racionais, mostrando as paisagens sem identificação temporal e espacial, mas repleta de elementos dos contos populares europeus e orientais misturados:

[…] olhávamo-nos em silencio, mas um vulto appareceu entre as heras que recobriam a ogiva da portaria de pedras e bronze e eu nelle reconheci Arhat […] O parque resplandecia em pleno sol […] Faisões alavam-se de ramo a ramo com lampejo das pennas iriadas; […] Ainda que seguissemos por um caminho areado, dondo os meus passos tiravam crepitações, o andar do mestra era silencioso […] Atravessámos vagarosamente uma recolhida alameda cujo saibro micante scintillava […]. (NETO, s/d, p. 164-165)

Isso garante, portanto, a apresentação do diferente ao responder com misticismo à indefinição sexual do protagonista. Define-se, dessa forma, uma estratégia para responder ao problemático, ao tabu por meio do fantástico: o distanciamento do cotidiano do leitor para trabalhar com temáticas complexas e polêmicas. Esse código de afastamento é perpetuado pelo romance pela forma com a qual se lida com a afirmação de um sexo a outro, não natural:

Desde que se manifestaram no corpo refeito os indícios da ação dos sete princípios que agem sobre a matéria, estava evidentemente provada a existência de uma alma. Qual delas seria a vitoriosa: a do menino ou a da menina? (NETO, s/d, p. 171)

“Será o coração viril?” (NETO, s/d, p. 173), indaga Arhat. Denuncia a opção não pela naturalização do gênero, mas sim por uma escolha que trará a James Marian enorme dificuldade, problemas e batalhas internas. Isso mostra o paradoxo moderno: num contexto em que o espetáculo da modernidade permite a flexibilização e a fluidez dos sujeitos, impõe, na mesma medida, controle e vigilância visíveis, quando a temática precisa ser distanciada para que seus leitores a aceitem.

Penso, porém, que há mais a ser desvendado do que só essa estratégia bem delineada do escritor para tratar da duplicidade sexual do personagem. Há outra pergunta da esfinge, marcada pela presença de outro lugar-corpo: o romance e como a figura de James se incorpora na estrutura e maneira de narrar, fazendo da forma o verdadeiro enigma.

O corpo-romance constrói-se, a princípio, como gênero literário próximo ao modelo de romance tradicional, tornando-se perceptível nas marcações de espaço e tempo rígidas, estratégia de um realismo formal (WATT, 1990), visível também no narrador onisciente. A busca pelo detalhamento como forma de construir, por meio da linguagem, uma verossimilhança que melhor representava um relato completo e autêntico da experiência humana é concomitante e até mesmo substituído pelo maravilhoso apoiado no romanesco com os recursos imagéticos. A justaposição de episódios sobre James Marian funciona em uma lógica própria, com a violação das leis naturais, estabelecida no papel do personagem pela construção das suas expressões de dor e de duplicidade, postas à prova e sempre atestadas e comprovadas, como um herói folhetinesco. Nesse caso, porém, como um conflito de almas, somam-se ao sombreamento sensual, expresso como estratégia literária com a qual o narrador narra:

Uma noite, estava eu escrevendo, quando me pareceu ouvir gemidos, depois o baque de um corpo, nos aposentos do inglês. Puz-me atento, á escuta, mas como os gemidos continuassem sahi ao corredor, adiantei-me até a porta do salão. Estava aberta, havia luz. Os gemidos cessaram e eu já me decidia a voltar quando vi aparecer mister James, mais lívido que nunca, os olhos imensos, alargados com expressão de pavor, a boca entreaberta, o alvo e formoso pescoço nú até a golla baixa da camisa de sêda. (NETO, s/d, p. 20)

Quando entrei do ar pura da noite para o ambiente morno da casa logo senti-me envolvido no cheiro acre das fumigações e dos acidos e, aturdido, estonteado, segui pela penumbra silenciosa da sala, com o gaz em chamma de bigilia, atravessei o corredor, subi a escada até os meus aposentos com a impressão de ir caminhando ao longeo da galeria funareria de um jazigo. (NETO, s/d, p. 152)

4 O ENIGMA FINAL

Seria fácil classificar esse romance como “literatice” (MIGUEL-PEREIRA, 1958), partindo das paisagens universais e feéricas, recursos empregados de forma ostensiva. Porém, é preciso lembrar que há uma função anterior na obra que difere de todos esses posicionamentos da crítica: pintar um quadro com as palavras. Os recursos folhetinescos, romanescos, são coerentes aos sustos, riscos, fascínios e medo, modos de percepção dessa modernidade. Essa textura literária composta de impressões vindas de aspectos culturais, efeitos dos inventos óticos e tecnológicos e a sensibilidade nas ruas e atitudes, nas falas dos personagens, na visualidade da descrição dos cenários, no aspecto cinético das cenas e do narrador. Há de se notar, então, a multiplicidade espaço-tempo presente dentro do corpo do livro, formado, entre outras coisas, no diálogo entre a tradição e a novidade.

Essa profusão de recursos estéticos mostra o verdadeiro mistério da Esphinge. O que foi considerado superficial não seria a sensualidade na linguagem, a exploração de recursos e estratégias visuais, cinéticas e até quase táteis, para atingir a sensibilidade do leitor? Não seriam recursos, portanto, menos superficiais e mais coerentes com as exigências e o hiperestímulo da modernidade? Os ditos “sorriso da sociedade” e “formalismo estético” não seriam a necessidade e o desejo de pensar a literatura “como alguma coisa selvagem como o vento, ardente como o fogo, rápida como o raio; uma coisa errante, incalculável, insólita”? (WOOLF, 1978, p. 157).

Por meio de estratégias romanescas do folhetim, de escolha do tema polêmico, construído por meio de ambiguidades e penumbras, capazes de colorir as palavras para o público-leitor, é preparado um corpo-romance imagético e sensual. Todo o hibridismo e a simbiose estética das sobreposições têm como provocação o contato com o outro corpo, o do leitor, afetando-o com uma linguagem sinestésica, cinética, provocativa, criando a sensação de magia e de encanto que predominava no cotidiano das pessoas com os recursos de modernização.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império em Baudelaire. In:______. Obras Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BROCA, Brito. Coelho Netto, romancista. In: NETO, Coelho. Obra seleta. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar LTDA., 1958. v. 1.

BOSI, Alfredo. O Pré-Modernismo. São Paulo: Cultrix, 1969.

MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Coelho Neto. In:______. Prosa de ficção (de 1870 a 1920). Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1950.

NETO, CoelhoEsfinge. Livraria do Porto: Porto, s/d.

PLATÃO. Diálogos: O Banquete, Fedon, Sofista, Político. Trad. de José Cavalcante de Souza, Jorge Peleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972. v. 3.

SILVA, Maurício. Literatura academicista e formalismo estético na passagem do século: a prosa parnasiana. Linha d’Água, n. 24, v. 1, p. 95-109, 2011.

SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNAY, Leo; SCHARTZ, Vanessa (Org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac e Naify, 2004.

WATT, Ian. A ascensão do romance. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

WOOLF, Virginia. Orlando. Trad. Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

Data de envio:

[1] A androginia vista como uma metade masculina e metade feminina. Remeto a ”O Banquete”, de Platão, com a seguinte passagem: “[…] três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino […] e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos […]” (PLATÃO, 1972, 28). Vale lembrar que há uma retomada à Antiguidade Clássica na estética de Coelho Neto, justificando não só a androginia, mas a importância da noite.