Itinerários, Sonhos e Memórias em Ablativo

Lorraine Ramos Silva

TESTA, Enrico. Ablativo. Tradução de Patricia Peterle, Silvana de Gaspari e Andrea Santurbano. São Paulo: Rafael Copetti Editora, 2014.

 

Ablativo, uma palavra  tão pequena e ao mesmo tempo tão ampla, é um caso da declinação do latim e de outras línguas, que exprime e indica tempo, lugar, modo, faculdade de tirar, extrair, privar, indicando afastamento ou procedência, introduz vários complementos, inclusive o de  companhia.

A obra de Enrico Testa[1], recém-publicada em edição bilíngue – italiano e português – por Rafael Copetti Editor, com tradução dos professores Andrea Santurbano, Patricia Peterle e Silvana de Gaspari, brinda os leitores brasileiros com essa coletânea de poesias contemporâneas, as quais nos trazem, através de uma gramática não normativa, flashes da vida, cenas cotidianas, situações inesperadas e paisagens diversas.

Ablativo é um caso latino que não indica o “eu”, nem a posse, não marca as expectativas, nem as exclamações, mas sintetiza uma remoção ou descolamento, uma saída de um lugar ou de um estado: uma passagem em que o sujeito já não é um fim em si mesmo, e como, de repente, encontra para si outro destino. Um título que responde bem ao livro de Enrico Testa, cuja poesia é altamente ablativa, sempre radicada nos nós da ausência ou da perda.

Essas questões, aqui, são refletidas em uma variedade de tons e cadências: a sensação do fim, a sucessão das gerações, a pequena cena de família, mas também pausas inesperadas de silêncio, interlúdios da natureza e, por vezes, os anúncios suspeitos de alegria.

É uma poesia corporal, cheia de lembranças “fantasmagóricas”, mas concreta e com uma veia essencial e ironicamente brilhante, com alto nível de eficiência, ressonância e memorização.

Um atributo necessário e que se deve considerar na leitura dos poemas é o entrelaçamento entre a atividade criativa de Testa e o seu trabalho como professor universitário e crítico literário. Na verdade, Testa consegue, de maneira suave como quem tece as linhas de uma obra de arte, retirar, através da tinta da pena, suas memórias e, delas e com elas, abrir e expandir um mundo que até então estava dentro de si e que agora divide conosco, seus leitores. Seus poemas são para serem lidos com a alma e com a imaginação, como o pequeno poema: “o cãozinho na corrente/ o gato perseguindo a lagartixa/ as sempre-vivas floridas no barranco/ o pôr-do-sol na vidraria…/ Quadros comuns./ Mas, então, por que nos enternecem/ até as lágrimas?/ Talvez porque ali brilhe/ algo de nosso e de perdido/ que voou veloz por entre as sombras?” (2014, p.13)

Os poemas de Ablativo falam de movimento, deslocamento, ritmo, rastros, pegadas, cheiros, cores, odores, sons e sabores… “Pode ser que seja o som da neve que cai ou o desabar de um/ tronco ou ainda o baque de um pássaro sobre o calçamento. Há/ infinitas possibilidades de descobrir o que é. E geralmente é o/ esmigalhar da melancolia humana no odor dos milênios que de/ repente se respira.” (2014, p.107)

Testa, ao deslocar o ponto de observação para o outro, faz com que seus versos deem universalidade aos gestos e experiências, colocando-os ao alcance de nossa consciência, como neste poema: “eis os que dormem esvaídos / sempre em alerta / amontoados nos campos / fechados nos aeroportos / ou agachados em fossas / – expulsos dos seus apressados / leitos apenas mornos”. (2014, p.29)

Além disso, é possível que o poeta se dispa de seu “asfodélico sé” e limite uma imagem narrativa, cuja finalidade será a de redescobrir a figura evocada ou encontrar uma pista, uma brecha, na compreensão de um evento como: “podia ser Mântua / com suas praças, suas ruas / o esfumaçar da periferia no campo / e o cintilar do lago / entre as fileiras dos álamos distantes. / Era na realidade um sabe-se deus onde… / gloriosamente entre os insultos / serenando-se / ali o meu asfodélico eu / pouco a pouco se despia / de pétalas sépalas vaidades / perfume e raiva.” (2014, p.17)

Os poemas “Do cais de Alcântara, percorrido em diferentes momentos, no/ mais das vezes invernais ou primaveris mas sempre posteriores/ a alguma festividade […] Não é o caso de se per- / guntar qual dos dois lugares estimule o reconhecimento do ou- / tro. […] É de se pensar que o presente lugar conceda o seu/ sentido a quem o interroga somente no arco estendido pelo mo- / vimento que o une a alhures.” (2014, p.109) e “nas intermináveis avenidas / da periferia de Sofia / onde nos deixou o ônibus / sobreviventes de Bačkovo, / zelotas municipais / queimavam folhas e arbustos. /Perdidos e envolvidos pela fumaça / o chefe deles, antes irado, / depois teve piedade de nós / e da sua piedade sorriu / com um sorriso / (metal e ouro alternados / nos incisivos) / lúcido e impiedoso” a(2014, p.131), entre outros do autor, muitas vezes nos fazem lembrar a figura de um flâneur, no sentido do verbo francês flâner, que significa “passear”, e para o qual Baudelaire desenvolveu o significado de “uma pessoa que anda pela cidade a fim de experimentá-la”.

Testa transmite, através dos seus poemas, ser um observador apaixonado, que se sente à vontade ao transitar entre o numeroso e o ondulante, entre o fugidio e o infinito, que estar fora de casa, como em “Breve excursão pela América do Sul” (2014, p.155), é, contudo, sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo, mas não permanecer oculto nele.

Seu estilo não detecta uma poética da abundância, mas também não é minimalista; tende à dissolução da subjetividade, mas não anula a dicção; transmite o sentimento, mas com uma verdade despojada de um resíduo patético.

Em suma, Enrico Testa possui aquele raro equilíbrio que o coloca nas fileiras dos poetas capazes de ouvir a voz interior das palavras e que acredita na propriedade musical reveladora das mesmas, mantendo-se fora da penetrante e “horrível babel de ruídos e conversas” já tão presentes no século passado.

 

[1] Doutor em Literatura pela Università di Pavia e professor de História da Língua Italiana na Università di Genova.