A questão da autonomia no romance hipertextual 253

Alice Garcia Silveira

RESUMO: De acordo com Compagnon (2001), a questão da autoria é um dos pontos mais controversos nos estudos da Literatura. Na crítica literária, nas escolas e até mesmo na Universidade, é comum observar que muito do se que diz a respeito de uma obra está vinculado à vida do autor e ao contexto histórico e social no qual ele estava inserido quando de sua escritura, como se fora uma confidência, conforme  evidenciado por Barthes (1988). Este artigo tem o objetivo de refletir sobre a questão da autoria em um romance hipertextual – 253 – a partir das perspectivas de Roland Barthes, Michel Foucault e Mikhail Bakhtin, a fim de encontrar uma definição sobre o papel do autor e do leitor nessa obra da Ciberliteratura.

PALAVRAS-CHAVE: Romance hipertextual. Literatura. Autoria.

ABSTRACT: According to Compagnon (2001), authorship is one of the most controversial matters in literary studies. Much of what is said about a text is related to its author’s life and historical and social context, as a secret which is delivered by him, according to Barthes (1988). This paper aims to reflect about authorship in a hypertextual novel – 253 – from the perspectives of Roland Barthes, Michel Foucault and Michael Bakhtin, in order to discuss the roles of the author and the reader in this text.

KEYWORDS: Hypertextual novel. Literature. Authorship.

 

A figura do autor nos estudos da literatura é um dos aspectos em que há mais divergência de teorias. Compagnon (2001) afirma que esse é um dos pontos mais controvertidos da Literatura. O autor de uma obra é figura importante desde a idade média, como afirma Foucault (2003). Os textos, livros e discursos começaram a ter uma autoria declarada a fim de punir autores de possíveis discursos transgressores.

É também comum observarmos que, quando lemos a resenha de alguma obra literária na internet, discutimos com colegas sobre determinados livros e até nas aulas de Literatura, quase sempre relacionando diretamente o autor, sua vida e seu contexto político e social à obra. Os críticos literários, professores de literatura das escolas e universidades e até o leitor comum costumam dar rosto a uma obra e atribuir ao autor sua intenção, “como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a sua ‘confidência’” (BARTHES, 1988, p. 58).

A Literatura vem, ao longo dos anos, passando por mudanças na forma como é concebida. Como muitas mudanças causadas por novas tecnologias, o advento da internet trouxe, também, uma nova forma de escrita, a Ciberliteratura, classificada por Viires (2005) segundo um termo genérico que pode ser dividido em três instâncias: qualquer texto que esteja disponível para leitura na internet (i); textos literários não profissionais (ii), que têm como principal referência os Fanfictions, textos produzidos por fãs de determinados escritores e obras que se baseiam nas histórias e seus personagens para criarem suas próprias; literatura hipertextual e cibertexto (iii). O meio digital tem características que possibilitam uma maior interação entre o texto e o leitor. A literatura de hipertexto faz com que a sequência das informações seja multilinear, permitindo que o leitor tenha acesso a diferentes locais, de acordo com as próprias escolhas, colocando em questão, assim, o papel do autor e do leitor nesse tipo de literatura.

Este artigo tem o objetivo de analisar a questão da autoria no romance hipertextual 253, de Geoff Ryman, à luz das teorias de Roland Barthes, Mikhail Bakhtin e Michel Foucault, a fim de refletir a respeito do papel do autor nesse (relativamente) novo tipo de literatura.

Este trabalho está organizado da seguinte forma: primeiramente, serão apresentadas as teorias de Barthes, Bakhtin e Foucault sobre a relação entre o autor e sua obra; em seguida, o romance hipertextual 253 é exposto para, na sequência, ter sua autoria analisada; finalmente, apresentam-se as considerações finais.

A QUESTÃO DA AUTORIA

Nesta seção serão apresentadas as teorias de Roland Barthes, Mikhail Bakhtin e Michel Foucault sobre a autoria, evidenciando seus pontos convergentes e divergentes, e em seguida o romance hipertextual 253, que será objeto de análise deste artigo.

A questão da autoria segundo Barthes, Bakhtin e Foucault

As obras de Roland Barthes, Mikhail Bakhtin e Michel Foucault que dizem respeito à autoria, ainda que abordem diferentes perspectivas, defendem que o autor de uma obra não é, por assim dizer, a pessoa autor. Em “A morte do autor (1988) ”, Barthes afirma que há certa tirania na cultura corrente, em que o autor é o centro da imagem da literatura, com seus gostos, histórias e paixões. Barthes atribui à linguística papel importante na destruição do autor, a partir do seu princípio da Enunciação, dispensando, assim, o papel dos interlocutores. Além disso, defende que um texto, quando recebe uma explicação única, fechada, relacionada exclusivamente ao que o autor “quis dizer”, acaba por ser limitado em sua interpretação, concepção esta conveniente para a crítica, que “explica seu texto”. Quando o autor é afastado do texto, portanto, torna-se impossível a decifração deste, pois o texto é formado não em sua origem, o autor, mas sim em seu destino, o leitor, e é este o verdadeiro dono da escrita, a figura (e não pessoa) que encerra tudo o que é necessário para o sentido do texto. Este sentido não é único, não podendo ser, portanto, explicado pela crítica. A questão de que o leitor não deve ser considerado pela literatura, desmerecido pela crítica, é então um mito que deve ser invertido: o autor morre para que nasça o leitor, real responsável pela constituição da obra.

De perspectiva mais filosófica, Michel Foucault, em “O que é um autor?” (2003), defende que o autor é uma figura aparentemente exterior e anterior à obra, sinalizando, assim, que não importa quem escreve. Tendo a escrita se libertado da obrigação da interioridade, fica extinto, assim, o tema da expressão: a obra é autossuficiente. Além do tema da expressão, Foucault também examina a relação do texto com o autor a partir do tema da morte: nas antigas epopeias e nas narrativas árabes, esta última exemplificada pela história de Sherazade, das Mil e uma noites, escrevia-se com o pretexto de fugir da morte, que calaria, para sempre, o autor. O tema da morte passou por uma metamorfose em nossa cultura: o autor, que antes utilizava a escrita para adiar seu inevitável fim, se dá, agora, ao direito de extinguir-se, de apagar-se dos livros. Dessa forma, a marca do escritor é a sua ausência na obra, e seus signos estão desprovidos de qualquer particularidade de quem a escreveu. Tal afirmação assemelha-se à morte do autor, de Barthes (1988); entretanto, para Foucault, não basta apenas excluir totalmente a figura do autor, mas sim definir sua função na obra.

Enquanto Foucault defende a anterioridade e a exterioridade do autor em relação à obra, Barthes (1988) utiliza o termo scriptor para definir a figura que nasce ao mesmo tempo que seu texto e tem como tempo eternamente o aqui e o agora.

Importante questão abordada por Foucault é também a questão do limite da obra:

Mas suponhamos que se trate de um autor: será que tudo o que ele escreveu ou disse, tudo o que ele deixou atrás de si faz parte de sua obra? Problema ao mesmo tempo teórico e técnico. Quando se pretende publicar, por exemplo, as obras de Nietzsche, onde é preciso parar? É preciso publicar tudo, certamente, mas o que quer dizer esse “tudo”? Tudo o que o próprio Nietzsche publicou, certamente. Os rascunhos de suas obras? Evidentemente. (….) Mas quando, no interior de uma caderneta repleta de aforismos, encontra-se uma referenda, a indicação de um encontro ou de um endereço, uma nota de lavanderia? Obra ou não? (FOUCAULT, 2003, p.9)

Para Foucault, estudar a definição da palavra “obra” é mais problemático que o estudo do autor, visto que não existe teoria para isso. Torna-se, portanto, impossível definir os limites de uma obra literária, principalmente quando entra a questão da noção da escrita: “Uma obra não é aquilo que é escrito por aquele que é um autor?” (FOUCAULT, 2003, p. 8).

Outro importante teórico que aborda a questão do papel do autor na obra é Mikhail Bakhtin, em sua Estética da Criação Verbal (1992), no capítulo “O problema do herói na atividade estética”. Para Bakhtin, o autor é criador e define a função estética da obra: sua consciência abrange a consciência da personagem, em uma posição axiológica. O herói tem seus conceitos de valor, constituindo a sua visão valorativa dentro da obra.  O autor-criador, que se difere do autor-pessoa, organiza esteticamente o conteúdo a partir de sua própria posição axiológica. O autor-criador, para Bakhtin, tem consciência externa da consciência do herói, além da consciência de si próprio. Duas consciências diferentes, sendo uma delas consciência da outra, dão condições necessárias para que a exotopia (olhar externo sobre outro) ocorra.  Dessa forma, a presença do autor, ainda que não física, se dá mais claramente do que nas teorias de Foucault e Barthes, pois o autor leva em consideração a posição axiológica do autor que se reflete no autor-criador.

253

O romance hipertextual 253 or tube theatre foi publicado virtualmente em 1996 e teve versão impressa em 1998, com textos de Geoff Ryman, escritor canadense contemporâneo que tem como outras publicações Was… (2002) e Lust (2005). A obra é descrita pelo próprio autor como “a novel for the Internet about London Underground
in seven cars and a crash[1]” (RYMAN; s.d, n.p.).

253 narra a história de uma viagem no metrô de Londres entre a Embankment Station e a Elephant &Castle, que pode terminar em um acidente, The End of the Line. A história conta com 253 personagens, que são os passageiros do metrô, distribuídos em sete vagões com trinta e seis passageiros em cada, além do motorista.  Ao acessar o endereço eletrônico, na Home Page (Figura 1), o leitor tem acesso a diferentes links onde pode escolher, entre outras opções, ler sobre qualquer um dos passageiros, verificar o porquê do nome da obra, consultar o mapa de viagem, acessar os anúncios que estão disponíveis nos vagões do trem, acessar as notas de rodapé (que explicam elementos presentes no texto, como as estações de trem), ou ir direto para o fim da linha, onde é possível saber o que acontece em cada um dos vagões no momento da colisão. Desde o começo da leitura, o leitor tem a opção de escolher qual link selecionar para dar continuidade à história, decisão que o levará a narrativas diferentes, de forma não linear, característica comum aos hipertextos.

Figura 1- Logo da Home Page do romance hipertextual 253 (Fonte: www.ryman-novel.com)

Figura 1- Logo da Home Page do romance hipertextual 253 (Fonte: www.ryman-novel.com)

Na seção Journey Planner (Figura 2), há a opção de selecionar qualquer um dos sete vagões para ter acesso às personagens em seus assentos, e cada uma delas é definida segundo suas características e interesses. Ao clicar em uma das personagens, o leitor é direcionado para uma página onde pode ter acesso a informações organizadas sempre em três blocos: Outward appearance, Inside information e What is she/he doing or thinking (um exemplo pode ser visto na Figura 3). Note-se que cada uma das páginas sobre as personagens contém 253 palavras em sua estrutura, sem contar seus títulos e subtítulos, replicando o título da obra, a quantidade de personagens no desastre e o percurso do metrô, segundo a iconografia da logo da obra.

Figura 2- Journey Planner (Fonte: www.ryman-novel.com)

Figura 2- Journey Planner (Fonte: www.ryman-novel.com)

Figura 3 – Passageiro do Vagão 4 (Fonte: www.ryman-novel.com)

Figura 3 – Passageiro do Vagão 4 (Fonte: www.ryman-novel.com)

Em meio ao texto de apresentação das personagens, é possível ter acesso a links que podem levar o leitor a outras personagens, a anúncios, ou ainda a notas de rodapé. Esta não linearidade, característica do hipertexto, faz com que o leitor exerça uma função diferente da ensejada por grande parte das obras de literatura tradicional, não apenas no processo de significação, como também no desenvolvimento da narrativa, como veremos na seção posterior.

253 apresenta características estruturais que se assemelham a sua narrativa. O próprio espaço da obra, um metrô, com sua estrutura ramificada, não linear e indefinida, pode ser associado ao processo de leitura. O leitor, assim como um passageiro, faz seu próprio percurso na história: pode escolher qual caminho seguir, fazendo um percurso particular e que não pode ser definido por ninguém, a não ser por ele mesmo, configurando-se também como coautor do texto.

Entretanto, ao mesmo tempo que o caos se apresenta, há uma organização peculiar presente em vários aspectos da obra: na nota do autor sobre como funciona a obra; na estrutura dos carros, que organiza os personagens a partir de seus números de poltronas, nomes e interesses (Figura 4); no mapa de viagem que, ainda que ramificado, dá certa sensação de escolha de qual caminho seguir; na reincidente organização estrutural dos textos das personagens.

Figura 4 – Organização das personagens no Vagão 4 (Fonte: www.ryman-novel.com)

Figura 4 – Organização das personagens no Vagão 4 (Fonte: www.ryman-novel.com)

ANÁLISE

Uma notável característica do romance hipertextual 253, bem como de todos os outros hipertextos, é o papel do leitor na composição da narrativa. Dotados de infinitas possibilidades, os caminhos escolhidos pelo leitor levam a diferentes personagens e determinam a sequência da história. O leitor pode, inclusive, retroceder e mudar de direção sem prejuízo para a leitura, bem como ir direto ao The end of line, que é descrito como “Sensation and violence at last. Discover the horrible end of the carriage of your choice[2]” (Hyman, n.d, n.p). Chegar ao fim da linha, nesta obra, não significa necessariamente o fim da leitura; ali estão disponíveis opções para que o leitor tenha acesso a todos os elementos contidos em sua estrutura. É possível retroceder visitando o Journey Planner, consultar o fim da linha em outros carros, voltar para a explicação de como funciona a obra ou as notas de rodapé. O texto deixa claro que o fim é determinado pela escolha do leitor.

É importante salientar ainda que a narrativa produzida pelo leitor durante sua escolha não tem uma materialidade. Em um livro tradicional, por exemplo, o texto é impresso e mantém-se disponível para a leitura enquanto da duração do suporte e pode ser recuperado a qualquer momento, assim como um arquivo em PDF ou um vídeo salvos em mídia digital. No caso desse romance hipertextual, a sequência que é produzida pelo leitor durante a navegação existe apenas no momento de sua leitura. Os textos que a compõem estão disponíveis virtualmente, mas a narrativa produzida desaparece ao mesmo tempo em que ocorre, a menos que os textos sejam copiados e colados em um documento, o que foge da proposta da obra. Esta característica pode ser importante para definir o papel do autor e do leitor, visto que a sequência narrativa não existe sem que o leitor faça sua intervenção a partir do que achar conveniente.

O link “Why 253?” direciona o leitor para uma explicação de Hyman sobre o nome da obra, sobre a descrição dos personagens/passageiros. Esta página traz também um comentário sobre o papel do leitor e do autor na obra:

Do you sometimes wonder who the strangers around you are? This novel will give you the illusion that you can know. Indeed, it can make you feel omniscient, Godlike. This is a pleasurable sensation. But please remember that once you leave 253, you are no longer Godlike. The author, of course, is. (HYMAN, s.d, n.p.)[3]

O trecho acima evidencia a consciência do autor do texto sobre o que acontece nos vagões do trem e sobre o que se passa com as personagens da narrativa. O leitor tem, também segundo o trecho, a ilusão de que compartilha dessa onisciência. De acordo com Bakhtin (1992), o autor-criador é o constituinte do objeto estético, e é marcado pelo princípio da exotopia. O autor tem uma consciência superior à da personagem, dando acabamento, assim, à sua imagem externa. Em um romance hipertextual como o 253, sabemos que o leitor tem autonomia para seguir sua própria direção na narrativa, e talvez seja possível que ele faça parte, também, dessa relação exotópica, comportando-se, portanto, como autor-criador durante a leitura. O leitor, temporariamente onisciente enquanto dentro da obra, sabe desde o início o desfecho trágico que aguarda as personagens no fim da linha, pois tem a consciência superior a elas, que serão surpreendidas pelo acidente.

O nascimento do leitor pode significar também o desaparecimento do autor. De acordo com Foucault (2003):

Mas há outra coisa: essa relação da escrita com a morte também se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve; através de todas as chicanas que ele estabelece entre ele e o que ele escreve, o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita. Tudo isso é conhecido; faz bastante tempo que a crítica e a filosofia constataram esse desaparecimento ou morte do autor. (FOUCAULT, 2003, n.p.)

Sabemos que o romance hipertextual, como disposto no endereço eletrônico, teve seu conteúdo escrito por alguém. Ryman idealizou e produziu todo o texto presente na obra, e essa obra leva a sua assinatura. Entretanto, é preciso observar que, a partir do momento em que o site foi ao ar e Ryman saiu de cena, o destino da narrativa diz respeito exclusivamente àquele que visita o endereço e faz suas escolhas, de acordo com suas próprias particularidades, e não as do autor. Todas as escolhas – ir direto ao fim da linha, visitar um personagem, clicar aleatoriamente e sem critérios, ou simplesmente desistir e fechar a página, evitando o acidente – são particularidades que definitivamente não dizem respeito a Geoff Ryman.

A ausência de particularidades do escritor no texto fica igualmente evidente na teoria de Roland Barthes, em “A morte do autor” (1998):

O Autor, quando se acredita nele, é sempre concebido como  o  passado  do  seu  próprio livro:  o livro  e  autor  colocam-se a si próprios  numa  mesma  linha,  distribuída  como  um  antes  e  um depois: supõe-se  que  o  Autor  alimenta  o  livro,  quer  dizer  que  existe  antes dele,  pensa, sofre,  vive  com  ele;  tem  com  ele  a  mesma  relação  de  antecedência  que  um pai  mantém  com  o  seu  filho.  Exatamente  ao  contrário,  o  scriptor  moderno nasce  ao  mesmo  tempo  que  o  seu  texto. (BARTHES, 1998, p.59)

Esta afirmação de Barthes é fácil de ser confirmada no 253: o romance e o autor não estão na mesma linha, como um antes e depois. A obra só é construída no momento em que o leitor constrói sua narrativa, não existindo, portanto, um depois: o autor morre para que nasça o leitor.

Foucault, em sua conferência “O que é um autor? ” (2003), levantou uma questão que convém ser discutida neste trabalho: Qual é o limite de uma obra? No caso de 253, os textos são fragmentados em links, todos escritos por Geoff Ryman. Seria, cada uma delas, uma obra do mesmo autor? Ou todos os textos formariam uma grande obra? Como já dito anteriormente, não existe definição precisa para a questão da obra, e que talvez essa discussão seja mais difícil de ser empreendida até do que a própria questão da autoria. Dada essa indefinição e levando em conta que o leitor pode ter a decisão final sobre a narrativa, pode-se cogitar que o conjunto de textos que dá origem à narrativa seja também de propriedade do leitor que a produziu.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho apresentou uma análise sobre a questão da autoria em um romance hipertextual a partir das teorias de Michel Foucault, Mikhail Bakhin e Roland Barthes. O autor é visto para Bakhtin como o detentor da consciência das personagens, dando-lhes acabamento estético; Foucault apresenta, além da definição da função-autor, uma importante questão sobre o limite da obra; Barthes apresenta a tese da morte do autor, o qual deixa de existir com o surgimento do leitor.

O hipertexto faz com que o leitor tenha acesso a uma multilinearidade impossível de ser controlada pelo escritor dos textos, fazendo com que cada leitor que tenha acesso ao seu conteúdo tenha uma experiência de leitura única, apresentando marcas peculiares de sua escolha. A consciência da consciência das personagens que é atribuída ao autor por Bakhtin (1992) pode ser atribuída, também, ao leitor que participa como um autor no desenvolvimento de um romance hipertextual, tendo a onisciência (como se fosse Deus) de tudo o que acontece dentro dos vagões do trem. A indefinição do limite da obra, conforme Foucault (2003) também fica clara nesse romance: cada link pode ser tido como uma obra, bem como cada sequência de escolhas feitas pelo leitor. É viável que o desaparecimento do autor seja um fator facilmente identificável nesse tipo de literatura, que não tem suporte material e que não pode mais ser relida, visto que não é tarefa fácil atribuir características que não existem materialmente a uma narrativa que existe apenas quando é lida e que desaparece após a sua leitura. A única figura que tem acesso a essa obra é aquele que é realmente responsável por sua autoria: o leitor.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail Mikhaĭlovich. Estética da criação verbal. Livraria Martins Fontes, 1992.

BARTHES, Roland. A morte do autor. O rumor da língua, v. 2, p. 57-64, 1988.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. O que é um autor, v. 3, p. 97-128, 2003.

RYMAN, Geoff. 253, or tube theatre. Disponível em: <www.ryman-novel.com>

VIIRES, Piret. Literature in Cyberspace1. Folklore: electronic journal of folklore, 2005.

Data de envio: 15 de outubro de 2015.

 

[1] “Um romance para a internet sobre o metrô de Londres, sete vagões e uma batida.”

[2] “Finalmente, sensação e violência. Descubra o terrível fim do vagão de sua escolha.”

[3] “Você já se perguntou quem são os estranhos à sua volta? Este romance vai te dar a sensação de que você é capaz de saber. De fato, ele pode fazer com que você se sinta onisciente, como se fosse Deus. Esta é uma sensação prazerosa. Mas, por favor, lembre-se de que, uma vez que você deixa o 253, você não é mais como Deus. O autor, é claro, o é.”