A teoria da informação e a criação literária de Décio Pignatari

Henrique Julio Vieira

RESUMO: Pretende-se analisar os diálogos efetivados entre a criação literária de Décio Pignatari e as ideias desenvolvidas pelo filósofo alemão Max Bense no campo da Teoria da Informação. Para tanto, considera-se a atividade docente do escritor neste campo disciplinar entre as décadas de 1960 e 1970, na Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI-Rio) e a sua produção teórico-crítica na área.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria da Informação; Décio Pignatari; Criação Literária; Poesia Concreta

ABSTRACT: It is intended to analyze the dialogues between Décio Pignatari’s creative writing and the ideas developed by the Germany philosopher Max Bense on Theory of Information. Therefore, it is considered the Pignatari’s academic acting on this field at Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI-Rio) and his theorical production.

KEYWORDS: Theory of Information; Décio Pignatari; Literary Creation; Concrete Poetry.

 

Considerações iniciais

O campo disciplinar da Teoria da Informação surgiu na primeira metade do século XX como uma vertente da matemática interessada no estudo estatístico do processo de criação e transmissão de mensagens. A análise da comunicação nesta disciplina se inicia com a publicação de A mathematical thoery of communication[1], em 1948, do matemático norte-americano Claude Shannon, que buscava descrevê-la formalmente e medir a sua taxa de informação levando em consideração o grau de previsibilidade/imprevisibilidade das mensagens, o repertório compartilhado entre o emissor e o receptor e o nível de distorção da informação ao longo do canal da comunicação.

A partir da noção de código, inspirada na semiótica de Charles Peirce, como um sistema de símbolos convencionalizados para a representação de um conteúdo, a Teoria da Informação retomou também os elementos da comunicação estabelecidos pelo linguista Roman Jakobson no início do século XX (emissor, receptor, canal, mensagem, código e referente) e compreende a transmissão de informações como a interrelação da codificação-decodificação das mensagens pelo seu emissor/fonte e receptor/destino respectivamente.

A valorização do aspecto formal e sintático da comunicação também deu continuidade aos estudos formalistas da linguagem, sendo proposto pelo cientista norte-americano Norbert Wiener (1950) que a organização dos elementos da comunicação seria a própria mensagem, colocando-se, em segundo plano, interpretações centradas no conteúdo psicológico, social, histórico e ideológico dos signos. De forma semelhante, a concepção de literatura desenvolvida pelos formalistas russos no início da Teoria da Literatura, no século XX, como a comunicação em sua função poética, ou seja, voltada para o trabalho criativo com a própria organização da mensagem, foi crucial para o estudo dos textos literários no âmbito da Teoria da Informação e o seu projeto de quantificação da informação transmitida por uma mensagem e da proposição dos conceitos de entropia, ruído e redundância.

Nas subseções seguintes, pretendemos estabelecer interlocuções entre esses três conceitos com a produção literária e ensaística de Décio Pignatari e o projeto coletivo da Poesia Concreta. Nas décadas de 1950 e 1960, o escritor integrou o grupo noigandres com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, aos quais se congregariam posteriormente José Lino Grünewald e Ronaldo Azeredo, dando início ao movimento da poesia concreta brasileira a partir da Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada no MASP (São Paulo), em 1956. Entre 1964 e 1975, Décio Pignatari inicia sua atividade docente em Teoria da Informação na Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), atualmente vinculada à UERJ.

Através da pesquisa coletiva e criação poética, a vanguarda concretista propôs o fim da versificação linearizada e a utilização qualitativa do espaço gráfico do texto, valorizando-se no processo de criação literária o diálogo com a comunicação de massa, as artes plásticas, o cinema e a superação da representação mimética da realidade pela literatura a partir de uma linguagem concreta, capaz de recriar a ideia ou objeto referenciado, tanto quanto possível, no espaço textual com a exploração das dimensões verbal, visual e semântica das palavras. Eram prospotas, ainda, a modernização e a internacionalização da literatura e da cultura brasileiras pela interlocução com artistas e intelectuais estrangeiros e através da incorporação de referências teóricas e literárias internacionais, como a literatura moderna e a teoria geral dos signos desenvolvida por Charles Peirce e a teoria da informação articulada por Max Bense e Norbert Wiener.

Informação, Entropia e Ruído

A compreensão do ato de comunicação entre seres humanos como um processo físico e analisável do ponto de vista semiótico, estatístico e topológico conduziu a teoria da informação para atribuição de características do mundo natural ao uso da linguagem, dentre os quais o conceito de entropia. Proposto inicialmente pela termodinâmica no século XIX, a entropia é utilizada no âmbito da Físico-Química para caracterizar a tendência dos sistemas físicos e das máquinas à desorganização e dissipação de energia, tendências entrópicas essas que, segundo Décio Pignatari, se direcionariam para uma desordem caótica do real, a “uma uniformidade térmica (a chamada ‘morte térmica’ do universo), a um caos indiferenciado ou desdiferenciado” (PIGNATARI, 2008, p. 56).

Com o surgimento da Cibernética e da Teoria da Informação no século seguinte, o conceito de entropia fora utilizado por Norbert Wiener para o estudo da comunicação entre seres. Tendo em vista que a criação de mensagens seria uma forma de organização de estruturas de linguagem a partir de um repertório/código, seria possível considerar a entropia como a medida de desorganização dos sistemas e a informação, por sua vez, como a medida de organização. Em Cibernética e Sociedade, conjunto fundamental de ensaios de Wiener para se compreender o objetivo da Cibernética ao analisar os dados culturais e as relações homem-homem e homem-máquinas como questões de linguagem, o teórico faz a seguinte assertiva sobre as noções de entropia e informação:

As mensagens são, por si mesmas, uma forma de configuração e organização. É possível, realmente, encarar conjuntos de mensagens como se fôssem dotados de entropia, à semelhança de conjuntos de estados do mundo exterior. Assim como a entropia é uma medida de desorganização, a informação conduzida por um grupo de mensagens é uma medida de organização. Na verdade, é possível interpretar a informação conduzida por uma mensagem como sendo, essencialmente, o negativo de sua entropia e o logaritmo negativo de sua probabilidade.” (WIENER, 1954, p. 21)

Somam-se à definição de informação como entropia negativa as contribuições da teoria estética desenvolvida por Max Bense (2003), filósofo e professor alemão da Escola Superior da Forma – Ulm, sobre a criação artística, por ele entendida como uma forma de organização e transmissão de informação estética, ou ainda, de produção de estados estéticos a partir de um determinado repertório disponível ao artista. Para Bense (2003), a matéria-prima da criação nas diversas linguagens poderiaserencontrada em (a)ordem caógena, quando se apresenta num grau de indiferenciação ou “mistura”,(b) ordem regular, que se encontra pré-organizada como uma “estrutura” (i.e. as línguas) ou finalmente em (c)ordem irregular, quando o conjunto de elementos está em “configuração” arbitrária e cada movimento de seleção deve ser feito individualmente (i.e as cores e os sons).

No que concerne à criação literária, os escritores partiriam de um repertório de ordem regular, o código linguístico, e ao assumirem o trabalho criativo com a linguagem verbal através da criação de novas relações entre os signos e os sentidos por eles enunciados, a função instrumental da linguagem seria destituída, tornando-se imperativa a estetização da linguagem. Reportando-se à teoria geral dos signos de Charles Peirce, Décio Pignatari (2004b) compreendeu ser o papel da arte e da literatura realizar uma reversão icônica no seio do idioma, retorná-lo de um estágio de convencionalização e arbitrariedade, estratificado pelas normas linguísticas (terceridade, o símbolo), para um estágio inaugural (primeiridade, o ícone), no qual os signos se aproximaram, tanto quanto possível, das qualidades e atributos de seus referentes. De forma semelhante, o próprio Max Bense, em sua Estética, também esclarece que a representação artística do real pelo processo de analogia se daria através de signos icônicos: “‘a relação analógica infinita’ (unendlich Rapport) da ordem regular, estrutural, é determinada por meio de um ‘ícone’.” (BENSE, 2003, p. 97).

Nesse sentido, se partirmos das assertivas wienerianas sobre as tendências entrópicas da natureza e da cultura na trasmissão de mensagens, é possível interpretar o esforço de reunir na Teoria da Poesia Concreta[2] os ensaios publicados entre 1950 e 1960, em suplementos literários, por Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos como uma estratégia de resistência à tendência de deturpação ou estereotipização do projeto concretista nas leituras posteriores realizadas pela historiografia ou pela crítica literária. O ruído provocado por fatores externos à mensagem causaria a queda do grau de informatividade das propostas veiculadas pela vanguarda concretista. Na introdução à primeira edição (1965), ainda presente na mais recente edição (2014), Haroldo de Campos presta os seguintes esclarecimentos sobre essa questão:

A iniciativa de reunir em volume os textos e manifestos que prepararam e fomentaram a poesia concreta se exlica pelo respeito fundamental ao documento. Um movimento que tem vitalidade para criar e reproduzir, para gerar variantes, para influir, quando não em soluções diretamente identificáveis, sob a forma de amplos condicionamentos, corre sempre o risco da difração, da refração, da diluição. É preciso facilitar a sua compreensão e a sua discussão nos seus termos originais, sem a mediação das divulgações esquemáticas e das interpretações duvidosas. Publicados os textos, aqui recolhidos, na imprensa diária e em revistas diversas, em pouco tempo se tornaram fatalmente inacessíveis, pelo próprio caráter contingente e heterogêneo das folhas em que foram estampados. (CAMPOS, 1965 In: CAMPOS et alii. 2014, p. 10)

A criação literária de Décio Pignatari

Nos poemas publicados na revista Noigandres n. 3, editada em 1956 pelos poetas concretistas, Décio Pignatari utiliza o espaço gráfico dos textos para desconstruir os sintagmas verbais e nominais e estilhaçar a estrutura predicativa dos enunciados. Em Adieu, Mallaimé (autoportraîte), o reporto ao poeta francês Stéphane Mallarmé, eleito um dos predecessores da poesia concreta brasileira, é estabelecido pela paranomásia de seu nome com o signo Mallaimé, palavra-metáfora construída pela montagem léxica (CAMPOS, 1956)[3]das palavras francesas mal (mal) e aimé (amado).

 

Figura 1: Adieu, Mallaimé (autoportraîte) (PIGNATARI, 2004a, p. 97)

Figura 1: Adieu, Mallaimé (autoportraîte). (PIGNATARI, 2004a, p. 97)

Surgido no seio da literatura francesa, palco do cânone literário narrativo do século XIX, a obra poética de Mallarmé, o poeta mal amado por seu tempo, foi de encontro aos pilares de sustentação da cultura literária francesa ao deflagrar a crise da representação mimética da realidade e da ideia de lírica desenvolvida pela poesia romântica alemã e francesa como a exibição do estado anímico de um sujeito na escritura. Conforme observa Hugo Friedrich (1978), a poesia mallarmaica contribuiu com a consolidação da modenidade literária ao valorizar o trabalho intelectual com a linguagem poética e a fundamentar ontologicamente a desconstrução da mimesis literária, ou melhor, da sua “desrealização”, como nomeia Anatol Rosenfeld (1973), da qual seriam frutos: a fragilização da carga semântica denotativa e da sintaxe linear dos sintagmas, a exploração da potência semiótica dos signos linguísticos ao nível da sugestionabilidade e a percepção do processo de criação literária como fenômeno intelectual da ordem da magia e do ocultismo.

Tendo como motivo o processo criador, o poema de Décio Pignatari saúda o anjo caído da literatura francesa, recriando em suas imagens o dançar das letras do lance de dados mallarmaico “sobre os brancos movediços” do texto. À reação dos “poetas provincianos”, afeitos às concepções tradicionais de poesia lírica e às realizações da linguagem linear-lógico-discursiva, o poema pignatariano recria o silêncio da anti-lira mallarmaica, que, no entanto, não corresponde à “serena mentira” de desencadear a escuridão da ausência de significação, pois dá a ver, na mais intensa claridade, a matéria-prima de seu próprio autorretrato. É pertinente, neste sentido, a leitura de Judith Grossmann deste esplendor semiótico dos signos artísticos que operam entre a denotação e a conotação da linguagem:

Toda grande obra literária dá expressão a isto, que é na abertura que se apresenta o fechamento, na mais intensa escuridão é que se apresenta a claridade, a denotação tirânica que o discurso literário deseja e deve segregar. A orgia conotativa, a partir de certo ponto, não é mais do que a camuflagem da contenção desta palavra explosiva que, como dinamite, está delicadamente espalhada na película discursiva que a recobre (GROSSMANN, 1982, p. 8)

Em stèle pour vivre no. 1e stèle pour vivre no.  no. 2, cria-se zonas de intensidade semiótica com a pulverização dos sintagmas linguísticos. A composição da sintaxe espaço-temporal do texto sem utilizar conjunções de subordinação ou coordenação entre os sintagmas torna a palavra poética físsil. As sílabas são transformadas em átomos de linguagem que, ao modo dos átomos químicos, liberam grande energia no momento de fissura do seu núcleo, a estrutura linear e coordenativa dos sintagmas linguísticos. Essa energia, por sua vez, eleva a “temperatura informacional do texto” (CAMPOS: 1960; 2006)[4], pois as possibilidades de leitura da estrutura a-linear e a-sintagmática dos poemas são potencializadas através da interação das tessituras verbais, sonoras e semântica das palavras.

Figura 2: stèle pour vivre no. 1. (PIGNATARI, 2004a, p. 94)

Figura 2: stèle pour vivre no. 1. (PIGNATARI, 2004a, p. 94).

Figura 3 : stèle pour vivre no.  no. 2. (PIGNATARI, 2004a, p. 95).

Figura 3: stèle pour vivre no.  no. 2. (PIGNATARI, 2004a, p. 95).

Nesses dois textos, um sujeito lírico estilhaçado se reconhece enquanto signo da escritura literária e experiencia um local de fala nos limites entre o verbal e o visual, entre a enunciação poética e a potência da imagem. Sua comunicação poética fragmenta a estrutura predicativa da sintaxe linear e coloca, em eco a Gilles Deleuze, a língua portuguesa, a língua nacional, para gaguejar. Partindo da produção de Kafka, Melville e Beckett, o pós-estruturalista defende no ensaio Gaguejou… (1997) que todo grande escritor escreveria como um estrangeiro em seu próprio idioma, estabelecendo, de forma rizomática, linhas de fuga estrutura sintática dos enunciados e aos sentidos estratificados na cultura.

No poema no. 1, o “eu deslinguado” aparece como ícone da composição do texto literário, uma voz que ecoa no espaço branco do texto afirmando a sua existência num espaço de fenda entre um grau zero da significação e o potencial comunicativo, entre “reautoviver” e a morte da linguagem, entre o caos e a rigorosa consciência do processo de criação concretistas. De forma semelhante, no poema no. 2 é encenado o processo de criação do escritor criativo que pretenda utilizar o espaço gráfico como elemento dotado de significação, tendo em vista que, mesmo sem [as] rédeas sintagmáticas da língua, não há uma estrutura caótica. A interação planejada das dimensões acústica, visual e conteúdista dos signos irá rocinar a palavra “bucefálica”, a palavra erótica que precisa ser domada para a realização da comunicação poética.

No ensaio poesia concreta: pequena marcação histórico-formal, Décio Pignatari (1957; 2006) diferencia o projeto concretista das realizações precedentes da poesia figurativa e do futurismo italiano em relação à representação do movimento no espaço gráfico do texto. Para aqueles, tal questão se encerraria na ilustração mimética do movimento (motion) em diferença do projeto concretista de se construir textos literários dotados de movimento estrutural (movement) de seus elementos. Será em 1958, na revista Noigandres n. 3, que o poeta realizará de forma tácita esta linha de força do projeto coletivo com o poema Terra, texto que pode ser lido como um autômato verbal que não discursa sobre o cultivo da terra, como a poesia pastoril de Virgílio e seus sucessores, o problema da concentração fundiária no Brasil ou ainda sobre os debates das ligas camponesas na década de 1950, mas apresenta um movimento estrutural, movement, formado a partir combinação das letras de “terra”.

Figura 4: terra. (PIGNATARI, 2004a, p. 126).

Figura 4: terra. (PIGNATARI, 2004a, p. 126).

Haroldo de Campos (1957)[5] identifica neste poema o funcionamento de uma máquina verbal que faz uso do processo de “autorregulação” das máquinas autônomas, o que decorre, segundo Norbert Wiener, da ação de membros sensoriais que vão corrigir os desvios que venham a ocorrer em seu desempenho, de modo a reverter a tendência entrópica do sistema e aproximar, tanto quanto possível, o desempenho realizado do desempenho esperado:

A realimentação pode ser tão simples quanto a de um reflexo comum, ou pode ser uma realimentação de ordem superior, na qual a experiência passada é usada não apenas para regular movimentos específicos como, outrossim, tôda uma política de comportamento. Tal espécie de realimentação pode revelar-se, e amiúde se revela, como aquilo que, sob um aspecto, conhecemos por reflexo condicionado, e sob outro, por aprendizagem. (WIENER, 1954, p. 33)

É possível visualizar, portanto, que o poema internaliza uma memória própria para o seu funcionamento, mantendo a ordem da estrutura a partir da repetição da sílaba “ra” na oitava linha, de modo que a supressão do trapézio central do poema não cause a desconfiguração do movimento estrutural do texto. A incorporação desta sílaba na estrutura realimenta com uma nova mensagem o funcionamento o texto, reduzindo a tendência entrópica à desorganização e introduzindo uma nova informação semântica, a saber, a comunicação, pela repetição dos signos “rara terra”.

Redundância e Signo Novo

A noção de repertório desenvolvida pela estética bensiana como o conjunto de elementos disponíveis para a organização de mensagens, estéticas ou não estéticas, influenciou significativamente a assertiva da Teoria da Informação acerca da necessidadede de emissor e receptor compartilharem um repertório mínimo do código utilizado para que haja comunicação. A ideia de repertório como estoque de linguagem e como memória de processo enunciativo conduziu os estudos em teoria da informação para o desenvolvimento da noção de redundância, por ela entendida como a repetição do já-realizado. As línguas, nesse sentido, seriam sistemas de signos estruturados a partir da redundância, visto que a repetição de relações morfossintáticas, semântico-lexicais e pragmáticasestrutura um determinado código linguístico e estabelece as suas regras de funcionamento, tanto do ponto de vista paradigmático, quanto do ponto de vista sintagmático.

Recordo, neste ponto, a conferência inaugural de Roland Barthes na Cátedra de Semiologia do College de France, em 1977, tendo em mente as suas advertências sobre o caráter fascista da língua, pois ela não interditaria a nossa comunicação, ao contrário, sujeitaria o nosso pensamento às estruturas linguísticas, obrigando-nos a falar de determinada através da repetição de determinadas relações e sentidos pré-estabelecidos nos diversos níveis da linguagem. Seria papel da literatura, segundo Barthes, esboçar linhas de fuga ao poder gregário da linguagem.

No entanto, o processo de criação artística e a realização da comunicação estética não se estabelecem apenas a partir do signo novo acrescentado ao repertório. A arte e a literatura precisam conciliar um mínimo de previsibilidade à imprevisibilidade da nova informação estética para que o leitor, reconhecendo as características que distinguem uma determinada mensagem como mensagem estética, consiga decodificá-la, interpretá-la e acrescentá-la ao seu repertório de leituras. No que diz respeito ao posicionamento do escritor de literatura em relação ao já-dito, Judith Grossmann (1982) acredita que a criação literária se dá por um gesto de leitura e evocação de textos literários e não-literários anteriores, estabelecendo-se o discurso literário como uma metalinguagem por excelência, considerando-se que, em relação à arte e à literatura precedente, estabelece uma ligação por reconvencionalização, com a qual se dá explicitamente continuidade aos sentidos enunciados e se introduz uma nova informação, ligação por desconvencionalização, através da referência implícita ou deslocamento de um discurso anterior, e por fim a ligação mista, quando os dois procedimentos utilizados, ao mesmo tempo ou em momentos distintos da obra literária.

A inscrição da poesia concreta como sucedânea da evolução histórico-formal do verso poético tradicional em direção à sintaxe espacial é uma forma de eleger um cânone literário para a vanguarda através do processo de reconvencionalização da experiência criativa dos escritores que constituem a suapaideuma, a seleção das realizações artístico-literárias precedentes (anteriormente citados) para a formação das futuras gerações no sistema de valores proposto pela vanguarda: Mallarmé, Ezra Pound, James Joyce, E. Cummings, Apollinaire, Oswald de Andrade e João Cabral de Melo Neto.

Considerando-se a impossibilidade de saída total do sistema literário e a fundação de um novo sistema de valores, é preciso ter em vista que as novas tendências literárias são paulatinamente introduzidas na cultura, e através da constante leitura e releitura da experiência estética passada a nova informação estética é somatizada e incorporada ao repertório, provocando saltos qualitativos e a sua ampliação ao longo do tempo. Se nos atermos, a título de exemplificação, à relação estabelecida pela literatura com outras linguagens, um dos vetores criativos da poesia concreta brasileira, é possível perceber que esta interlocução já era estabelecida em momentos anteriores da história da literatura no Ocidente, como a relação literatura e música nos ditirambos em honra de Baco na Grécia Antiga, na lírica trovadoresca galego-portugusa na Idade Média europeia ou ainda na poesia oral dos repentistas do interior do nordeste brasileiro.

O diálogo entre criação literária e publicidade na produção de Décio Pignatari pode ser observado nos poemas Beba coca cola, publicado em 1958, na revista Noigandres, n. 4, e no poema-anúncio Disénfórmio, lançado na revista Invenção, n. 5, em 1967.

Figura 5: beba coca cola. (PIGNATARI, 2004a, p.128).

Figura 5: beba coca cola. (PIGNATARI, 2004a, p.128).

Figura 6: Disenfórmio. (PIGNATARI, 2004a, p.172).

Figura 6: Disenfórmio. (PIGNATARI, 2004a, p.172).

A partir da teoria da informação e da estética bensiana, poderíamos analisar como esses textos introduzem uma nova informação estética ao repertório cultural na medida em que aproximam o discurso literário e o discurso publicitário, a comunicação literária, vinculada na década de 1950 aos circuitos da cultura erudita, e a comunicação de massa presente nos slogans e outodoors dos grandes centros urbanos e industriais do Brasil. Por um gesto de desconvencionalização do discurso publicitário, Beba coca colaé um anti-anúncio que arquiteta uma crítica sutil ao consumo sôfrego da bebida homônima através do jogo fonético com as palavras “beba”, “babe”, “coca cola” e “coacla”.

Por sua vez, publicado inicialmente como peça publicitária (1963) e depois publicado na revista literária anteriormente citada, o poema-anúncio Disenfórmio aproxima o discurso publicitário dos procedimentos da criação artística, pois é realizada uma reversão icônica na linguagem verbal, de modo que os signos “perturbações intestinais” presentifiquem, tanto quanto possível, os atributos para os quais o medicamento seria utilizado.

Considerações finais

Ciceroneado pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, Max Bense viajou ao país entre 1961 e 1964 e, nas ocasiões, estabeleceu interlocuções com artistas e intelectuais da cena cultural Rio-São Paulo, dentre os quais os designers Aloísio Magalhães, Luiz Fernando Noronha e Arthur Lício Pontual, os arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, os escritores Clarice Lispector, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, os poetas concretistas Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, os artistas plásticos Bruno Giorgi, Lygia Clark e Volpi. As reflexões desenvolvidas por Bense sobre a intelectualidade brasileira, a criação literária nacional e a atmosfera de urbanização vivenciada pelo país seriam publicadas posteriormenteem Inteligência brasileira: uma reflexão cartesiana (2009).

A relação de Max Bense com o movimento concretista brasileiro é narrada a partir da distinção entre a literatura convencional, resultada de processos lineares de continuidade aos discursos predecessores e engajada com a função sociocomunicativa da criação literária, e a literatura progressista, aberta a novos procedimentos artísticos e comprometida com a função intelecto-experimental da atividade criativa. Para Bense, a ruptura com a versificação poética linearizada e a construção de novas formas literárias, em diálogo com outros sistemas semióticos, como a publicidade e as artes plásticas, inseriramo concretismo brasileiro, “o mais importante grupo de poesia concreta” (BENSE, 2009, p. 72), na representatividade da literatura progressista desenvolvida no Brasil, nas décadas de 1950 e 1960.

À fatura artística, se soma o desempenho da crítica literária do grupo Noigandres em suplementos literários do Rio de Janeiro e São Paulo, como o Estado de São Paulo, o Correio Paulistano e o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Haroldo de Campos e Décio Pignatari exerceriam, ainda, a atividade docente em instituições de ensino superior no Brasil, sendo Pignatari, pela longevidade de sua atividade docente, aquele que projetaria de forma mais sistemática a sua imagem pública de poeta-professor com a atuação na Escola Superior de Desenho Industrial, USP, PUC de São Paulo e Universidade Tuiuti entre 1960 e a primeira década dos anos 2000. Nesse sentido, compreender a poesia concreta brasileira 60 anos após o seu lançamento durante a Exposição Nacional de Arte Concreta, no MASP, nos convoca a perceber como a criação literária, a performance acadêmica e a produção teórico-crítica constituem linhas de força que articulam o projeto intelectual dos sujeitos envolvidos, os diferentes itinerários teóricos e literários percorridos para a modernização e internacionalização da cultura brasileira no século XX.

Referências

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Data de envio: 07 de janeiro de 2016.

 

[1] The Bell System Technical Journal, Vol. 27, pp. 379–423, 623–656, Jul-Out, 1948

[2] 1ª edição, São Paulo, Edições Invenção, 1965; 2ª edição, ampliada, São Paulo, Duas Cidades, 1975; 3ª edição, Brasiliense, 1987; 4ª edição, Cotia, SP, Ateliê Editorial, 2006; 5ª edição, Cotia, SP, Ateliê Editorial, 2014.

[3] Pontos-periferia-poesia-concreta. Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11.11.1956. In: CAMPOS et alii. 2014, pp. 31-42.

[4] CAMPOS, Haroldo. a temperatura informacional do texto.1960. In: CAMPOS, Augusto et alii, op. cit, 2006, pp. 189-204.

[5] poesia-concreta-linguagem-comunicação. (1957) In: CAMPOS et alii. 2014, pp. 105-124.