“Boi neon”, entre a brutalidade e a sensibilidade

Jéssica Domingues Angeli

(MASCARO, 2016, 06m:35s)

Boi neon, dirigido por Daniel Mascaro, estreou no Brasil em janeiro de 2016. De gênero dramático, o longa conta a história do vaqueiroIremar (Juliano Cazarré), Zé e Mário (Carlos Pessoa e Josinaldo Silva), seus companheiros de trabalho, Galega (MaeveJinkings), motorista do caminhão, e Cacá (Alyne Santana), filha desta. Juntos,compõem uma família de ocasião que viaja unida pela paisagem bruta e seca do Nordeste provendo bois para a prática da vaquejada[1]. O fato de estes personagens, de vida muito simplória e cerceada por privações, não serem senhores de seus próprios rumos mas, ao contrário, serem conduzidos por aqueles que lhes são superiores, exclui a necessidade de explicar como é que foram parar na companhia uns dos outros e quais são os acordos que possuem entre eles: a vida, em algum momento, uniu-os, e assim permaneceram a mãe solteira, a criança e os homens adultos que repartiram entre si os papéis de pai: educar, repreender, brincar, dar colo. Neste universo, mantido pela vaquejada e pelo leilão de equinos nobres, os animais estão um nível acima dos humanos; a superioridade fica clara no plano em que Iremarencoraja Cacá a tocar nas fezes do boi afirmando que “isso não é merda de gente, não, é de boi! É limpa!”, ou quando a necessidade de cuidar de uma égua a ser leiloada exige a substituição, no círculo familiar, de Zé por Júnior, sem que a estes fosse dado o direito de escolha sobre ir ou ficar.

Iremar, em meio a um cenário tido como machista, sonha em trabalhar na fabricação de roupas. Neste mesmo ambiente, Galega, a única mulher adulta do grupo, é a motorista do caminhão que os leva de cidade em cidade, e é também a responsável pelos reparos mecânicos do veículo. Além disso, é respeitada por todos os homens e tem a liberdade não só de escolher seus parceiros como também de impor a eles as suas preferências sexuais.

A brutalidade do cenário de extinção e do trabalho em um esporte violento contrastam com a sensibilidade do herói, que passa seu tempo livre desenhando roupas nos corpos nus expostos nas revistas pornográficas que afana de Zé, e costurando-as para Galega, sua modelo. Essa oscilação é, nesta leitura, a qualidade maior do filme, pois a dureza de uma cena, por contraste, torna a delicadeza do plano seguinte ainda mais  acentuada.Outra dicotomia presente no filme refere-se à rotina humilde dos personagens que coexiste com alguns “caprichos”: Júnior, outro vaqueiro, usa aparelho ortodôntico porque acha “massa” e passa horas cuidando dos cabelos compridos, alisados com chapinha em um exercício minucioso e demorado.Iremar gosta de usar perfumes importados. Zé ostenta no braço uma pulseira que diz ser de prata. Galega gosta de usar lingeries novas e bonitas. Portanto, o cerceamento que a situação social e financeira da trupe impõe aos personagens não os impede de cultivar a vaidade, ainda que esta busca pela beleza, que também decorre da sensibilidade, seja mirrada: Júnior gasta muito dinheiro e tempo cuidando dos cabelos, mas os lava, de cócoras, utilizando a água de uma bacia, e alisa-os sentado em frente a uma cerca, na qual pendurou um espelho[2]; e Galega compra calcinhas novas, movida pela ideia de usar peças sedutoras, masse depila sentada na boleia do caminhão, único lugar em que tem privacidade.

Ancorado na realidade social dos personagens que vagam pelo Nordeste, e falado com bom sotaque, o longa registravidas à margem: o caminhão de Galega, em alguns trechos das viagens, é filmado à distância, propositalmente para mostrar que ele transita muito distante do polo industrial da região[3]. Ademais, o mar, zona nobre, não é visto em nenhum momento do filme, vemos apenas ondas pintadas em uma pedra em meio a árvores e chão secos típicos da região agreste[4]: trata-se de uma propaganda de uma marca de roupas de praia.

As cenas típicas do cinema de arte, se, por um lado, não contribuem para o andamento da narrativa, por outro são de encher os olhos:Galega, vestindo as roupas desenhadas por Iremar e uma cabeça de cavalo de plástico, das usadas em fantasias, dança sobre um chão de areia, cercada por paredes improvisadas, feitas de plástico, sob uma luz vermelha. O espetáculo é incompreendido, talvez, pelos homens que assistem à dança e berram diante da mulher seminua, mas é planejado e executado a partir de um olhar muito sensível. Em outra cena, um vaqueiro aparece montando um cavalo que, lentamente, deita-se no chão e se deixa ser acariciado. Além disso, o espetáculo que dá título ao filme, em que um boi, coberto com tinta fluorescente, participa de uma vaquejada noturna, é bela e violenta ao mesmo tempo, e sintetiza um dos aspectos mais marcantes da narrativa. A trilha sonora, muito sutil em todo o filme, ganha força nesses planos, enriquecendo a percepção do espectador.

Boi Neon mostra como a natureza dos personagens possibilita que eles transcendam a profissão e o espaço violentos e atinjam a sensibilidade. A cena íntima entre Iremar e Geisy, por exemplo, é uma das mais belas do filme, justamente por mostrar a delicadeza envolvida no sexo com uma mulher em estágio avançado de gravidez. Assim como a pobreza não impede os personagens de desenvolver sentido estético, também não pode privá-los de sonhar: Iremar costura, à noite, em uma máquina precária e lenta, e Cacá deseja ter um cavalo, animal belo que destoa dos bois, sujos e maltratados, com os quais tem contato. Montados em cavalos, os homens subjugam os bois na vaquejada, único universo conhecido pela criança. O longa esforça-se, logo, por mostrar que o meio e o trabalho não são capazes de moldar os homens, que são sensíveis por conta de suas naturezas, a despeito do que os envolve.

Referências

MASCARO, Daniel. Boi neon. Duração: 105 min., colorido. Distribuição: Imovision. Produção: Desvia (BRA), Malbicho Cine (URU), Viking Film (HOL) e Canal Brasil.

Anexos

Imagem 1 (MASCARO, 2016, 1h:13m:32s)

Imagem 2 (MASCARO, 2016, 33m:35s)

Imagem 3 (MASCARO, 2016,1h:05m:44s)

Imagem 4(MASCARO, 2016, 14m:25s)

 

Data de submissão: 16/04/2018.

 

[1] Atividade cultural muito comum no Nordeste brasileiro em que dois vaqueiros, montados em cavalos, precisam derrubar um boi, puxando-o pelo rabo.

[2] Imagem 1

[3] Imagens 2 e 3

[4] Imagem 4