O lugar da poesia de José Albano

Miguel Ângelo Andriolo Mangini

RESUMO: Neste artigo, objetiva-se analisar a poesia de José Albano, a fim de verificar qual é o “lugar” dela, de acordo com a teoria de Heidegger sobre a linguagem. O “lugar” é uma fonte temática dos poemas de determinado poeta. Para fazer essa verificação, investiga-se o conteúdo e a forma dos versos de Albano, observando que eles evocam a solidão de diversos modos. A partir disso, propõe-se que o “lugar” heideggeriano da poesia de Albano seja a solidão, considerando que o conteúdo e a forma se referem prioritariamente a ela.

PALAVRAS-CHAVE: José Albano; Poesia e Heidegger; José Albano e Heidegger; Filosofia e Literatura; Lugar da poesia.

ABSTRACT: In this article, it is aimed to analyze José Albano’s poetry, in order to verify which is its “place”, according to Heidegger’s theory about language. The “place” is a thematic fount of a certain poet’s poems. To make this verification, the content and form of Albano’s verses are investigated, observing that they evocate solitude in diverse ways. From this, it is proposed that the heideggerian “place” of Albano’s poetry be the solitude, considering that the content and form refer to it with priority.

KEYWORDS: José Albano; Poetry and Heidegger; José Albano and Heidegger; Philosophy and Literature; Poetry’s place.

 

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo, tem-se como propósito investigar uma possível fonte temática[1] da poesia de José Albano, que é um “conteúdo-mãe” do qual os diferentes poemas desse poeta partem. O termo que Heidegger usa para essa fonte é lugar[2]. Sendo assim, a investigação se sustenta nas reflexões de Heidegger sobre o lugar da poesia, buscando propor aquele que é o da poesia de Albano, observando vários versos e estrofes seus.

Neste momento, vale uma pequena introdução ao lugar de Heidegger. Para o filósofo (2015), a poesia é muitas vezes pensada de modo enviesado, por exemplo, sob a ótica da psicanálise ou da sociologia. Tentar entender a poesia assim seria equívoco, pois isso seria observar só o que há de psicanalítico ou sociológico na poesia, isto é, só uma temática ou outra. É preciso considerar todas as temáticas da poesia de alguém para poder apreendê-la como um todo e perceber o seu lugar (HEIDEGGER, 2015).

Nesse sentido, a busca por ele tem função de encontrar uma unicidade nas temáticas abordadas pelo poeta, algo que é comum a todas elas: sua fonte. São alguns temas presentes na poesia de Albano: a melancolia, as divindades cristãs e o louvor pela cultura portuguesa clássica; além dessas, uma das principais é o louvor à poesia de Camões. A poesia de Albano tem muitas temáticas. Por essa razão, investiga-se o que todos esses temas têm em comum, o que acaba sendo investigar qual é a origem comum deles.

Tendo em vista esse objetivo de análise, toma-se como forma otimizada de organização textual a seguinte ordem: na segunda seção, discorre-se sobre a situação histórica da poesia de José Albano. Na terceira seção, elucida-se o material teórico de Heidegger sobre a linguagem. Em seguida, na quarta parte, analisa-se as várias temáticas mencionadas, organizadas em subseções. Finalmente, em “Conclusões”, finaliza-se a pesquisa com a proposta do lugar.

2 O HERDEIRO DO VERNÁCULO

José d’Abreu Albano (1882-1923) foi um poeta cearense cuja produção foi resgatada por Manuel Bandeira, organizador de Rimas (1948). Bandeira relata que só confeccionou uma antologia dos poemas de Albano após o cearense ter morrido. Em vida, a poesia de Albano foi pouco apreciada. Leonardo Mota (1936) afirma que sua morte rendeu a ele uma tumba medíocre e anônima, não chamando a atenção do público, o que a sua poesia também não fez.

A produção poética de Albano não teve repercussão muito relevante no ambiente literário do seu tempo. Talvez isso se deva à antipatia que ela expressava em relação ao tempo moderno e às novas formas de poesia. É provável que essa antipatia afastasse os leitores e tenha limitado o reconhecimento da poesia de Albano. É por isso que o trabalho de Manuel Bandeira de identificar a riqueza que o autor em questão pode oferecer possivelmente o salvou do esquecimento definitivo. Se não fosse a organização de Rimas, provavelmente não seria possível estudar os versos de Albano.

No prefácio a Rimas, Bandeira diz que “Para as novas gerações José Albano é apenas um nome […]”, apesar do “[…] inestimável pecúlio de uma poesia tão rica de sentimento, tão bela e tão pura de forma.” (1948, p. 11). O “pecúlio” ou a peculiaridade podem ser: o cunho arcaizante do conteúdo quinhentista ou o rigor clássico português da forma de sua poesia. Tais características não poderiam ter sido apreciadas pela recepção parnasiana e simbolista da poesia. Poucos as apreciaram.

O reconhecimento muito restrito da obra poética de Albano é resultado do fato de que seus contemporâneos tinham muitas ressalvas em relação a uma poesia tão arcaizante. Diante disso, tenta-se, com este trabalho, relembrar o valor de uma poesia que foi esquecida no seu tempo. Para tanto, cabe verificar a construção tanto da forma quanto do conteúdo de Albano, de modo que seja possível observar as temáticas entre as quais a poesia de José Albano transita.

Entre elas, são comuns as confissões de um eu-lírico saudosista que dá terreno e corpo à saudade: o Portugal do século XVI e o vate Camões; além disso, há uma tentativa aparente de fugir da solidão através do amparo divino; ainda, algumas rejeições às linguagens poéticas “novas” são observadas nessa poesia. Seria possível cogitar que essas temáticas são um pretexto para as confissões de uma voz poética assumidamente perturbada, de maneira que elas estivessem unidas pela “[…] inelutável tendência mórbida de seu espírito.” (SOMBRA, 1982, p. 67).

Isto é, a morbidez do espírito poético de Albano revela alguma temática de que todas as outras citadas advêm, que será investigada adiante. A poesia desse poeta é multifacetada; apesar disso, todas essas faces devem apontar para um lugar único, segundo Heidegger (2015). Nesse sentido, parte-se das reflexões heideggerianas sobre a linguagem e a poesia para observar a de José Albano, com a motivação de propor uma determinação do seu lugar. Para tanto, as reflexões são introduzidas a seguir.

3 POSSIBILIDADE, MUNDO, ENTRECORTE, LUGAR

Martin Heidegger, filósofo do século XX, refletiu sobre a essência da linguagem. Para ele (2015), o estudo sobre isso não deve levar em conta a ideia tradicional de que a linguagem é uma forma de expressar o que é interno ao humano, uma mera expressão de significados. O estudo da linguagem deve seguir por outro caminho.

Antes de mostrar esse caminho, é necessário mostrar que a teoria heideggeriana sobre a linguagem parte de reflexões ontológicas e conceitos relacionados ao ser, ao mundo etc. Segundo Zanello (2004), Heidegger afirma que existe uma dimensão em que estão todas as possibilidades de coisas e fenômenos relativos ao mundo onde o homem vive. Para entender isso, é necessário apreender a diferença entre o possível e o real, que são, respectivamente, o que pode vir a ser e o que é. A dimensão das possibilidades é o Dasein. E o que a linguagem em Heidegger faz, conforme Zanello (2004), é trazer a possibilidade do Dasein para a realidade do mundo. A função da linguagem é realizar as possibilidades.

Em outras palavras, a linguagem, para Heidegger, torna real uma possibilidade do Dasein. Ora, uma possibilidade não faz parte da realidade, porque ela é só possível e não real. A possibilidade é estranha à realidade, ao mundo, porque ela é algo estrangeiro para a realidade do mundo. Se a linguagem realiza o possível, então ela traz algo estranho até o mundo. Heidegger (2015) nomeia como evocação o processo de trazer o estranho para o real. Para ele, a evocação aproxima a possibilidade estranha do Dasein ao mundo. Para ilustrar brevemente a evocação, aqui estão alguns versos de um soneto de Albano:

Não quero mais viver sem sofrimento,
Mas a chorar me entrego e me decido
[…]. (ALBANO, 1948, p. 241).

A vontade do eu-lírico de não “viver sem sofrimento” era uma possibilidade do Dasein; contudo, ela passa a ser real quando é enunciada. De algum modo, o que é dito passa a existir na realidade: a ideia de não “viver sem sofrimento” agora está presente no mundo entre os homens, está evocada. Logo depois, o eu-lírico declara que “me entrego” ao sofrimento; ele assume realmente o que antes tinha evocado. A vida deliberadamente sofrida é evocada pelos dois versos, deixando de ser uma mera possibilidade e vindo como coisa estrangeira ao mundo. O fato de esse eu-lírico não viver mais sem sofrimento era possível e estranho; agora, é algo estranho e inédito no mundo.

O estranho inédito percorre um caminho desde o Dasein até o mundo, no processo da evocação. No entanto, há uma condição para isso: a evocação aproxima o estranho do mundo quando o estranho pode se adequar à “[…] quadratura de céu e terra, mortais e divinos.” (HEIDEGGER, 2015, p. 16). Dito de outra forma, a evocação deve trazer o estranho quando ele cumpre com o critério para “fazer parte do mundo”: estar relacionado aos quatro itens da quadratura. Se não cumpre, não há relação possível com o mundo. Aqueles versos de Albano, então, deveriam estar relacionados com o divino, o humano, o céu e a terra. O “sofrimento” está associado ao pesar e à solidão, que tem a ver com os itens da quadratura, como será dito a partir da seção 4.

A expressão “fazer parte do mundo” está entre aspas porque o evocado, por ser estranho, não é propriamente deste mundo. A estranheza é oposta à normalidade e à mundanidade. O estranho evocado deve ter relação com a normalidade do mundo, mas continua estranho por ter vindo do Dasein (HEIDEGGER, 2015). O evocado está relacionado à condição anterior de possibilidade e à atual de realidade, de forma que ele exista no mundo sendo estranho a ele (HEIDEGGER, 2015). A evocação é algo estranho que é influenciado pela normalidade do mundo, mas que guarda resquícios de estranheza. Heidegger agora tem uma metáfora para isso.

A metáfora para entender a evocação diz algo assim: uma dilaceração divide (HEIDEGGER, 2015) – cabe pensar em um corte que dilacera a pele e a divide em duas partes. A dilaceração separa duas partes e passa a ser o ponto de encontro entre elas. Duas partes têm em comum sua origem: um corte, que, afinal, divide as coisas, mas as mantém unidas por ser um ponto em comum para os dois lados do corte. É um corte entre duas partes. É daí que vem o termo entrecorte (HEIDEGGER, 2015).

Então, Heidegger (2015) conclui: há um entrecorte entre estranho e mundo. Isso é o mesmo que dizer que estranho e mundo normal têm algo em comum, apesar de serem diferentes. Eles têm certa intimidade, que é evidenciada pela evocação, que nem é totalmente do Dasein, nem é totalmente do mundo. A evocação está no entrecorte entre o mundo e o Dasein, pois ela é caracterizada por estes dois, é estranha e pertence à quadratura.

Não quero mais viver sem sofrimento,
Mas a chorar me entrego e me decido
E em toda parte seja conhecido
Quanto n’alma me dói o mal cruento. (ALBANO, 1948, p. 241).

Antes foi dito que a vida em sofrimento do eu-lírico é uma evocação. Portanto, ela é estranha e pertence ao mundo. Ela está num entremeio, num entrecorte do puramente possível e do absolutamente normal. Note-se que os dois últimos versos mostram o desejo do eu-lírico de que seu “mal cruento” “em toda parte seja conhecido”. O sofrimento deliberado tem uma grande carga de estranheza, pois sofrer é algo que se evita a todo custo, então sofrer de propósito é uma possibilidade muito improvável. Sofrer propositalmente é mais estranho ainda quando o eu-lírico o anuncia para todos, isolando-se da sociedade em sua dor. Anunciar o mal é trazê-lo para o mundo como coisa estranha. É evocar esse sofrimento, colocando-o na intimidade mundo-Dasein. Isso é feito através da linguagem, que é o evocar.

A fim de ilustrar a intimidade, cabe outra metáfora de Heidegger (2015): o estranho repousa sobre o mundo, assim como o mundo repousa no estranho. Há uma intimidade entre estranho e mundo, de modo que um repouse sobre o outro. Esse repouso significa que o estranho e o mundo conseguem se relacionar efetivamente, e o produto disso é uma evocação bem-sucedida, que guarda em si o estranho e o mundo. Heidegger (2015) chama o repouso de quietude ou quieto.

Talvez Heidegger tenha escolhido a “quietude” como metáfora porque estar quieto e calmo, em muitos casos, é não representar um distúrbio para a ordem natural e correta. Estar quieto é não desviar da correção da ordem das coisas. Quando o estranho é corretamente evocado, ele se aquieta no entrecorte. Ainda, a quietude é consonante, já que o repouso é mútuo entre os dois elementos (HEIDEGGER, 2015). O quieto consonante é o contato efetivo entre o estranho e o mundo: é uma evocação.

A linguagem aquieta o inédito estranho na normalidade do mundo, resultando na mistura entre normal e estranho. A evocação acaba aquietando o estranho no mundo, de modo que algo estranho passe a estar presente no mundo. Heidegger (2015) adiciona que a parcela estranha do evocado afeta o mundo e interfere na normalidade. Nos versos mostrados, seria possível afirmar que o sofrimento deliberado é aquietado no entrecorte pelo eu-lírico, que faz questão que todos do mundo saibam de sua dor estranha. O mundo é diferente depois da presença desse sofrimento.

Sendo assim, o ato linguístico não descreve o mundo, mas ele faz com que a estranheza aja sobre o mundo normal, dando um pouco de estranheza a ele. Pode-se chamar o dizer, ou a realização da linguagem, de poético por causa disso. A linguagem é poética e não descritiva. Porém, Heidegger (2015) pensa que há certo grau de estranheza que um dizer pode evocar: o dizer cotidiano quase não evoca, pois é uma fala objetiva sem intenção de estranheza; por outro lado, um poema evoca com excelência, pois tem a intenção e o esforço de evocar uma possibilidade muito estranha e improvável.

De acordo com essa definição de linguagem, Nunes (2000) aponta que, para Heidegger, a linguagem constrói a história de um povo, que pertence ao mundo. Segundo Nunes (2000), as evocações afetam o mundo e, por isso, o constroem. O mundo só é como é por causa das evocações que o modificaram. As possibilidades vêm do Dasein para o mundo e se tornam realidades, reformando sempre o mundo. Nunes (2000) mostra que a construção da história do mundo pela linguagem se dá sob alguns aspectos.

A linguagem, poética, inaugura algo no mundo, adiciona ao mundo algo que permanecia preso no Dasein; a estranheza do evocado afeta e define o andamento da humanidade e dos seus objetos, na medida em que as evocações adicionam novas características ao mundo (NUNES, 2000). Conforme Nunes (2000), para Heidegger, a linguagem reinventa continuamente a história, porque sempre evoca mais e mais, de modo que as velhas evocações já quase banalizadas sejam substituídas por novas, e assim sucessivamente.

Mostrar que a história é reinventada pela linguagem tem o fim de dizer que a linguagem, assumida como poesia por Heidegger, torna o mundo estranho em relação ao que ele era antes, porque algo estranho é trazido. Ora, foi preciso chegar até aqui para entender o que Heidegger define como Dasein e quadratura, evocação e a quietude na intimidade do entrecorte. Só agora é possível ir ao foco do artigo: o lugar da poesia.

Não cabe analisar a poesia como um todo neste trabalho, mas a de um poeta só. Heidegger (2015) afirma que toda a poesia de alguém vem de um lugar específico. Ele (2015) pensa que as temáticas originadas dessa poesia são diversificadas, mas é como se todas elas adviessem de uma fonte única, o que permite procurar unidade nos poemas de um poeta. Todos esses poemas e suas diferentes temáticas têm algo em comum: seu lugar. Toda a poesia de alguém faz referência a um lugar temático apenas (HEIDEGGER, 2015).

Heidegger (2015) afirma que a poesia de um poeta tem uma “essência”, uma matriz temática que é o fundamento de todas as temáticas abordadas dentro dessa poesia. Percebe-se que a temática é aquilo que foi evocado, pois é aquilo que é dito através da linguagem. Mas esse lugar não é explícito, ele deve ser investigado numa análise dos seus “afluentes”, que são as evocações encontradas nos diferentes poemas, conforme Heidegger (2015). Para propor o lugar da poesia de José Albano, observa-se como e quais temáticas a sua poesia evoca.

4 A SOLIDÃO PECA

A poesia de Albano tem um caráter solitário que, aparentemente, é ora intensificado, ora inibido pelo contato entre o eu-lírico e o divino cristão. Tudo divino é perfeito, e o poder divino cristão acolhe tudo que existe, em busca de redimir e converter o que não nasceu perfeito. Nesse sentido, a solidão é pecaminosa, porque ser solitário é, também, isolar-se de Deus e limitar o alcance divino que era para ser infinito. O eu-lírico de Albano peca ao ser solitário. Essa solidão tentará ser evidenciada com alguns versos.

Neste trabalho, “eu-lírico” quer dizer uma figura poética que sente, age, escreve etc., e é construída pelo conteúdo dessa poesia, sem ter relação com a pessoa José Albano. Agora, cabe dizer que o eu-lírico de Albano sofre uma melancolia que ele busca curar recorrendo ao plano divino. Ele contempla a possibilidade de reverter seu “pesar imenso” pela conversão cristã; no entanto, tal contemplação acompanha a consciência do desnível espiritual entre uma fonte divina de bem à sua frente e ele, imperfeito por sofrer. Veja-se:

MARIA, Mãe celeste, a quem pertenço,
Abranda um pouco o meu pesar imenso.
Abaixa os olhos lânguidos e lassos
E recebe o teu filho nos teus braços. (ALBANO, 1948, p. 134).

A consciência do desnível espiritual é a consciência da pequeneza do eu-lírico. Saber disso pode intensificar seu pesar. De qualquer modo, a estrofe permite observar que o eu-lírico prefere a dependência religiosa de Maria a ser livre, porque ser recebido pelos braços da mãe é subjugar-se ao cuido materno, à decisão da Mãe pelo filho, em oposição à liberdade da decisão própria. Ao que parece, o eu-lírico quer ser mandado pela Mãe. Não se trata de ser acolhido, mas reprimido, já que o seu “pesar” pede um controle rígido.

Ora, já é sabido que o eu-lírico quer se subjugar a Maria porque ele tem consciência do seu “pesar imenso”. É preciso notar que ter consciência do pesar, imperfeito, é reconhecer a distância em relação ao perfeito – Maria. Logo, o “pesar imenso” separa o eu-lírico de Maria. Mesmo sabendo disso, o eu-lírico diz que já pertence a Maria, ainda que peça que seja recebido por ela. Na verdade, o pertencimento dele a Maria é apenas potencial, já que a imperfeição do pesar não permite unir as duas figuras.

Assim, está aí a primeira face do pecado em Albano: o movimento desde o pertencimento a Maria até a consciência do desnível espiritual entre os dois, que impede um “recebimento nos braços” pela parte da divindade. O eu-lírico sabe da imperfeição do “pesar” e, portanto, sabe que não que não pode pertencer a Maria. Sendo assim, o pedido do abraço divino tem segundas intenções: atacar a perfeição de Maria, pois pedir “abaixa os olhos” para ver o filho é pedir que ela descenda ao nível de imperfeição do eu-lírico.

Se o eu-lírico sabe que sua imperfeição não permite a união com Maria, então o pedido de olhar abaixo e ser recebido nos braços é irônico, é uma infração cristã. Cabe perguntar quais são as implicações das segundas intenções que o eu-lírico tem ao fazer esse pedido. A infração é cristã porque limita o poder do divino, afinal Maria é impelida pela compaixão cristã a abaixar os olhos para observar e receber seu “filho” e, nesse instante, é descrita com marcas de imperfeição: seus olhos estão “lânguidos e lassos”.

Maria, perfeita, nunca estaria cansada, mas o eu-lírico guia a sua atenção até a imperfeição, a si, cansando-a e interferindo na perfeição cristã. Maria é infectada pelo eu-lírico ao ter contato com ele. Há uma ação infecciosa do eu-lírico em relação a Maria, pois esta é infectada pela imperfeição do “pesar imenso”. Os olhos de Maria ficaram “lânguidos e lassos” ao olhar para o “filho” imperfeito. Então, na verdade, o eu-lírico resiste à submissão a Maria, ele é livre desse bem divino. Resta a ele um estado de solidão,

Pois que me nascia, então,
Uma mágoa singular
Entre o sol-posto e o luar. (ALBANO, 1948, p. 21).

Nessa estrofe, observam-se dois elementos: o primeiro é o “sol-posto”, que é a luz benevolente do divino ofuscada pelo pesar do eu-lírico; o segundo é a escuridão do luar, que pode ser a inexistência, de acordo com a seguinte reflexão. O eu-lírico se encontra em um local específico depois de isolar-se do bem divino. Ora, ele está em solidão, depois de rejeitar o acolhimento divino. O divino cristão era para ser onipresente, mas não está no eu-lírico. Apesar disso, ele não vai para o luar escuro, mas está entre este e o sol-posto. Ele subsiste entre o divino e a morte completa do luar.

Isso quer dizer que o eu-lírico existe, mas solitário em relação à garantia cristã do bem. Por isso, nasce “Uma mágoa singular” no eu-lírico, entre a companhia do divino e a inexistência. A mágoa é a solidão e é singular porque é extrema, já que se dissociar do divino é um ato de isolamento extremo, considerando que o eu-lírico faz algo impossível: fugir do acolhimento divino. Ele o faz também de modo impossível: tirando a perfeição da onipresença. Ele está num vácuo próprio, restando somente contemplar seu pecado:

Se entanto de gemer me dissuade
O coração, tão cedo desgostoso,
Ordena e manda Amor que sem repouso
Tudo que sofro em canto se traslade. (ALBANO, 1948, p. 256).

A própria identidade do eu-lírico é o vácuo, porque o vácuo que ele cria é resultante do pecado de afastar o divino de si, o que implica que o vácuo é absoluto. Há apenas o isolamento para o eu-lírico, portanto a sua identidade se constrói a partir disso, e o vácuo é mantido pela contemplação do pecado que originou esse vácuo. É por isso que ele “traslada” esse sofrimento em canto, como uma contemplação poética. No entanto, não é o próprio coração do eu-lírico que o incentiva a cantar, mas outra coisa.

Na verdade, o coração do eu-lírico o dissuade de “gemer” essa canção do pecado, conforme os dois primeiros versos. O eu-lírico diz isso para mostrar que não é um simples desatino do coração que o faz cantar o pecado, mas na verdade é o “Amor”, de Maria, rejeitado por ele antes, que ordena que ele cante o pecado. Trata-se de uma ordem antagônica, pois a mera existência do “Amor” obriga que o eu-lírico cante a solidão pecaminosa, pois, cantando, o eu-lírico espanta o bem cristão, mantendo o pecado vivo.

O canto do pecado é o canto da solidão, porque o pecado é o afastamento, é o isolamento extremo mencionado. Nesse caso, o eu-lírico sofre pela distância em relação ao “Amor” e precisa continuar cantando e prorrogando a solidão eternamente, sob pena de poder voltar ao “Amor”. Dessa maneira, é possível cogitar que o eu-lírico da poesia de Albano evoca o pecado intencional e impossível da solidão, tendo como ferramenta o canto do pecado. O eu-lírico evoca o pecado cujo resultado é a solidão extrema descrita.

Para uma análise da evocação do pecado da solidão, cabe uma digressão sobre a instrumentalidade da evocação para o homem. Segundo Zanello (2004), o homem evoca através da linguagem para um favor próprio, isto é, para criar um instrumento que lhe sirva. Já que o enfoque deste trabalho é no campo poético, a instrumentalidade não precisa ser vista necessariamente para o ser humano, mas para o eu-lírico de Albano. Nesse caso, ele evoca o pecado porque ele deseja isolar-se. O pecado é instrumento para a solidão.

O eu-lírico de Albano evoca o pecado para a solidão. No entanto, restam duas análises: primeira, se o pecado está relacionado aos itens da quadratura; segunda, se o evocado é de fato estranha ao mundo. Sobre a primeira, o pecado se enquadra nos lados humano, divino, do céu e da terra: o pecado é humano porque é recorrente na humanidade, justamente por ser imperfeita e incapaz seguir com perfeição a moral cristã; de outro lado, refere-se antagonicamente ao divino: a definição de pecado é o desvio da perfeição divina.

Quanto ao céu e à terra, o pecado pode ser “localizado” em relação a esses dois ambientes: pecar é seguir um caminho oposto ao do céu. Dito de outra forma, pecar é ficar na terra e afirmar a característica de imperfeição ficando no lugar imperfeito, a terra, e tentando se afastar do céu. Apesar disso, não seria possível pecar tanto a ponto de ser excluído do céu e preso à terra. Sobre isso, é possível observar a estranheza do pecado de Albano. O pecado cumpre com a quadratura, mas é evocado com estranheza pelo eu-lírico.

Verifica-se o ineditismo da evocação do pecado através do eu-lírico de Albano. É inédito porque ofende uma tradição já banalizada. Ainda, porque o pecado isola o eu-lírico através da ofensa ao divino cristão. Assim, a procedência do pecado é inédita: limitar a onipresença divina. O efeito do pecado também é estranho à normalidade do mundo: isolar-se do bem e manter-se na solidão, o que não é normal em uma tradição humana marcada pelo acolhimento cristão. O eu-lírico confessa a tristeza da sua solidão:

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino. (ALBANO, 1948, p. 235).

4.1 A SOLIDÃO PELO PECADO

Na estrofe acima, o eu-lírico, tratado como “peregrino” ou “errante”, tem um futuro “áspero”, difícil, dado que busca manter sua solidão pecaminosa viva, “trasladando-a” em canto. Daí vem o caráter errante e peregrino. Errante é quem vagueia sem rumo; peregrino é quem viaja por longas distâncias, passando por lugares vazios entre lugares populosos. O eu-lírico vagueia ou erra por um lugar vazio: o próprio vácuo de solidão. Ao que parece, isso não é um problema para ele: o errante defende a solidão.

Para defendê-la, o eu-lírico deve agir poeticamente. Ao dizer que é poeta, o eu-lírico revela que conhece seu poder de estranheza inédita, que permitiu a ele a ofensa impossível ao divino e a consequente solidão. No entanto, cabe dar atenção ao fato de que o peregrino é ciente da tristeza que sente em razão dessa solidão. Esse fato não impede que ele continue vivendo no “áspero destino”. Antes disso, o peregrino quer cantar a solidão, porque sente prazer com ela, já que só o prazer motivaria essa resistência à união:

Se amar é sofrer tudo por um nada
E a um tempo achar que é pouco o que é sobejo,
Já claramente agora entendo e vejo
Que não há quem de amor me dissuada. (ALBANO, 1948, p. 235).

Nos dois primeiros versos, o errante explica o significado que dá a “amar”. É possível pensar que o eu-lírico vê, em “amar”, os lados negativos do coletivo. No primeiro verso, “amar” é sofrer todas as dores, mesmo que seja por nada ou pelo próprio prazer de “sofrer tudo”. No segundo verso, o eu-lírico considera que esse “amar” já carregado de sofrimento é também achar que o “sobejo” número do coletivo acolhedor é “pouco”, isto é, não tem valor para o peregrino. Se isso é amar, “não há quem de amor me dissuada”.

O eu-lírico muda o significado original de “amar”, mas o uso dessa palavra não é à toa: ela ainda remete ao sentimento prazeroso. Se ela significa agora sofrer em solidão, a palavra “amar” diz que o sofrimento provoca prazer. Ora, agora é possível considerar por que o eu-lírico peca para a solidão: ele sente prazer com seu “áspero destino”. O prazer da solidão agora é evidente, logo aquele pedido de acolhimento pelos braços de Maria tem a única finalidade de manter a relação antagônica com o divino para afastá-lo de si.

A partir desse momento, fica posto em evidência que o novo elemento da solidão pecaminosa, o prazer, é o que motiva a permanência em solidão do eu-lírico. Nesse caso, notam-se duas nuances dessa solidão: tanto a do nível do próprio eu-lírico, que se encontra no vácuo proposital; quanto a do nível divino, que diminui o divino à imperfeição para afastá-lo de si. As duas caras da solidão pecaminosa conferem um poder estranho a ela: cortar relações com o divino e diminuí-lo é estranho. A solidão do errante é divina.

Diz-se que a solidão é divina porque ela tem um poder divino. Aliás, até mesmo supradivino, porque se iguala à divindade e destrói sua perfeição. Agora, é a solidão do eu-lírico que é perfeita. No nível religioso, o eu-lírico evoca uma solidão divina e perfeita através do pecado. Afinal, pode-se dizer que o errante expurga o divino do céu e passa a residir lá sozinho, invertendo papéis da quadratura: o humano tem poder divino no céu; o divino original é enfraquecido e, portanto, não pertence mais ao céu. O cristão é afetado:

Mas, antes que te vás embora, assiste
À representação alegre e triste
Que em honra de MARIA aqui se eleva
Para apartar do mundo a escura treva. (ALBANO, 1948, p. 143).

Essa estrofe pertence ao poema “Loa para a Comédia Angélica”, em que a personagem Fé pede para o peregrino assistir à “Comédia Angélica”, em nome de Maria. Esse pedido é uma tentativa de converter o peregrino para Maria, através da Comédia. No entanto, essa tentativa não parece ser efetiva, pois a Comédia trata em grande parte do nascimento de Adão, o primeiro homem criado por Deus. Adão foi expulso do Éden por ter traído o propósito de Deus. Logo, a Comédia não inspira a cristandade, mas o pecado.

Ora, a Fé, uma personagem evidentemente cristã, pede que o eu-lírico se inspire na Comédia Angélica; contudo, a comédia é pecaminosa, porque mostra o nascimento de algo que está fadado ao pecado, como Adão esteve. Assim, o “engano” no pedido da Fé é explicado pela imperfeição que o divino cristão recebeu. O errante “toma” a perfeição do divino através da solidão, por isso a Fé, agora imperfeita, corrobora o pecado ao fazer tal pedido. Ela faz isso “em honra de MARIA”, símbolo do que se tornou imperfeito.

Ainda, a Fé faz subentender que a exposição da comédia pecaminosa apartará “do mundo a escura treva”. Nesse caso, já foi posto em evidência que o eu-lírico cria sua própria “escura treva” de isolamento e vive nela. Portanto, ser apartado do mundo na escura treva é justamente o que o errante quer, de forma que a Fé acaba cedendo a essa intenção pecaminosa de solidão, conforme se vê no último verso. A Fé introduz o eu-lírico à Comédia, mas ela, sendo pecaminosa por causa de Adão, endossa a solidão do eu-lírico.

Portanto, a solidão que o eu-lírico Albano evoca é a mais radical, já que está relacionada a dois planos que envolvem toda a existência do mundo em toda a sua cultura e tradição: o humano e o divino. Nesse ensejo, há duas faces complementares da solidão em Albano: a original da imperfeição humana e a divina, porque acaba sendo perfeita. A primeira evoca que a solidão é uma distância em relação ao divino. A partir do pecado dessa face, cria-se a segunda: a solidão é divina porque o pecado superou o divino cristão.

E corro e fujo para longe, quando
Imagino que vem surgindo um gozo,
E, nunca desejando ser ditoso,
Este meu duro estado não abrando. (ALBANO, 1948, p. 253).

Essa estrofe permite notar a insistência do eu-lírico na solidão que criou. Sua solidão é o “duro estado”, porque “corro e fujo para longe” quando algum bem aparece. Percebe-se que, além de ter um poder perfeito e superior ao da divindade cristã, a solidão pecaminosa do errante é eterna, porque ele não desiste dela, conforme o quarto verso. A não-desistência é motivada pelo prazer que ele sente com a solidão, “nunca desejando ser ditoso” e pelo “amor” ressignificado de isolar-se quando “vem surgindo um gozo”.

Dessa forma, o fato de a solidão pecaminosa do eu-lírico ser radical assim é um indicador de que ela contém a estranheza necessária para ser evocada. No caso do eu-lírico de Albano, a estranheza vem do caminho da miserabilidade imperfeita da solidão humana até a solidão com caráter perfeito, que se sobressai ao divino. Absurda e impossivelmente, a solidão é pecaminosa e também divina, e está aí a estranheza. Uma solidão impossível é evocada, mas de acordo com a quadratura, conforme a seção 4.

Uma temática ou significado que advém do lugar da poesia de Albano já é perceptível. Esse significado é composto por vários elementos, como se viu nesta e na seção anterior: a solidão pecaminosa causada pela imperfeição do humano, que acaba se tornando divina e perfeita pela ofensa ao divino cristão, e eterna por causa do prazer e do registro da solidão em verso. Assim, a solidão perfeita imuniza o eu-lírico do acolhimento divino. O seu pecado o deixa perfeitamente solitário. Portanto, sua solidão é extrema.

4.2 OITENTA SOLIDÕES

Para esta análise, o ato de escrever versos, ou o porquê de escrevê-los, também parece fomentar a solidão. Sendo assim, esta seção investiga se isso ocorre. Para tanto, lembra-se da linguagem em Heidegger (2015): a linguagem percebe o que está possível no Dasein e o evoca para a realidade. Com isso, a evocação é aquietada na intimidade do entrecorte mundo-Dasein. Na poesia, o verso é uma ferramenta para a evocação e aquietação. Assim, observa-se como a escritura de versos e o destino deles podem evocar a solidão na poesia de Albano.

Oh! triste verso meu, pois vais partindo
Por este baixo e escuro mundo em que ando
Para espalhar meu tormento infindo:

Ah! seja teu destino manso e brando.
Porém, se te alguém ler acaso rindo,
Dize-lhe então que te escrevi chorando! (ALBANO, 1948, p. 256).

O soneto desses tercetos trata do ato de escrever versos. O eu-lírico não somente escreve versos, mas também deseja que eles tenham vida longa, como está dito em “seja teu destino manso e brando”, a fim de “espalhar meu tormento infindo”. Então, nesses tercetos, o eu-lírico deseja que os seus versos de “tormento infindo” sejam espalhados entre os homens, como é evidenciado nos últimos dois versos. Neles, o eu-lírico cogita a leitura do “verso meu”, afinal, ele deseja um destino duradouro do verso entre os homens.

Em primeiro lugar, o peregrino pede que seu verso se amanse e se abrande no destino. Esses verbos são do mesmo campo semântico que aquietar. Portanto, é como se o eu-lírico desejasse que a estranheza do seu verso de “tormento” ou solidão infinda se aquiete – se amanse – na intimidade do entrecorte. Em segundo lugar, é necessário ressaltar que o mundo está repleto de leitores. Por isso, aquietar o destino do seu verso é generalizar seu conhecimento entre os leitores. O conteúdo do verso é a solidão extrema.

Em resumo, o verso do eu-lírico de Albano tem seu destino garantido pela repercussão entre os leitores. Com isso, o eu-lírico torna sua solidão extrema um conhecimento comum entre os homens. Algo absurdo, impossível e estranho é conhecido pela normalidade do mundo. Ora, tornar a solidão conhecimento comum tem uma finalidade: garantir que a sociedade perceba que o eu-lírico pode ser nocivo ao coletivo e que não tem interesse no conjunto unido. Assim, ele é excluído por todos para a solidão.

O eu-lírico transmite para o público uma imagem que seria repudiada. Dessa maneira, ele é afastado do público, da sociedade, do coletivo. O errante deseja transmitir a imagem abjeta da solidão perfeita para os leitores, para que nenhum leitor se aproxime dele. Todos passam a saber do prazer da solidão do peregrino quando ele afirma o sofrimento do seu verso, aliado à vontade de disseminá-lo entre leitores. Todos sabem que é um dano intencional, fato tão absurdo que a sociedade apartará de si o eu-lírico.

A sociedade afasta o errante, porque acolhê-lo seria acolher a destruição do coletivo. Assim como o eu-lírico destruiu a relação com o divino onipresente, ele também interferiria na sociedade para destruí-la. Então, o coletivo considera o eu-lírico de Albano uma ameaça, motivo pelo qual não o acolhe. Tudo isso era intenção do peregrino. Então, é possível observar o propósito do “verso meu”: o isolamento duplo – o distanciamento do divino e da sociedade. Duas principais evocações são vistas: a solidão divina e a social.

Neste momento, pensa-se que o propósito da escrita do eu-lírico seja tanto perpetuar a solidão, deixando-a registrada para que o pecado não morra – vide seções 4 e 4.1 –, quanto a disseminação da solidão, para que ninguém possa retirá-lo do vácuo do isolamento absoluto. O isolamento perfeito é em relação ao divino cristão e às pessoas do mundo. No entanto, esses itens se referem ao conteúdo e ao porquê da escrita. Além disso, cabe ressaltar que a própria forma ou o estilo da poesia podem evocar um sentido.

Se isso é possível, então o significado dos versos, o porquê da escrita e, agora, a própria materialidade da forma evocam a solidão. Quanto ao último item, a forma utilizada na poesia de Albano é a clássica, em grande medida; mais especificamente, a clássica de Camões. No poema “Alegoria”, por exemplo, a forma clássica é mais evidente, porque é feito em oitavas decassilábicas e majoritariamente heroicas. Usando a métrica da epopeia camoniana, o eu-lírico se “comunica” com a poesia de Camões e resgata um estilo antigo de três séculos.

Camões foi um dos fundadores da cultura portuguesa da saudade. Na poesia de Camões, o vate evoca um período de prosperidades que talvez não tenha correspondido totalmente à realidade de seu tempo. Trata-se da era das navegações. Depois do vate, o povo português percebeu que havia uma distância entre o que Camões criou e a realidade de Portugal. O reconhecimento dessa distância causa a saudade. Nesse caso, a saudade é um distanciamento. O eu-lírico usa a forma de Camões para acessar o distanciamento:

Olha que eu também canto Lusitanos,
Se não falece o fogo lá de cima,
Segundos Argonautas sobrehumanos
Que tu já celebraste em verso e rima:
Direi como venceram oceanos
E conquistaram glória que os sublima,
Chegando àquela parte desta esfera
Que é pátria da perpétua primavera. (ALBANO, 1948, p. 82).

O eu-lírico recupera a poesia camoniana, ao dizer que “também canto Lusitanos”. A recuperação da forma clássica de Camões tem um objetivo dentre outros: acessar a forma do verso em que o vate português cantou a saudade, pois é como se a melhor maneira de evocar a saudade fosse através da forma instituída por Camões. O eu-lírico usa a forma clássica para evocar a saudade. Além disso, ele resgata a poesia de Camões através do conteúdo.

Os versos acima pertencem ao poema “Alegoria”, que retrata um episódio em que nautas portugueses partem para a conquista de uma nova ilha, exaltando o triunfo e a glória deles. É praticamente um outro canto d’Os Lusíadas. A saudade é a temática presente, na medida em que o eu-lírico versa sobre o tempo próspero das navegações, sobre “como [os navegantes portugueses amparados pelo poder divino] venceram oceanos”. O eu-lírico declara a vitória dos portugueses, pois chegaram a mais um objetivo das navegações: a “pátria da perpétua Primavera”. Importa neste trabalho o fato de que o errante canta um tempo muito distante. A saudade faz referência ao passado, como fica claro pelo conteúdo. O passado é a distância do presente e, portanto, da realidade. Cantar um tempo passado é cantar o que não existe.

Há duas nuances para analisar a evocação do passado. A primeira é que: o passado é um tempo distante do presente em que o mundo está, e o eu-lírico se coloca na época das navegações, em um tempo distante. O peregrino “também canto Lusitanos”, voltando ao século XVI, distante do seu século XX. Ninguém mais está no século XVI, justamente porque ele é passado e, portanto, não existe mais. Apesar disso, o eu-lírico de Albano canta o passado, o que acaba sendo um distanciamento do presente e do real. O peregrino se isola do presente.

A saudade é o movimento melancólico para o passado. Logo, o eu-lírico evoca a saudade para ir ao passado e preservar a melancolia da sua solidão. Ele fica solitário em relação à realidade presente: nada mais pode acessá-lo. Sua solidão é divina e perfeita, provoca a abjeção da sociedade, para que nenhum leitor tenha compaixão por tamanha solidão; agora, nada mais pode acessar o eu-lírico: ele nem sequer está na realidade. Outra vez, a poesia de Albano evoca um estado impossível: uma solidão inclusive da realidade.

A segunda nuance da evocação do passado é: significar um tempo de vitórias e triunfo em que o eu-lírico realmente não está. Nessa nuance, o errante, preso ao presente, sofre a distância de um tempo de prosperidades, o das navegações; ele sente saudades disso. Talvez, no passado, ele não precisasse da solidão. Nesse caso, a saudade representa a distância. Então, evocar o passado contrasta um tempo bom com o presente triste em que ele está só, em que não tem a companhia real dos “Argonautas” lusitanos.

Tal a meiga alegria vai fugindo
Da alma cândida, amável e sincera
Mas logo torna em riso ao rosto lindo
E ao coração que ardentemente a espera:
Puro contentamento está sentindo
A gentil e mimosa Primavera,
Porque da Língua Lusitana sabe
Não deixará que a poesia acabe. (ALBANO, 1948, p. 105).

A “Primavera” é uma deusa que convida os navegantes portugueses a povoar uma ilha ainda não explorada. Ela os recebe com solenidade e muita alegria, prevendo as prosperidades do português. Quando ela exalta os nautas, lembra-se de um outro povo que considera igualmente grandioso e triunfante: o da Grécia Antiga. A “Primavera” passa a falar daqueles gregos e, de repente, se dá conta de que eles não existem mais. E “a meiga alegria vai fugindo” da sua “alma cândida”. Porém, ela se dá conta logo em seguida de que está diante de um povo excelente como o português. O “contentamento” “torna em riso ao rosto lindo”.

No primeiro momento, a deusa fica triste por não viver mais no tempo da cultura grega, ela sente saudades de um tempo melhor. Esse é precisamente o sentimento saudosista do eu-lírico na segunda nuance de análise. O eu-lírico evoca um tempo de triunfo português, enquanto que não está nele.

No segundo momento, a deusa recupera sua “meiga alegria”, pois o povo português está aí para dar continuidade à grandeza do grego. Nesse caso, nos dois últimos versos, a deusa associa a grandeza dos portugueses à sua “Língua Lusitana”. Isso é também dizer o que há de maior valor nesse povo, pois este perpetuará sua grandeza através “poesia”; contudo, é também dizer qual é, provavelmente, a única coisa que sobreviverá da cultura desse povo, enquanto que o resto perecerá por não ser tão grandioso como a “Língua”, que é justamente o que a deusa ressalta. O povo português é “excelente” na medida em que tem a língua que tem. A “Primavera” considera essa poesia tão grandiosa que “Não deixará que a poesia acabe”.

A alegria renovada da “Primavera” vem do fato que ela “sabe” que, de tudo, a poesia “da Língua Lusitana” não acabará; portanto, a memória portuguesa permanecerá viva através da poesia. A durabilidade da poesia mostra que já houve um Portugal triunfante que atingiu sua glória amparado pela beleza de sua língua. Com a memória através da poesia da “Língua Lusitana”, o eu-lírico provoca um contraste entre o seu presente e o passado próspero.

Nessa segunda nuance, o eu-lírico sente tristeza em razão de estar em um tempo ruim, pois é distante do tempo próspero, assim como Primavera se sentiu primeiramente. Ele ainda gratifica a sobrevivência da poesia lusa, pois pode registrar essa tristeza através dela. A lembrança feita no presente é de um tempo distante, feita para evocar um distanciamento. A distância cresce constantemente, já que a memória do tempo bom é apagada conforme o tempo passa. Ora, a primeira nuance é que o eu-lírico se coloca no passado para isolar-se da realidade presente, para estar solitário e inacessível.

Essas duas nuances unidas dizem que o eu-lírico se isola do real, porque o presente está constantemente mais distante do tempo passado das navegações. Note-se que não é o caso de o foco da poesia de Albano ser a saudade portuguesa, mas a saudade do triunfo português é um caminho para chegar na solidão da realidade. O passado não existe, o presente está em derrocada eterna, porque está mais e mais distante de um tempo bom, mesmo que esse não exista: resta a solidão absoluta da realidade. E a “Língua Lusitana”.

A solidão é o isolamento da realidade, e a “Língua Lusitana” a acompanha, registrando-a. Nesse caso, pode-se pensar que o eu-lírico dá tamanho valor à língua em que escreve porque é através dela que ele pode registrar toda a solidão absoluta. Assim como a Primavera, o eu-lírico vê algo de grandioso, apesar da distância da cultura grandiosa: a língua portuguesa. A escolha pela “Língua Lusitana” se dá porque ela permite os movimentos passado-presente, em relação à história lusitana, para o errante criar sua solidão da realidade. O eu-lírico evoca a solidão impossível da realidade, por meio do distanciamento do passado e do presente, tornando-a intocável por qualquer coisa real.

Camões canta que o triunfo passado das navegações é de autoria divina em grande medida. O povo português, saudosista, se inspira na imagem do passado vitorioso. Portanto, a evocação da solidão da realidade é aquietada na intimidade do entrecorte, porque as navegações portuguesas contaram com a ajuda dos deuses, assemelhando um país da terra a um país do céu e os homens navegantes a “Argonautas sobre-humanos”, isto é, navegantes deuses. Isso é o passado, o presente é a lembrança portuguesa disso.

A quadratura é garantida pela relação que o presente português tem com o passado do século XVI. De outro lado, a estranheza da solidão em relação a isso tudo vem do fato que ela é uma fuga disso tudo; aliás, o eu-lírico resgata elementos do passado e do presente e constrói com eles essa solidão específica da realidade. Nesse ensejo, o peregrino evoca uma solidão absoluta e impossível, que se sobressai ao tempo. O poder divino permite isso.

4.3 O RIGOR SOLITÁRIO

O eu-lírico de Albano faz uso da história camoniana do Portugal do século XVI e cria uma solidão específica. Até então, a solidão do errante é perfeita, divina, imune à sociedade e inalcançável, por estar fora do tempo das coisas. Essa última característica está relacionada ao conteúdo histórico que a poesia de Albano alcança através da poesia camoniana, conforme a seção 4.2. Observou-se que a forma usada pelo eu-lírico também contribui muito para a evocação do passado. Agora, caberia observar algumas implicações linguísticas e poéticas dessa forma, que tem teor passadista no século XX.

Agora, a evocação da linguagem é sobre a própria linguagem. Nesse caso, a decisão formal do eu-lírico tem uma carga de estranheza. O uso da forma clássica em pleno início do século XX é estranho à poesia: a forma clássica está ultrapassada para os contemporâneos modernos de Albano, bem como para o público em geral, que não tem mais muito contato com esse tipo de linguagem. Mas o eu-lírico enfatiza a estranheza do uso da forma clássica, valorizando o que é estranho e desvalorizado no século XX:

Outros andam o teu sublime aspeto
D’ornamentos estranhos encobrindo
Sem saber o que tens de mais secreto,
De mais maravilhoso e de mais lindo:
Em ti já não se nota o mesmo agrado
E eu não te reconheço,
Se o teu valor e preço – é rejeitado. (ALBANO, 1948, p. 76).

Nessa estrofe, fica em evidência o que o eu-lírico considera quanto à linguagem recente, ou a que não é a antiga. A linguagem nova tem apagado o “sublime aspecto” da língua, isto é, o rigor clássico português, “encobrindo” todo o seu mistério e sua beleza com “ornamentos estranhos”. Para o eu-lírico, a nova linguagem ofusca o verdadeiro “valor e preço” da língua portuguesa. O eu-lírico dá continuidade à poesia “da Língua Lusitana”, não deixando que ela seja esquecida. Assim, ele mantém uma conexão com o passado clássico de Portugal.

Já é sabido que se voltar ao passado é se distanciar do presente. Portanto, é possível pensar que o eu-lírico considera a forma clássica portuguesa a melhor para traduzir sua solidão porque ela é a que implica um distanciamento das formas poéticas mais usadas na sua época. Usar uma forma divergente é não se unir ao coletivo da forma recorrente. O peregrino se distancia das linguagens poéticas que formam um coletivo de uso, ficando assim solitário no âmbito da produção poética. O errante é um poeta solitário:

Quanta e quamanha dor me surge e nasce
De nunca ouvir aquele antigo estilo,
Mas eu fiz que ele aqui se renovasse
Para que o mundo enfim pudesse ouvi-lo.
E com todo o poder d’engenho e d’arte
Foi sempre meu desejo
Ver-te qual te ora vejo – e celebrar-te. (ALBANO, 1948, p. 76-77).

Essas duas últimas estrofes pertencem ao poema “Ode à Língua Portuguesa”. Nele, o eu-lírico saúda a língua portuguesa clássica, consolidada por Camões. Nessa estrofe, o errante declara o resgate do “antigo estilo” e a aversão ao estilo novo de sua época. Ora, o desejo do eu-lírico é renovar, reviver esse estilo solitário “Para que o mundo enfim pudesse ouvi-lo” – a seção 4.2 trata do conhecimento geral da solidão. Agora, cabe investigar por que o eu-lírico usa e celebra a forma clássica. Celebrar é saudar a existência.

Saudando a existência da forma solitária, o eu-lírico diz que ela está adequada perfeitamente para traduzir a solidão, para que “Tudo que sofro [a solidão] em canto se traslade”. Todos os atributos de perfeição e eternidade da solidão só podem ser ditos e criados através de um estilo solitário. Assim, a solidão do peregrino é caracterizada pela forma que ele usa para traduzi-la: a forma clássica, que é solitária no século XX. O uso dessa forma torna o eu-lírico solitário também no campo poético, porque ela não está frequente.

Contudo, qualquer outra forma solitária, em desuso, no século XX poderia ser usada pelo eu-lírico para traduzir a solidão adequadamente, mas ele escolhe a camoniana clássica pela carga semântica de saudade que ela traz, o que implica distanciamento, conforme a seção 4.3. A solidão formal acompanhada do distanciamento pelo conteúdo camoniano é perfeita para a ação poética do eu-lírico. Ainda, note-se que a solidão do eu-lírico foi criada através da sua escrita. Versos foram tudo que ele materialmente fez.

Sendo assim, o eu-lírico se dedica apenas a escrever sua poesia, que é sua ferramenta para criar a solidão. Logo, ele está no campo poético – o único em que ele de fato está. Tudo que o eu-lírico criou foi através da poesia. Todo o seu esforço é para a poesia. Se a forma de sua poesia é solitária, então ele é solitário em tudo que faz. A solidão do errante ocupa toda a sua vida, graças à forma que usa. Isso ocorre porque a forma clássica evoca a solidão no campo poético; ela afasta qualquer outra forma de si.

Ah! como assim me enlevas e me encantas,
Ora chorando e rindo, ora gemendo;
E se te outros ofendem vezes tantas,
Embora solitário, eu te defendo:
Eu te defenderei sem ter descanso
E em luta não inglória
Tu verás que a vitória – e a palma alcanço. (ALBANO, 1948, p. 76-77).

Nessa estrofe, fica exposto que o eu-lírico defende a língua portuguesa contra os que a “ofendem vezes tantas”. Ele o faz celebrando o “antigo estilo”, mas o faz solitariamente, conforme o quarto verso. Sobre este verso, a análise assume que a solidão do eu-lírico não impede que ele defenda seu estilo; aliás, a solidão é necessária para celebrar tal estilo, conforme se viu aqui. Portanto, o errante defende o “antigo estilo” solitariamente. Ele é apenas um contra todos “outros”, por isso sua luta é “não inglória”.

Muitos ofendem a língua, mas o eu-lírico a defende gloriosamente, e a luta é mais gloriosa ainda quando o errante obtém vitória e grande sucesso, como os dois últimos versos dizem. De fato, ele vence nessa defesa. A vitória é observável na própria poesia de Albano, porque o fato de ela existir já é uma vitória. A existência de poesia clássica e camoniana no século XX é uma defesa desse estilo, porque o protege do esquecimento, registrando-o. É possível perceber dessa vitória que o eu-lírico evoca a solidão poética.

Esta seção tenta pôr em evidência o caráter poético da solidão do errante. A poesia de Albano evoca a solidão no nível poético. Ora, todas as criações do eu-lírico são através da poesia, então a vida dele é a produção poética. O errante usa a forma camoniana, que impõe um distanciamento em relação as outras produções poéticas, no século XX. Ele está solitário na produção poética, portanto ele é completamente solitário. Assim, o eu-lírico evoca uma solidão totalizante que o exclui da interação, mesmo no seu campo de atuação.

O evocado deve ser estranho o suficiente e pertencer ao mundo o suficiente para se aquietar na intimidade do entrecorte, como já se sabe. Então, a parcela estranha da solidão totalizante do campo poético é que o eu-lírico é excluído do único coletivo em que se insere. Comumente, a linguagem é usada para ser entendida e para ser absorvida pelo leitor[3]. A solidão poética é estranha na medida em que faz uso de algo essencialmente coletivo para isolar-se: a linguagem. O errante deforma a linguagem para seu fim solitário.

O aspecto solitário da forma camoniana se sobressai ao coletivo da linguagem, no século XX. O eu-lírico se aproveita da essência coletiva da linguagem para manter uma relação antagônica ao coletivo: a solidão. O eu-lírico comunica sua solidão poeticamente, e por isso sua solidão é criada. Ele ataca o divino, afasta-se da sociedade, acessa a saudade portuguesa para criar o distanciamento e contrapõe a sua linguagem a outras, através da comunicação linguística. O eu-lírico foge de qualquer coletivo por meio da comunicação.

A estranheza da solidão poética vem do fato que o peregrino reverte o valor coletivo da linguagem, usando-a para isolar-se. Essa é uma característica da solidão do campo poético. Mas a solidão poética totalizante não é de todo estranha. De fato, o eu-lírico reverte o valor da linguagem, mas ele ainda precisa da comunicação para obter a solidão. Assim, o teor linguístico da poesia mantém a solidão poética associada ao homem e ao coletivo do homem. A linguagem é utilizada para as coisas da terra e do céu.

Nesse sentido, a matéria da poesia, a linguagem no sentido tradicional abrange por si só a quadratura, pois serve para o homem se comunicar sobre coisas do céu e da terra, do divino e do próprio mortal. A solidão poética é ancorada nas características normais da linguagem, que compõem a quadratura. Enquanto a estranheza é o uso dessas características para criar algo contrário à expectativa da linguagem, a quadratura é presente na solidão poética, porque não é possível criar tal solidão sem usar a quadratura da linguagem.

Sendo assim, a solidão poética é evocada e aquietada na intimidade do entrecorte mundo-Dasein. A solidão do eu-lírico é perfeita, divina, imune à sociedade, da realidade e, enfim, totalizante, por ser poética. Cada uma dessas características é uma evocação, de acordo com a definição de Heidegger. A poesia de Albano evoca. Todas essas evocações são diferentes em um certo grau, mas elas todas se referem a uma temática central. Esta análise propõe que todas as evocações advêm da solidão e se referem a ela.

5 CONCLUSÃO

Heidegger (2015) trata o lugar da poesia como uma fonte conceitual de que toda a poesia de um poeta advém. Para o filósofo, todos os poemas de um poeta são feitos a partir de um só lugar. Contudo, este artigo não é suficiente para encontrar a fonte absoluta de toda a poesia de José Albano. Na verdade, encontrá-lo parece ser impossível. Dadas essas limitações, esta seção termina a análise com uma proposta de lugar, de acordo com as evidências encontradas. Assim, propõe-se que o lugar da poesia de Albano é a solidão.

As seções de análise deste artigo buscaram mostrar evocações da poesia de Albano, observando que todas se ancoram na solidão e atribuem significados adicionais a ela. Primeiramente, cabe lembrar do pecado. A miséria do eu-lírico é pecaminosa. Com isso, o errante afeta o plano divino, e sua solidão miserável agora se torna divina, porque foi mais poderosa que o poder de Deus. O pecado acaba resultando no caráter divino e perfeito da solidão. Nesse sentido, a solidão é livre da ameaça da compaixão cristã.

O pecado do peregrino se refere à solidão na medida em que atribui a característica de perfeição divina a ela. Assim, a poesia de Albano aquieta a perfeição divina da solidão na intimidade mundo-Dasein. Ela traz a solidão perfeita para o mundo. Quando isso acontece, a solidão extrema pode ser observada pelo homem. Outro objetivo do eu-lírico se completa: o verso que contém a solidão passa a ser conhecimento comum na terra. O errante deseja que os homens conheçam sua solidão, que seu verso se espalhe pela terra.

Ora, o desejo da socialização do verso se refere à solidão, na medida em que a torna imune à sociedade. O homem, naturalmente coletivo, sente receio da solidão, portanto o eu-lírico é ainda mais excluído. A sociedade não tem pretensão de salvar o eu-lírico da solidão, porque tem medo de ser infectada. Assim, o ato de escrever espalhando versos é para a solidão imune à sociedade. Até então, o eu-lírico criou a solidão divina e a imunizou contra a sociedade. Isso é solidão, com diferentes atributos dados pelo errante.

Todas as caracterizações da solidão mostradas são complementares para uma solidão absoluta. Para que seja absoluta, o eu-lírico leva a solidão para um nível ainda mais radical. Trata-se da solidão da realidade. O louvor a Camões e ao Portugal do século XVI significam a saudade. A saudade na poesia de Albano tem um fim: sair do tempo das coisas. O eu-lírico não está mais no tempo de qualquer outra coisa. Ele está num tempo próprio, está solitário na realidade do tempo. Nada pode acessá-lo para cancelar a solidão.

O louvor a Camões e ao Portugal do século XVI resultam na saudade. A saudade se refere à solidão na medida em que a torna mais extrema, imunizando-a pelo tempo. A saudade evoca uma solidão em relação à realidade das coisas, e por isso a solidão é em relação a tudo. A poesia de Albano evoca a solidão da realidade, de modo que o eu-lírico esteja inacessível em relação a tudo. Ainda que a solidão já seja máxima, o eu-lírico adiciona outra característica a ela: a totalização no seu campo de atuação, o poético.

O eu-lírico se dedica totalmente à poesia. Tudo o que ele faz é resultado da produção de versos. Mas a produção dos versos de Albano é feita através de uma forma solitária. A forma usada pelo eu-lírico é a clássica de Camões, do século XVI, mas no século XX. Portanto, a forma é solitária. O resultado do uso de uma forma solitária é o isolamento no campo poético, porque o errante está solitário na produção poética. É ele que defende esse estilo do esquecimento, enquanto outros poetas usam outras formas.

Assim, a forma camoniana do eu-lírico evoca a solidão do campo poético. Em outras palavras, o estilo usado pelo eu-lírico se refere à solidão na medida em que ele a torna totalmente abrangente na vida do eu-lírico. O errante se dedica apenas à poesia, o uso dessa forma é para excluí-lo do coletivo da produção poética. Participar do campo poético parece ser estar num coletivo, mas evocar a solidão poética enfatiza que o errante está só, mesmo no que seria um coletivo. Todas essas evocações apontam para um lugar.

A partir dessas considerações, o lugar da poesia de José Albano é a solidão. As evocações expostas caracterizam a solidão, então todas elas se referem à solidão. As evocações encontradas se referem à solidão, tanto as suas parcelas estranhas quanto as normais, da quadratura. Cabe relembrar que a linguagem é o ato de trazer algo estranho ao mundo, para Heidegger (2015). O poeta é quem faz isso com excelência. Então, o eu-lírico evoca o lugar solidão com excelência ou com efetividade.

Uma evocação normal, de linguagem corriqueira, tem um grau baixo de poesia, porque a estranheza da evocação é quase imperceptível. Uma evocação assim teria um prazo de vida curto, porque se tornaria banal rapidamente. Todo evocado está sujeito a perder sua estranheza e passar a fazer parte apenas do mundo. De outro lado, este trabalho observa que a excelência da evocação do eu-lírico vem do fato que a estranheza é suficiente para que ela nunca se banalize. O lugar da poesia de Albano existe como estranho para sempre.

A solidão da poesia de Albano foi feita para durar eternamente na intimidade do entrecorte, sem que ela perca seu estado poético de estranheza. Deixar de ser estranho é tornar-se banal ou normal. Ser normal é se unir a um todo de normalidades já conhecidas e não inéditas. A solidão do eu-lírico, estranha, existirá para sempre, porque não pode se unir ao coletivo do que já é habitual no mundo. Ela não pode sequer se unir a algo. Enfim, propõe-se que o lugar da poesia de José Albano é a solidão e que, além disso, ela nunca “morrerá”.

REFERÊNCIAS

ALBANO, J. de A. Rimas. Organização Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Pongetti: 1948.

BANDEIRA, M. Prefácio. In: ALBANO, J. de A. Rimas. Rio de Janeiro: Pongetti, 1948. p. 5-11.

HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Tradução Marcia Sá Cavalcante Schuback. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2015; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015.

MOTA, L. O esquecido de hoje. A razão: Independente, Político e Noticioso, Ceará, v. 7, p. 23, jul. 1936. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=764450&pesq=Jos%C3%A9%20Albano&pasta=ano%20192>. Acesso em: 1 ago. 2017.

NUNES, B. Heidegger e a poesia. Natureza Humana, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 103-127, jun. 2000. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302000000100004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 out. 2017.

SOMBRA, J. José Albano. Revista da Academia Cearense de Letras, Fortaleza, v. 88, p. 62-74, 1982. Disponível em: <http://www.academiacearensedeletras.org.br/revista/revistas/1982/ACL_1982_13_Jose_Albano_Jose_Sombra.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2017.

ZANELLO, V. A linguagem poética em Heidegger. Educação e Filosofia, Brasília, v. 18, n. 35/36, p. 279-310, jan./dez. 2004. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/viewFile/595/539>. Acesso em: 13 set. 2017.

 

[1] “Temática”, ou “tema”, como é usado aqui, é a significação da poesia. Tudo na poesia tem um significado: o conteúdo e até mesmo a forma significam, e esse significado é a temática. Tudo que um poema significa é a sua temática.

[2] Os conceitos de Heidegger mais fundamentais neste trabalho serão escritos em itálico.

[3] Esta parte da investigação da estranheza da evocação da escolha formal do eu lírico de Albano preconiza uma definição tradicional de linguagem: ferramenta coletiva para comunicação. Não é usada aqui a definição de Heidegger porque, para esta análise, a estranheza que o eu lírico busca gerar com sua forma é em relação à linguagem no sentido mais usual e conhecido, não à linguagem segundo Heidegger. A definição de Heidegger da linguagem é usada neste artigo para analisar a poesia de Albano, evidentemente sem pressupor que as definições do filósofo sejam o conteúdo dessa poesia.