Equicídio ou testemunho da cena televisionada
Charles Thibes Sarmento
Um homem que tinha dinheiro
e amava os animais.
Também amava as pessoas.
Até aquelas
que não eram legais.
Tinha hábitos rígidos.
Sempre, às vinte e três,
todo o dia,
todo mês,
ia ele alimentar os que amava.
Pra hora não ligava,
tinha tempo, paciência e brio.
Mal sabia que sua vida
estava por um fio.
Certa noite, às vinte e três,
seu último dia,
daquele derradeiro mês,
Sentiu o beijo frio,
atroz.
Só houve um suspiro,
tombou inconsciente,
sem tempo, paciência ou brio.
Vida ceifada sem ver o porquê,
nem saber o quê ou quem…
Só deram falta do corpo às seis.
Investigação em transcurso…
Deram por culpado o amigo
que ele alimentava.
Pois do corpo inerte
Sobressaia a ensangüentada face.
Obra sem sentido daquela
portadora da foice.
Mas o investigador perspicaz
desconfiou desse desfecho tolo demais
e descartou a hipótese de coice.
Tomou um caminho inquisitivo e solitário,
pois queria descortinar a verdade,
daquela morte planejada, sobre o mandatário.
Eis que todo o método sistematizado
o bom resultado traz,
descobriu-se sobre o triste fim
do homem que amava os animais
e as pessoas nem tão legais.
Fora morto a golpes de vergalhão,
sem dó, nem compaixão
pela própria esposa,
apostadora contumaz,
em corridas de cavalos.
Com a apólice de seguro
ela vislumbrava possibilidades totais.
***
Tentando capturar a vida e torná-la celulósica
Charles Thibes Sarmento
Clic
A primeira tentativa falha,
Minhas ideias estão ainda acorrentadas à vontade
Da louca passagem figurativa e sua captura.
Clac
Foi sim, foi um baque,
Ver crescer o orbital,
O dinheiro animal,
Que forjou no homem o modelo do etecétera científico e tal,
Daquela máquina real
Que de tanto iluminar nos fez passar mal.
Pegar a alma da imagem e passar para o escuro,
Contraste de cima do muro,
Fitar o segundo,
apoderar-se do mundo,
daquele negativo animal.
O qual um dia
Foi homem,
Agora é figura sem sal,
transpassada à açoites de luz,
àquela folha gravitacional.
Clic.
Clac.
Pode-se fechar o álbum.
Vai um lambe-lambe aí?
Não, não,
talvez prefira o digital.
***
Brasil a fundo(a)
Emmanuel Fritz
Respirou o ar em mais um amanhecer,
acendeu o tabaco bolado
pois o café
há muito
já estava pronto.
Hábitos do dia-a-dia
no dia há o dia.
O café aquecia
de gole em gole
a garganta do pobre velho
que em fria noite adormecera
e em dia frio acordara.
Alternava;
tragava e bebia
hora café,
hora tabaco,
e assim o corpo
de pouco a pouco
fervilhava em meio ao frio,
frio habitual:
Ah, o hábito!
singelo e discreto,
torna-se personagem-recurso
recurso que se torna personagem
da vida
do velho pobre
que tanto almejou
que tanto sentiu
que já não mais se aquecia
que empalideceu
que já não sentia mais o frio,
nem o aquecer
do tabaco
que já não queimava mais
nem do café
que
corpo
de
fundo
fazia.
Assim, na solidão, compadecia
o corpo
defunto
do pobre velho
que vivia o dia-a-dia
e a cada dia se perdia
na rotina frustrada
do brasileiro
que almeja e nunca alcança
que vive defunto
que morre corpo de fundo
que perece no fundo,
bem lá no fundo,
no fundo do poço.
***
correspondência
Fernanda Martins
anos atrás existiu alguém
junto existiu certa pasta rosa
que acreditam (parecem acreditar,
é o que digo) que a pasta, veja bem
tal pasta rosa
é tão importante, é mais importante
aquele alguém, my dear
pretérito perfeito do indicativo:
existiu
a pasta existiu
existiu a mulher
hoje existo sem pretensões
credo em cruz deixar para trás
da cor que seja
ao rosa odeio
lancem tudo ao mar!: tenho paixão, sim
mas também tenho pudor
***
búzios, abril de 78
Fernanda Martins
[imagina uma polaroid
hoje é o dia do meio do mês
hoje descobri qu’a quarenta exatos
anos, anos atrás
elas em três dias inventaram
escreveram produziram editaram
o que tenho passado
estes anos debruçada-pendurada
agora, o verso]
ana: abril é o mais curioso, não sabe?
tudo o que perco é sempre em abril
certa melancolia nem sei
só que é inócuo o suicídio no agora
neste ridículo terceiro milênio
hoje sinto mais falta do que não houve
e de você, que nunca vi
***
Poeria Teosia
Karyna Landra Marcelino
Escrevo esse poema
Sem saber o que é poesia.
Mas o que é poesia?
Alguém tem uma teoria?
Sei que Boileau ditou as regras
E o povo as seguiu
Mas o que é teoria?
Alguém tem uma poesia?
Baudelaire chegou quebrando tudo
Trazendo consigo novas formas
Mas o que é alguém?
Poesia tem uma teoria?
Eu escrevo agora porque me
Deu vontade de ser poeta
Alguém, o que é poesia?
Mas tem uma teoria?
Sei que poeta não quero ser
Pois captar poesia é difícil
Mas tem uma poesia?
Alguém, o que é teoria?
A crítica é dura
Nada está bom
Alguém tem uma teoria?
Mas o que é poesia?
A não ser quando o poeta
Morre, daí ele volta a viver
Poesia o que é?
Teoria alguém tem?
***
Oração da solidão
Miguel Ângelo Andriolo Mangini
Pai d’Evidência, Deus eternamente,
E sendo o Pai, perdoa a lira rude,
Deus luzindo, das Musas novamente
Escuta o conversar da solitude
Reluzindo nas águas a certeza
Do engenho certo e puro,
Inda que seja escuro – e a tristeza.
Ilumina a Língua para chamar-Te
E Te alcançar no engenho sobre-humano,
A Lusitana, que celebra a arte,
Sabendo o que é sagrado e o que é profano,
Semideusa e garante a elevação,
Do que cantas e é amável
Exato e mais cantável – solidão.
Não Te ofendas co’o largo vitupério
Das línguas novas, mas ouve outra vez
A que do tédio e da mágoa é o império:
Deus, sendo o mais só, fala Português.
Das musas ouve o choro ressoante
Que a solidão conduz
Rebrilhando a Tua luz – e ecoante.
Dizer divino mais bonito e brando,
Co’a doçura traslada a pobre alma,
Vindo o tormento risonho e chorando,
Ao Jardim, do chão em sofrida calma,
Porque de Deus sendo o melhor vizinho
Suspira a qualidade
Maior co’eternidade – ser sozinho.
Língua Mãe, oblitera o secundário:
Não toleres o corpo nem o afeto
Se o final é o tédio solitário,
Enche um vazio de lírica repleto
Enlevando o silêncio co’o teu som,
Qual da glória sublime,
Por que assim Deus estime – o Seu tom.
Senhor, da graça o alto firmamento
Amou durante invernos e verões
A Lira, que lamenta em complemento
José Albano ao Pai Luís de Camões,
Dizendo a alma em mágoas mergulhada
E gotejando o choro
Que as Musas cantam em coro – que é d’um nada.
Língua Mãe, une o fraco ao Ser sobejo,
Por que, orando à Perfeição superna,
Haja um só, que é sozinho e sem desejo,
Pois cantasse o teu filho a Voz materna:
Língua, da solidão és pioneira,
Surgindo em Portugal,
Também és tropical – e Brasileira.
Segura no teu peito os filhos teus,
E os leva, Ó Musa, em clássica poesia,
Se vivem só em tédio, ao abraço em Deus,
Juntando o sofrimento à galhardia.
E, Ó Senhor, a solidão corteja,
Que da Musa já vem,
Naquele canto, Amém – e que assim seja.