Uma representação do corpo feminino na obra de Ercília Nogueira Cobra

Kátia Cardoso Nostrane

RESUMO: Por meio da análise da obra Virgindade inútil: novela de uma revoltada (1996), de Ercília Nogueira Cobra, pretende-se investigar o caráter emancipatório da personagem principal Cláudia, alcançado por meio da liberação de seu corpo. A protagonista é uma jovem que, inconformada com a educação dada às mulheres e com a dominação que os homens detêm sobre os corpos delas, resolve sair de casa e ir ao encontro de um novo destino. O percurso de vida da personagem é dividido em três etapas que contemplam as diferentes representações e transformações que seu corpo passa ao longo da história, cujo estudo é subsidiado pelas conceituações propostas por Elódia Xavier, no livro intitulado Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino (2007). Também são utilizados teóricos como Michael Foucault (1988), Pierre Bourdieu (2012), Simone de Beauvouir (1980), para contribuir com a análise de cada fase vivenciada pela personagem. Dessa forma, o estudo realizado sistematiza as relações entre aspectos representativos do corpo e do universo feminino, possibilitando o desenvolvimento de uma crítica literária centrada na figura feminina, levando em conta o contexto sócio-histórico.

PALAVRAS-CHAVES: Corpo feminino. Emancipação. Ercília Nogueira Cobra.

SUMMARY: Through the analysis of Ercília Nogueira Cobra’s narrative Virgindade inútil: novela de uma revoltada (1996) this paper intends to investigate the emancipatory character of the protagonist Claudia, a young woman achieved her emancipation through the liberation of her body. She is unsatisfied with the education offer to women and the domination men have over female bodies. Thus, she decides to leave her home and go to a new destination.  The course of her life is divided into three stages that contemplate different representations and transformations her own body undegoes along the story. This study is supported the concepts proposed by Elodia Xavier in the book named Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino (2007), as well as other authors, for instance Michael Foucault (1988), Pierre Bourdieu (2012) and Simone de Beauvoir (1980). Their endowment for the analysis of each phase that was experienced by the protagonist. This study systematizes the relations between representative aspects of the body and the female universe, therefore enabling the development of a literary criticism focused on the female figure, taking into account the narrative’s socio-historical context.

KEYWORDS: Female body. Emancipation. Ercília Nogueira Cobra.

 

Considerações  iniciais

Virgindade inútil: novela de uma revoltada, de Ercília Nogueira Cobra, narrativa publicada em 1927, relata a história da personagem Cláudia, uma jovem que, inconformada com a educação dada às mulheres e com a dominação que os homens detêm sobre seus corpos, resolve sair de casa e ir ao encontro de um novo destino. Buscando sua emancipação, a protagonista encontra-se sozinha num mundo em que todos parecem conspirar contra ela e contra todas as mulheres.

A escritora Ercília Nogueira Cobra nasceu em São Paulo, no ano de 1891. Autora de duas únicas obras, Virgindade inútil: novela de uma revoltada (1927) e Virgindade anti-hygienica: preconceitos e convenções hypocritas (1924), as quais causaram grande impacto na sociedade da época, e chegaram a ter proibida sua circulação. Cobra, que nunca usou pseudônimo, aborda, em seus livros, a inibição sexual da mulher e a busca pela liberdade feminina. Também considera o sexo uma atividade natural aos seres humanos, independentemente de gênero, criticando a convenção que obriga a mulher a manter-se virgem, por se tratar de uma ação antinatural.

Partindo da hipótese de que o corpo pode ser um elemento de emancipação do sujeito, o objetivo deste trabalho é investigar, por meio da análise da obra Virgindade inútil: novela de uma revoltada (1996), o caráter emancipatório da personagem Cláudia, tendo em vista a questão do corpo. O percurso de vida da personagem é dividido em três etapas que contemplam as diferentes representações e transformações que seu corpo atravessa ao longo da história; o estudo é subsidiado, em especial, pelas conceituações de corpos propostas por Elódia Xavier, no livro intitulado Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino (2007).

O corpo: uma breve  introdução histórica

A partir dos preceitos filosóficos de Platão e Descartes, o corpo ocupa um lugar inferior em relação à mente, assumindo a dicotomia mente/corpo (GROSZ, 2000; ZINANI, 2010; XAVIER, 2007). Elizabeth Grosz (2000) buscar entender o sujeito humano a partir dessas dicotomias opostas: mente e corpo, pensamento e extensão, razão e paixão, psicologia e biologia. Para a autora, essa compreensão hierarquiza e classifica os termos, sendo um deles privilegiado e o outro, subordinado. Sendo assim, o corpo – considerado desregrado e disrupto, que necessita de direção e julgamento – é o subordinado, e a mente – que deve expulsar o corpo para manter sua “integridade” – é privilegiada em termos de poder. Grosz (2000, p. 49) afirma que o homem é caracterizado pela mente, e a mulher, pelo corpo. A filosofia exclui a feminidade e, como consequência, a mulher, ou seja, a “feminidade como desrazão [é] associada ao corpo”.

Para Cecil Jeanine Albert Zinani (2010, p. 214), a teoria feminista visa desconstruir esse binarismo, já que esse é o

[…] princípio da subalternidade que reduz a área de atuação da mulher, reservando aos homens as tarefas que exigem competência, sabedoria, portanto, relacionadas à mente e ao universo exterior, enquanto elas ficam restritas às atividades relacionadas ao corpo, referentes à reprodução e ao cuidado com o lar.

Por sua vez, Pierre Bourdieu (2012, p. 18-20), em A dominação masculina, enfatiza que o corpo é construído como realidade sexuada e como um depósito de “princípios de visão e de divisão sexualizantes”, que, a partir da diferença anatômica entre os sexos biológicos, “podem ser vistas como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho”. Com isso, o autor aponta ao discurso mítico que embasa ritos de institucionalização da mulher, que acontecem de forma insidiosa, mas eficaz simbolicamente. Segundo o autor, esses ritos acontecem nas operações que visam definir, tanto ao homem, quanto à mulher, os signos exteriores conforme a definição social com base na distinção sexual, ou estimular práticas que convêm a cada sexo.

Sendo assim, a institucionalização da mulher acontece de modo a

impor-lhe limites, todos eles referentes ao corpo, definido para tal como sagrado, e todos devendo ser inscritos nas disposições corporais. É assim que a jovem cabila interioriza os princípios fundamentais da arte de viver feminina, da boa conduta, inseparavelmente corporal e mental, aprendendo a vestir e usar as diferentes vestimentas que correspondem a seus diferentes estados sucessivos, menina, virgem núbil, esposa, mãe de família, […]. (BOURDIEU, 2012, p. 37).

Nessa perspectiva, Susan R. Bordo (1988) aponta que os textos A história da sexualidade e Vigiar e punir, de Michael Foucault, discorrem sobre corpos treinados e moldados conforme a tipicidade da época e da história, por meio da organização do tempo e dos movimentos, contribuindo para entender a institucionalização do corpo feminino. A autora define como corpo prático aquele que assume, não só forma biológica e material, mas também, a forma cultural, na qual as atividades estão sujeitas à interpretação e à descrição, já que, de acordo com Dimen (1988, p. 46), “cada vez que uma mulher sai para caminhar, sua mente e seu corpo são invadidos por uma definição social de sua feminilidade […]”.

Dessa forma, o corpo torna-se um relevante objeto de estudo da narrativa de autoria feminista, posto que ele é representado como um “lugar de inscrição, produções ou construções sociais, políticas culturais e geográficas” (GROSZ, 2000, p. 84), e como “um texto que insiste e exige mesmo ser lido como uma afirmação cultural, uma exposição sobre o gênero” (BORDO, 1988, p. 23).

O corpo em Virgindade Inútil: novela de uma revoltada

A obra Virgindade inútil: novela de uma revoltada, inicialmente, é narrada em terceira pessoa e apresenta um certo distanciamento entre o narrador e a personagem principal. À medida que a trama vai se desenrolando, é notória uma fusão entre o pensamento da personagem e a voz narrativa. Essa ligação ocorre quando a personagem toma consciência de sua situação. Ao longo da história, também, são discutidas questões de caráter feminista pelo narrador.

O livro inicia com uma observação, que avisa o leitor sobre as expressões obscenas e vulgares que aparecerão durante a narração. A voz narrativa introduz seus pensamentos centrais: o da desigualdade sexual entre o homem e a mulher, ou seja, a mulher precisa renunciar aos seus instintos naturais, anulando seus desejos sexuais em prol de manter-se virgem, enquanto o homem pode satisfazer-se de maneira totalmente livre. O narrador ressalta o quão antinatural é obrigar a mulher a manter sua virgindade:

Tenho observado que o falso sentimento de pudor que fez do ato do amor uma vergonha para a mulher, é um sentimento medieval, criado pelo misticismo dos sacerdotes que, ignorantes com eram, nada entendiam de fisiologia e não ligavam a devida importância à nobre função do amor. O amor físico é tão necessário à mulher como o comer o e beber. (COBRA, 1996, p. 44).

A trama começa com a descrição do local onde Cláudia vive. O país que é chamado de Bocolândia e sua capital Flumen fazem uma alusão irônica ao Brasil e à cidade de São Paulo, sendo possível perceber uma crítica social no que diz respeito à religião, à política e à educação da época.

A primeira fase da história é caracterizada pelo Corpo Disciplinado, que, segundo Xavier (2007), trata-se de um corpo previsível em relação às regras impostas pela sociedade. Cláudia, no início da narração, tem catorze anos, é a filha mais velha de uma família de oito filhos, sendo apenas dois homens. O pai casou-se com a mãe pelo dote, gastou-o todo em farras e, logo depois, faleceu, deixando a mãe da protagonista falida e com os filhos.  A menina ficou oito anos confinada em um colégio de irmãs, mas a voz narrativa indica que ela voltou à casa tão ignorante quanto saiu, aprendeu apenas a história dos judeus, a decorar o catecismo e a jejuar e calejar os joelhos na igreja. Essa narrativa fornece evidências primárias de um corpo disciplinado, uma vez que a escola, a família e a religião se configuram como instituições que regulamentam o comportamento humano por meio de regras, normas e pautas, que não precisam ser oficialmente escritas. (BAREMBLITT, 1992). As instituições, para Xavier (2007, p. 59), são agentes que contribuem para a dominação, a qual se institui por “intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante”.

A jovem Cláudia, nessa etapa da história, mostra-se observadora, e já apresenta traços de brejeirice: “Já sabe cobrir as faces com ligeira camada de carmim, mas jura às amigas que o rosado é natural. Morde os lábios de minuto em minuto para fazê-los úmidos e rubros” (COBRA, 1996, p. 46). Esse comportamento da personagem caracteriza a disciplina de um corpo feminino moldado pela sociedade; é um comportamento previsível, uma vez que a sociedade espera que as meninas se comportem dessa maneira. Sendo assim, Foucault (2002) discorre sobre a existência do corpo como objeto que se molda, que é manipulado, treinado e que obedece. O autor apresenta o termo dócil para qualificar esse corpo. Susan R. Bordo (1977) analisa o conceito de corpo dócil e faz um paralelo com o controle social que regulamenta o comportamento da mulher, como uso de maquilagem, dietas de emagrecimento e moda. A autora entende isso como o disciplinamento do corpo feminino.

Nesse ponto da narrativa, há uma crítica à inutilidade e à futilidade às quais a mulher é submetida:

Não é a mulher um ente apenas reprodutor? Uma espécie de autômato que só se move nos momentos em que a sociedade exige? Não é completamente insensível, mera portadora de um órgão que só pode funcionar quando a religião dá ordem e quando a sociedade autoriza? Para que instrução sólida? matemática, línguas, profissão liberal: bobagem! A mulher nasceu para ser escrava. Nada de encher a cabeça das meninas com coisa inútil as escravas. (COBRA, 1996, p. 46).

Aqui, há os primeiros indícios, da dominação sobre o corpo feminino. Partindo de uma linguagem foucaultiana, nesse contexto, pode-se dizer que a mulher disciplinada é aquela que se torna fútil e inútil perante a sociedade, a qual é compelida a deixar que o grupo social exerça poder sobre seu corpo. A citação anterior refere-se à inutilidade de dar educação às mulheres, uma vez que a utilidade da mulher está em apenas reproduzir. Essa forma de poder é definida por Bourdieu (2012) como uma força simbólica que age sobre corpo sem a coação física, constituindo a violência simbólica. É por meio do aprendizado e da execução dessas regras impostas pela sociedade que se cria o corpo disciplinado como resultado dessa violência simbólica (XAVIER, 2007).

Cláudia, nessa etapa da história, ainda tem fama de ter um bom dote e conta com vários pretendentes. Entre eles, um médico que nunca se decide pedi-la em casamento. É um “homem finório, quer ter a certeza do dote, conhecer-lhe o quantum”[1] (COBRA, 1996, p. 47). É possível analisar o corpo feminino como uma via de troca, mas não mútua, na qual o homem teria acesso ao corpo da mulher, enquanto objeto de submissão, assim como também ao valor em dinheiro, que configura o dote; mas essa troca não é recíproca, pois a mulher não recebe nenhum benefício em troca de entregar-se e servir ao marido. Percebe-se uma crítica social na narração: se esse corpo não tiver o dote necessário, ele perde o valor, e, então, não sendo mais útil para o casamento, a mulher acaba caindo em prostíbulos. Esse pensamento é corroborado por Bourdieu (2012, p. 56), ao definir a existência de uma lógica da economia de trocas simbólicas, pois, na construção social de parentesco e casamento, a mulher se torna objeto de troca definidas “segundo os interesses masculinos, e destinado assim a contribuir para a reprodução do capital simbólico dos homens”. Outro ponto da narrativa que permite o entendimento de Cláudia como um corpo disciplinado, é que, como a maior parte das mulheres da história, ela ainda espera encontrar um bom homem e casar-se, representando, novamente, um corpo previsível.

A segunda fase é definida pelo Corpo Erotizado, caracterizado pelo corpo que vive sua sensualidade e sexualidade plenas (XAVIER, 2007). Acontece na narrativa, quando, passados dois anos, Cláudia, que não fora pedida em casamento, toma consciência de sua situação: “começou a ver que a alma do casamento era o dote e a tomar nota do valor econômico das suas amigas que casavam. Esse estudo veio provar que sua desconfiança não era infundada. Só casavam as que tinham bom dote” (COBRA, 1996, p. 49). Ao se dar conta de sua atual condição, a personagem passa por um momento de transição. Esse é início de uma fase mais introspectiva de Cláudia, descrita pela voz narrativa: “o seu olhar verde tão calmo antigamente, adquiriu o cintilar duro das pedras preciosas” (COBRA, 1996, p. 51). Nesse momento da narração, torna-se notória a fusão entre a voz narrativa e o pensamento da protagonista.

Esse novo corpo é percebido, quando se apresenta um novo pretendente, e Cláudia passa a detestá-lo. Um velho, viúvo e, apesar de rico o bastante para sustentá-la, ela não o aceita: “amava demais a vida para sacrificá-la a um velho que podia ser seu avô” (COBRA, 1996, p. 51). Compreende-se esse momento como aquele em que Cláudia passa a olhar para si mesma e a ver seu corpo como algo subjetivo. O corpo erotizado, que aqui se apresenta, não está diretamente ligado à sexualidade, mas sim ao poder de escolha, que, por sua vez, está relacionado à sexualidade: ela pode escolher a quem entregar-se.

O ato emancipatório de Cláudia, que evidencia o corpo erotizado, acontece quando ela decide ir à Flumen, e, durante a viagem, determina que quer perder sua virgindade no trem, com um homem desconhecido. Isso configura a liberdade sexual da mulher, bem como de um corpo feminino capaz de erotizar-se sempre que desejar. É preciso lembrar que o sexo, segundo Foucault (1988, p. 36), é um discurso de poder e repressão, é um enunciado que traz consigo limitações de fala e expressão: “o que é próprio das sociedades modernas não é terem condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim o terem devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo”. Com isso, o ato de Cláudia é entendido como um ato de liberdade de seu corpo, visto que a protagonista traz a herança de uma sociedade disciplinar, em que, somente o discurso sobre a sexualidade já é fadado à proibição; ela rompe as próprias barreiras de repressão em torno do sexo.

Há elementos históricos, apontados por Salete Rosa Pezzi dos Santos (2007), reveladores que nem sempre o corpo erotizado da mulher foi considerado fonte de prazer e sensualidade, pelo contrário, ele era tido como doentio e não natural. Isso é evidenciado na trama, quando a personagem está há alguns dias fora de casa, e a polícia bate em sua porta e alega que, sob denúncia de ela ainda ser menor de idade e virgem, deveria apresentar-se à delegacia. Chegando lá, Cláudia pondera não ser mais virgem, mesmo assim, o delegado exige saber o nome do sujeito que a “seduzira”. Ela explica: “- não poderei dizer o nome de um ente que não existe. Não fui seduzida. Saí de casa por livre vontade” (COBRA, 1996, p. 59). Por mais que dissesse a verdade, submeteram-na a um exame que comprovasse sua virgindade. Por fim, confirmado não ser mais virgem, foi mandada a um asilo com o propósito de regenerar-se. Com isso, é possível perceber os indícios de um corpo feminino sexualizado, que, perante a sociedade, é considerado como doente. Para corroborar esse pensamento, cita-se Anthony Giddens (1993, p. 16), quando aponta que existe uma divisão de mulheres: as virtuosas e as perdidas. Porém, segundo o autor, a virtude alcançada pelas mulheres está no ato de recusar a tentação sexual, e aquelas que são consideradas perdidas “só existiram à margem da sociedade respeitável”. Assim, torna-se possível entender a atitude da polícia em mandar a protagonista a um asilo.

Após uma série de acontecimentos na narrativa, a protagonista depara-se com a rua e começa a tomar consciência das dificuldades que as mulheres encontram ao tentarem ser independentes. Cláudia encontra-se sozinha, com fome, sem dinheiro e ingressa na prostituição: “o pouco dinheiro que trouxera acabou-se e viu-se obrigada a fazer o que toda a mulher faz quando tem fome: vender-se” (COBRA, 1996, p. 63). O primeiro interessado que apareceu naquele momento foi aceito. O narrador descreve:

sem dinheiro, pois o que recebia dava apenas para os vestidos, não querendo mais vender-se, sem esperança de coisa alguma, a alma magoada por todas as desditas que sua visão de mulher inteligente tornava maiores, vagou sem rumo pela Pátria, com o coração negro de nojo e de tédio. (COBRA, 1996, p. 63).

Além disso, Cláudia passa por um momento de depressão, pensando em toda sua peregrinação, nos quantos suicídios e homicídios de mulheres presenciara, mas teve que se manter calada. Chegou a pensar em suicídio também, evidenciado pela voz narrativa:

Cláudia fora educada à moda antiga e não sabendo como fugir ao horror da sua vida, deu de pensar no suicídio. Uma náusea imensa a mantinha na cama noite e dia, sem coragem de coisa nenhuma. A vida odiosa incompatível com seu temperamento de mulher inteligente, ainda mais cruel se tornava Flumen, no meio de seus patrícios. (COBRA, 1996, p. 75).

Essa passagem do texto evidencia um Corpo Degradado, oposto ao corpo erotizado, configurando-se pelo sexo sem prazer e pela degradação do corpo por meio do ato sexual. Os dois momentos citados anteriormente caracterizam esse corpo, pois, ao definir o sentimento de tédio e nojo que Cláudia experimenta em relação ao sexo e, ao estar exposta ao suicídio de mulheres que vivem nessa situação, evidencia-se essa degradação do corpo. Simone de Beauvoir (1980) indica que as mulheres que vivem na prostituição não usufruem dos direitos como uma pessoa, e sim, estão sujeitas a todas as situações da escravidão feminina: são exploradas, escravizadas, tratadas como objetos.

A narrativa volta-se novamente para um corpo erotizado. Cláudia resolve ir à Buenos Aires, pois ainda parece buscar algo em sua vida. Lá, apaixona-se, pela primeira vez, por um sujeito chamado Emiliano Estroeva. Vive momentos de amor como nunca antes vivera. Mais uma vez, a narrativa revela um corpo com liberdade sexual e sensualidade plena, pois, ao se entregar ao amado, Cláudia afirma seu corpo erotizado ao relembrar um tempo passado, em que lia romances e ficava a fantasiar o amor: “Beijos de amor! beijos de amor! Sois como uma esponja que limpa os quadros negros: num instante apagais da mente todas as tristezas que a brutalidade da vida nela zigou” (COBRA, 1996, p. 77).

Porém, a personagem descobre que fora enganada pelo companheiro. Ele a roubou e ainda a enganou a respeito de seu nome; ele se chamava Ivan Stronvask. Nessa etapa, a personagem vive um momento de contradição, ao mesmo tempo em que relata sentir ódio pelo amante, pega sua fotografia e sente-se apaixonada, lembra os melhores momentos que passara com ele.

Para esquecer o amado, Cláudia vive momentos de volúpia e de orgias desenfreadas com homens e mulheres. Uma de suas companheiras, que, mais tarde, é citada na narrativa, é uma espanhola chamada Clariska Montero. Isso aponta novamente para um corpo erotizado, uma vez que “o corpo erotizado pode ou não estar envolvido pelo amor, mas estará, seguramente, vivendo sua sexualidade” (XAVIER, 2007, p. 158).

A última representação de corpo acontece quando Cláudia descobre estar grávida. A personagem compra um lugar em uma vila à beira mar e põe-se a pintar aquarelas. É notório como Cláudia vive um momento de plena felicidade, quando, montada em uma égua, passa suas tardes cavalgando e “filosofando” sobre a vida. A filha nasceu durante uma de suas cavalgadas. Deu-lhe o nome de Liberdade. Esse momento da obra aponta para a representação de um corpo liberado, um corpo que é representado por protagonistas mulheres que alcançam a emancipação, conduzindo suas vidas conforme valores redescobertos, por meio de um processo de autoconhecimento (XAVIER, 2007). Primeiramente, a protagonista opta por ter a filha, mesmo com todos os preconceitos e dificuldades que as mulheres enfrentavam naquele contexto por serem mães solteiras, e, ainda, porque, apesar dos protestos contra o nome da filha, nomeia-a como Liberdade. Além disso, Cláudia projeta para a filha a chance de ter um futuro diferente:

Criá-la para a alegria, para a vida, para o amor! Vê-la gozar de tudo o que à mãe não fora dado! Seria livre instruída, audaz, vencedora. Dar-lhe-ia uma profissão sólida a mais linda das profissões liberais. Fá-la-ia advogada para que defendesse a causa das mulheres infelizes, e explicasse à sociedade que a causa do infanticídio que leva ao cárcere tantas desgraçadas não é crime em face da organização atual das leis, mas sim consequência dela, já que a estúpida ordem de coisas coloca a honra da mulher no seu aparelho sexual. (COBRA, 1996, p. 82-83).

Entretanto, a personagem ainda busca algo em sua vida, conforme apontado pela voz narrativa: “sentia falta do amor. E é lá possível vida sem amor para uma criatura jovem e forte?” (COBRA, 1996, p. 84). Isso evidencia a construção de identidade, apontada por Xavier (2007, p. 174), para a definição desse corpo liberado, na qual “a construção de identidades se assemelha à construção de um quebra-cabeça, ao qual faltam sempre peças, ficando portanto incompleto”. Isso explica, também, todas as mudanças de vida da personagem, que, ao longo de sua trajetória, está sempre em busca de algo, estimulando-a a tomar decisões que mudem sua vida e assuma diferentes papéis ao longo de sua trajetória. Fixar-se em uma única identidade é insensato, pois possibilita a exclusão; é preciso ser um corpo em constante formação, “num processo de expressiva recriação do mundo do qual faz parte” (XAVIER, 2007, p. 187).

A simbologia do nome da criança representa a autonomia da personagem, explicitado, primeiramente, quando ela decide ter a filha, considerando todo o contexto. E, também, porque o nome representa o momento em que a protagonista, de fato, percebe ser sujeito da própria história, posto que, durante seu percurso de vida, buscou sempre a liberdade.

No final da história, a personagem decide viajar a Paris e, durante a viagem, conhece Cecília Amargo, “uma mulher culta” que compartilha as mesmas ideias de Cláudia. Passam horas conversando sobre política e questões sociais. Em um de seus encontros com a nova amiga, ouve-se o choro de criança. Liberdade é apresentada a Cecília como sendo a legítima “filha só de mãe”. A menina nada se parecia com a mãe, que não tinha certeza sobre quem era o pai, então a nova amiga tenta solucionar: “- É fácil, pois, observa com quem ela se parece” (COBRA, 1996, p. 90). Cláudia alega que a menina se parece com Clariska, a mulher com quem teve um caso, e, trazendo uma fotografia da espanhola, confirma-se a semelhança.

A narrativa encerra-se com certo teor de ironia, esclarecendo o título da obra. Cláudia chega a Paris e encontra, no teatro, o médico que a cortejara em seu tempo de solteira, mas que nunca a pedira em casamento. Questiona-o sobre onde estava sua mulher, e ele responde que pretextou um negócio e saiu. Cláudia compreende sua situação, pois, se tivesse dote, provavelmente, estaria em um quarto fechada enquanto o marido gastava todo seu dinheiro com mulheres: “Sim, minhas senhoras! É para casar com tipos daqueles que as mulheres guardam a castidade e conservam-se como botões fechados a vida inteira quando possuem dote… Virgindade idiota!” (COBRA, 1996, p. 94).

Esse é o momento em que a protagonista tem um insight retrospectivo sobre sua trajetória, ressignificando seu percurso de vida, ao se dar conta da posição passiva em que poderia estar, caso tivesse contado com recursos suficientes para casar-se. Nesse instante, com um gesto simples, a personagem dá de ombros e segue sua vida.

Considerações finais

A trajetória de vida de Cláudia apresenta as mudanças que seu corpo sofre no decorrer da obra. A primeira fase da história é representada por um corpo disciplinado, que corresponde às expectativas sociais. A segunda fase, quando a personagem toma consciência de sua situação, apresenta um corpo erotizado, porém, juntamente com esse, há a existência de um corpo degradado, definindo que o corpo da personagem assuma um caráter de dualidade em torno do sexo. Nessa fase, também é possível perceber a existência de traços que ainda apontam para uma sociedade que deseja disciplinar o corpo da protagonista. E, por fim, a última fase caracteriza um corpo liberado, pelo qual a personagem, ao atingir esse estágio, reconhece sua emancipação.

A narrativa aponta um sujeito feminino em constante formação, visto que, em seu percurso de vida, a protagonista parece buscar, constantemente, algo que pode ser entendido como a liberdade. Isso é evidenciado quando sua filha nasce, e ela, enfim, nomeia essa busca ao dar à filha o nome de Liberdade. Compreende-se que o corpo disciplinado de Cláudia buscava por direitos igualitários entre homens e mulheres, posto que, durante a história, a voz narrativa ressalta as desigualdades educacionais e sexuais. O corpo erotizado da protagonista indica a busca de liberdade corporal. Cláudia queria a liberdade de usar seu corpo como ela desejasse. E, por fim, no corpo liberado, a personagem busca liberdade para as mulheres em geral, uma vez que, quando nasce “Liberdade”, ela quer criá-la de modo que a sociedade a conheça, e ela alcance seu lugar de direito.

Sendo assim, o estudo realizado sobre a obra Virgindade inútil: novela de uma revoltada, apresenta uma transformação libertadora da personagem feminina. É importante ressaltar que a emancipação alcançada pela protagonista se desencadeou, inicialmente, como uma consequência da mudança em sua situação financeira, e, com isso, ela tomou consciência da fraude que eram os casamentos realizados em função do dote. A partir desse momento, a personagem modifica seu destino e alcança autonomia, reconhecendo-se como mulher-sujeito, autora de sua própria história.

Referências

BAREMBLITT, Gregorio F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. 3. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 2 v.

BORDO, Susan R. O corpo e a reprodução da feminidade: uma apropriação feminista de Foucault. In: JAGGAR, Alison M.; BORDO, Susan R. Gênero, corpo, conhecimento. Tradução de Britta Lemos de Freitas. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Ventos, 1988. p. 14-30.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11. ed. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

COBRA, Ercília Nogueira. Virgindade inútil: novela de uma revoltada. In: QUINLAN, Susan C; SHARPE, Peggy. Visões do passado previsões do futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Goiânia: Ed. da UFG, 1996.

DIMEN, Muriel. Poder, sexualidade e intimidade. In: JAGGAR, Alison M.; BORDO, Susan R. Gênero, corpo, conhecimento. Tradução de Britta Lemos de Freitas. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Ventos, 1988. p. 14-30.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 16. ed. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque.  Rio de Janeiro: Graal, 1988. 3 v.

______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2002.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1993.

GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu. [s.l.], v. 14, p. 45-86, 2000.

QUINLAN, Susan C; SHARPE, Peggy. Visões do passado, previsões do futuro: duas modernidades esquecidas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Goiânia: Ed. da UFG, 1996.

SANTOS, Salete Rosa Pezzi dos. Duas mulheres de letras: representações da condição feminina. Caxias do Sul/RS: Educs, 2010.

XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Mulheres, 2007.

ZINANI, Cecil Jeanine Albert. A doce canção de Caetana: entre o simulacro e a sexualidade. In: SANTOS, Salete Rosa Pezzi dos; ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Mulher e Literatura: história, gênero, sexualidade. Caxias do Sul: Educs, 2010. p. 205-219.

 

[1] Quantum significa, em latim, o valor da mulher enquanto objeto de troca por um dote (QUINLAN E SHARPE, 1996)