RESUMO: O presente artigo tem como corpus de análise o romance A vendedora de fósforos, publicado em 2011 pela escritora Adriana Lunardi. O foco da análise consiste em uma leitura de alguns conflitos que permeiam a contemporaneidade, como a silenciosa rivalidade fraterna entre as personagens protagonistas, o sentimento de culpa que permeia toda a narrativa, a crise identitária de personagens inseridas em espaços de trânsito e mobilidade, nos quais a submissão da mulher se torna pano de fundo para os conflitos de uma família desestruturada com relações afetivas fragilizadas e desgastadas. Este trabalho embasa-se nos estudos teóricos acerca da Pós-Modernidade e dos Estudos Culturais, como Santos (1986), Bauman (2004), Hall (2011) e Zolin (2003), além dos estudos psicanalíticos de Freud (2011) e Kell (2016).
PALAVRAS-CHAVE: Literatura de Autoria Feminina Contemporânea; Adriana Lunardi; Relações afetivas fragilizadas e desgastadas.
ABSTRACT: This article has as corpus of analysis the novel A vendedora de fósforos, published in 2011, by the writer Adriana Lunardi. The focus of the analysis is a reading of some conflicts that permeate contemporaneity, such as the silent fraternal rivalry between the protagonist characters, the feeling of guilt that permeates the whole narrative, the identity crisis of characters inserted in spaces of transit and mobility, in which the submission of women becomes the backdrop for the conflicts of a broken family, with fragile and worn-out affective relations. This work is based on theoretical studies on Postmodernism and Cultural Studies, such as Santos (1986), Bauman (2004), Hall (2011) and Zolin (2003), as well as the psychoanalytic studies of Freud (2011) and Kell 2016).
KEYWORDS: Literature of Contemporary Feminine Authorship; Adriana Lunardi; Fragile and worn out affective relationships.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A pós-modernidade caracterizada pelas mudanças ocorridas nas ciências e nas artes nas sociedades avançadas, como Japão, Alemanha e Estados Unidos da América, nasce no século XX, mais precisamente nos anos de 1950 com a arquitetura e computação, e amadurece, segundo Jair Ferreira dos Santos (1986), na atualidade, invadindo, sobretudo, o universo da moda, cinema, música e cotidiano programado pela tecnociência. A pós-modernidade começou a ultrapassar as fronteiras do primeiro mundo, conforme o autor, já nos anos 50, assim, da arquitetura passando para a pintura e a escultura, e do romance para as demais formas literárias, sempre com um toque de sátira, “rindo levianamente de tudo” (SANTOS, 1986, p. 10), o que difere dos modernistas, que levavam a arte a sério demais. O sujeito pós-moderno, de acordo com Santos (1986), dá adeus às ilusões do “ultrapassado” homem moderno, e se entrega ao presente, marcado pelo consumo, pelo prazer hedonista e pelo individualismo. Enfim, o pós-modernismo ameaça a embutir ideias tidas como arquissinistras, das quais fazem parte, a ausência de valores e de sentido para a vida, o vazio, o nada, e o niilismo.
Nas narrativas pós-modernas, segundo Santos (1986), há temas como drogas, perversão, loucura, sexo, violência, que as inclinam para o grotesco, isto é, aproximam o homem da sua natureza animal, porém em clima cômico, como evidenciamos no romance A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi, na passagem quando uma das irmãs se dopa com remédios: “Esperava o momento em que os comprimidos começassem a agir […] talvez eu fosse uma daquelas pessoas imunes ao efeito das drogas” (LUNARDI, 2011 p. 77). Há uma recusa ao enredo tradicional, com começo meio e fim, que se dá de maneira fragmentada, com a incidência de flashbacks, como é o caso dessa narrativa, que se inicia no presente e, por meio de suas lembranças, retorna ao passado, alternando-se, assim, entre o presente e as lembranças do passado.
Assim, segundo Resende (2008), a criação literária contemporânea é plural, isto é, possui formas múltiplas, como a ironia, irreverência, violência das grandes cidades, “memória individual traumatizada” (RESENDE, 2008, p. 20), juventude excessiva e, por sua vez, traz diferentes configurações da organização do tempo, permeado pela simultaneidade, que impede-nos de “imaginar o futuro ou reavaliar o passado” antes de compreender o presente “que surge impositivo, carregado ao mesmo tempo de seduções e ameaças, todas imediatas” (RESENDE,2008, p. 28).
Resende afirma, ainda, que com a pós-globalização, o corriqueiro e o cotidiano da mídia são refletidos na literatura, o que ocasiona o retorno do trágico, a exposição da violência urbana, isto é, “ a tragicidade da vida na metrópole hostil que se entranha nos universos privados, circula da publicidade da vida doméstica, onde a violência urbana se multiplica ou redobra” (RESENDE, 2008, p. 31)
A pós-modernidade, conforme Santos (1986), contém “um princípio esvaziador, diluidor, desfaz princípios, regras, valores” (SANTOS, 1986, p. 18), no qual não é um retrato fiel com a nossa realidade, é, senão, um jogo com a literatura, destruindo-se as formas, recontando a história, ora alegre ora irônica e trágica. A fragmentação da narrativa também está presente, podendo misturar as vozes e não sabemos quem está falando. Geralmente, os finais costumam ser múltiplos, isto é, ambíguos, com várias possibilidades de interpretação e também a existência de uma história embutida da outra.
Segundo Sigmund Freud, em O mal-estar na civilização, (2011), o que nós realmente desejamos e buscamos incessantemente em nossa vida é a felicidade, sendo assim, buscamos a ausência de dor e desprazer e a vivência de fortes prazeres. O princípio do prazer é o que estabelece a finalidade da vida, o que chamamos de felicidade vem da satisfação de necessidades altamente represadas, fenômenos episódicos e, quando uma situação muito desejada tem prosseguimento, resulta apenas em um pequeno bem-estar, portanto, a felicidade é exatamente o contraste. Sendo o “sofrimento apenas uma sensação” (FREUD, 2011, p. 22), alguns o “previnem” utilizando-se métodos que tentam influir no próprio organismo, no qual o mais eficaz é o químico, a intoxicação.
É fato que, conforme Freud (2011), há substâncias que, uma vez presentes no sangue/tecidos, produzem em nós sensações imediatas de prazer, mudando, inclusive, nossa sensibilidade, nos tornando incapazes de acolher impulsos desprazerosos. Com a ajuda do “afasta-tristeza”, podemos nos subtrair à pressão da dor da realidade e nos refugiarmos em um mundo próprio “que tenha melhores condições de sensibilidade” (FREUD, 2011, p. 22). O indivíduo que, segundo o autor, encetar este caminho para a felicidade, nada alcançará, pois a realidade é forte demais para ele, tornando-se, pois, “um louco” que não encontra quem o ajude para executar seu delírio. Um grande número de pessoas empreende a tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento por meio de uma “delirante modificação da realidade” (FREUD, 2011, p. 26).
Nisso tudo, de acordo com Freud (2011), há um instinto de autodestruição, que inicialmente se revela contra o mundo externo, como instinto de destruição e agressão, no qual o vivente destruiria coisas animadas e inanimadas, em vez de si próprio. Inversamente, a limitação dessa agressão voltada para fora teria de aumentar a autodestruição, que sempre existiu. A exemplo disso, o autor menciona as práticas de sadismo e de masoquismo, na qual vemos manifestações mescladas de erotismo e o instinto de destruição voltado, sobretudo, para fora e para dentro, não ignorando a onipresença da agressividade e da destrutividade. Assim, “a ânsia de destruição voltada para dentro se subtrai geralmente à percepção, é verdade, quando não é tingida eroticamente.” (FREUD, 2011, p. 65).
Isto posto, levando em consideração as possibilidades de leitura do romance, que possibilitam análises envolvendo as para questões como as mencionadas por Freud, e visto a importância desta autora no contexto da literatura brasileira contemporânea, segue um pouco mais sobre ela.
A escritora Adriana Lunardi nasceu em Xaxim-SC, em 1964, e reside, atualmente, no Rio de Janeiro. Escreveu seu primeiro livro de contos em 1996, As meninas da Torre Helsinque, seguido de Vésperas (2002), Corpo estranho (2006) e A vendedora de fósforos (2011). Antes disso, mudou-se para Santa Maria-RS em 1979 e cursou Comunicação Social na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). A autora ainda possui textos publicados em antologias, como O livro das mulheres (2000) e Pata maldita (2001).
O romance A vendedora de fósforos (2011) põe em voga algumas questões envolvendo o feminismo, sobre como alguns papéis socialmente impostos que, de maneira (in)direta, reverberam ainda hoje. Mesmo com tanta tecnologia, travamos uma “batalha” diária para nos desvencilhamos, do papel social atribuído ao homem e à mulher, ambos distintos e desiguais, empreendida de diferentes modos, como na literatura, por exemplo. Nesse sentido, como afirma Pierre Bourdieu (2015), a divisão do trabalho, por exemplo: aos homens, cabem as tarefas mais nobres como ocupar um lugar na assembleia/mercado e, à mulher, os cuidados com a casa. Sendo assim “cabe aos homens, situados ao lado exterior, do público, do direito, do seco, do alto […]. Às mulheres, pelo contrário, estando situadas do lado do úmido, do baixo, do curvo […] todos os trabalhos domésticos […] ou até mesmo invisíveis e vergonhosos” (BOURDIEU, 2015, p. 41). Deste modo, é preciso ressaltar a importância da literatura escrita por mulheres, que por tanto tempo foi algo sem prestígio e inferior à do homem.
Bourdieu (2015) acrescenta, seguindo essa lógica, que às mulheres cabem também as preocupações mais vulgares, ou seja, que menos exigem reflexão, como a gestão da economia da casa, encarregando-se de fazer os cálculos, “das contas e dos ganhos que o homem de honra deve ignorar” (BOURDIEU, 2015, p. 42). Sendo assim, a dominação masculina resume-se na supremacia concedida aos homens e se afirma na divisão do trabalho, “que confere ao homem a melhor parte” (BOURDIEU, 2015, p. 45).
Além disso, segundo Bourdieu (2015), as mulheres são excluídas de lugares como assembléias, mercados, ambientes considerados mais sérios. As mulheres, na verdade, são prisioneiras, subjulgadas pela representação masculina dominante, que vigora há séculos e que continua até mesmo nos dias de hoje se inscrevendo de outras maneiras e sendo, muitas vezes, essa dominação mascarada.
Esse cenário foi mudando ao longo do tempo, até que a mulher não é mais encarada como tão “frágil” ou aquela que quando “não é mãe praticamente não existe como entidade civil” (KEHL, 2016, p. 57). É somente a partir da segunda metade do século XIX que as mulheres começam a escrever para, justamente, suprir os seus anseios e fantasias, já que esta vivia fadada ao silêncio.
Diante das discussões acerca do papel da mulher na sociedade, tal romance nos leva a refletir sobre algumas questões a partir de uma personagem, a mãe das meninas, que se submete a todas as vontades do marido, sem ao menos questionar, mesmo que perceba que as atitudes do marido são descabidas. As irmãs percebem o silêncio da mãe e sua fraqueza e sentem raiva por tudo que precisam passar, todas as mudanças que precisam fazer por conta desse silenciamento que traz consequência para todos. Assim, este e outros temas como a rivalidade fraterna, o sentimento de culpa e a crise de identidade são frequentes em romances contemporâneos de autoria feminina.
1 OS UMBAIS DA CULPA E OS CAMINHOS DA AUTODESTRUIÇÃO: A RIVALIDADE ENTRE IRMÃS
O romance mescla duas narrativas: uma delas se passa quando a protagonista é adulta e recebe um telefonema, durante a arrumação da estante, dizendo que a irmã encontra-se hospitalizada. A outra narrativa é composta por fragmentos de lembranças da infância e da adolescência com a irmã, o que demonstra a silenciosa rivalidade fraterna, a competição entre ambas e, também, o sentimento de culpa por ter conquistado tudo o que a irmã queria e não pôde ter/ser. As duas narrativas não aparecem em uma linearidade; ao contrário, aparecem avulsas, fragmentadas, separadas por capítulos que não possuem número ou nome. Após receber o telefonema, ela vai para a cidade em que a irmã está hospitalizada em decorrência de ter tentado cometer o suicídio.
Sendo assim, as duas partes da obra fundem presente e passado, o que é uma característica da narrativa pós-moderna. Cury (2007) afirma que o romance moderno possui algumas particularidades como a “mescla do local e o nacional, o particular e o universal, não como memórias essencialistas ou lineares” (CURY, 2007, p. 11). Tais mesclas podem ser lembranças que montam/desmontam o passado, que dá chance de fugir do presente em um movimento “para dentro”, ou seja, para o interior do indivíduo, segundo a autora. Além disso, conforme Cury (2007), abrange “memórias performáticas que fazem convergir no espaço da ficção a experiência e o passado, muitas vezes o tempo da infância – tempo em que melhor se evidencia a linguagem como fenômeno humano” (CURY, 2007, p. 13). Por esse viés, segundo Bonnici (1999), na pós-modernidade, o conceito de tempo e espaço é diversificado, sendo a rápida transglobalização da informação, dinheiro e cultura a responsável pelas relações instáveis de tempo e espaço.9
O romance tem como protagonistas duas irmãs. A mais nova é a narradora e, em alguns momentos, os papéis se confundem e não sabemos se a narradora é a própria protagonista ou a irmã, havendo, assim, uma ambiguidade, como constatamos na passagem: “No visor do telefone encontro cinco chamadas perdidas, todas de Max” (LUNARDI, 2011, p. 182) e, logo em seguida percebemos uma troca de narradora, evidenciado pelo pronome “eles”, “Quando nos conhecemos, eles já não estavam juntos havia mais de dois anos” (LUNARDI, 2011, p. 182).
As duas irmãs são, na verdade, vozes que se interpõem, ecoam como se fossem a mesma, como evidenciamos na passagem: “Mana é você ou eu?” (LUNARDI, 2011, p. 22). Ambas tiveram, na infância/adolescência, um relacionamento amigável aparentemente, compartilhando o mesmo quarto e dividindo ideias e pensamentos, embora, não o suficiente para se “conhecerem”. Uma delas, a mais velha, guarda consigo um segredo que nunca lhe é diretamente revelado, ela foge frequentemente de casa, chega a passar dias sem dar notícias e ninguém sabe para onde vai ou com quem esteve. Como percebemos nas seguintes passagens quando a irmã volta para casa e é deixada de castigo na lavanderia pelo pai: “Ela foi longe demais […]” (LUNARDI, 2011, p. 51), “Já ir longe demais […] as vezes queria dizer o óbvio. Atravessar ruas, bairros […] sem que ninguém soubesse onde […] O importante é dizer que minha irmã desaparecia.” (LUNARDI, 2011, p.52). Simplesmente retorna com histórias misteriosas, como, por exemplo, passar a noite em um parque, “fazendo companhia a uma criança perdida” (LUNARDI, 2011, p. 52). Apesar do bom relacionamento entre as duas, há uma silenciosa disputa entre elas, sobretudo, para ver qual delas é a melhor, quem lê mais livros, quem será a escritora e quem desiste de ser, quem se droga mais, a não aceitação nas mudanças físicas de uma, sendo que a outra ainda era tida como criança, observadas na passagem: “eu não aprovava o fato de minha irmã ter começado a usar roupas de vitrina e sapatos de salto” (LUNARDI, 2011, p. 107).
A irmã mais nova, principal narradora do romance, sente-se culpada por, sobretudo, “roubar” o que era da irmã, por possuir o que não era seu por direito e cabia à outra. O sonho de sua irmã mais velha era ser escritora, mas não possuía o “dom”, ela passava a maior parte do tempo escrevendo, porém “eram textos de outros autores, que ela copiava, acrescentando comentários e pontos de vista, numa mera repetição do que fora dito, só que nas palavras dela” (LUNARDI, 2011, p. 35). A irmã mais nova, por sua vez, dizia que gostaria de ser professora, mas no fundo torcia para que a outra desistisse desse sonho e fracassasse, para que pudesse ocupar o seu lugar, como evidencia-se na passagem: “Se ela desistir de verdade […] fica mais fácil para mim.” (LUNARDI, 2011, p. 36), e quando esta desiste de ser escritora e queima seus cadernos, se sente livre; porém, vive atordoada pelo sentimento de culpa. O mesmo aconteceu também com seus relacionamentos. Max tivera um relacionamento com sua irmã mais velha e, depois de dois anos, se conheceram no cinema, o que, mesmo já ter passado muito tempo desde o término, não a faz sentir-se menos culpada, o que pode ser constatado em diversas passagens: “O tempo não contava […] para ela. E eu não podia pedir perdão por aquilo, nunca pedi […]”, “A nossa desgraça, mana, era querer o mesmo. Um mal da nossa descendência.”, “Fiquei com o que era meu e também com que planejei para a minha irmã. Sendo as duas, não sobrou quase nada para ela.” (LUNARDI, 2011, p. 182-183). Dessa forma, conseguiu o que traçou para ela e para a irmã, teve assim, o sonho realizado de ser professora e escritora e, ainda, ter se casado com Max.
Segundo Freud (2011), um indivíduo sente-se culpado quando, por via de regra, faz algo que é reconhecido como “mau” e, mesmo quem não o tenha realizado e apenas reconhece em si o propósito de fazê-lo, pode considerar-se culpado. Ambos os casos pressupõem que já se reconheceu o mal como algo repreensível e este deve ser evitado. O mal é evidenciado não como algo nocivo ou perigoso para o Eu, mas evidencia-se pelo medo da perda do amor, do desamparo, pois se perde o amor do outro e deixa de ser protegido contra os males diversos, expondo-se ao perigo. Isto é, o mal se caracteriza por ser aquilo ao qual alguém é ameaçado com a “perda do amor” e, por medo dela, é preciso evitá-lo.
O autor elenca duas origens para o sentimento de culpa: a primeira, é o medo da autoridade, obrigando-nos a renunciar a satisfação instintual; a segunda, diz respeito ao medo ante o Super-eu, nos remetendo a pensar no castigo. Constatamos que, seguindo a lógica freudiana, há uma relação entre a renúncia ao instinto e o sentimento de culpa, sendo aquela resultado do medo à autoridade externa, no qual “renuncia-se a satisfações para não perder o seu amor” (FREUD, 2011, p. 73). Assim, efetuada a renúncia não deveria restar sentimento de culpa. A renúncia instintual, por sua vez, já não possui efeito liberador, na qual a abstenção já não é recompensada com a certeza do amor, gerando a tensão da consciência de culpa.
A protagonista-narradora sente-se culpada porque conseguiu aquilo que a irmã aspirava, ser escritora e casar-se com Max. Não está explícito no livro o motivo pelo qual a irmã tenta o suicídio, mas a irmã mais nova acha que seja pelos infortúnios de ter os seus projetos e o seu destino furtado. Assim, sente-se culpada por viver uma vida que não lhe pertencia: “ela lia melhor do que eu. Seus comentários eram brilhantes, seu repertório de leitura mais variado” (LUNARDI, p. 33). Sente que está ocupando o lugar da irmã: “o temor que eu sentia de que ao me dedicar à literatura estaria ocupando o lugar dela. A culpa incurável dos irmãos. A culpa” (LUNARDI, p. 33).
A irmã mais nova recebe o telefonema e fica absorta em seus pensamentos, em meio à desorganização das prateleiras. A desorganização das prateleiras equivale a nada menos que a desorganização de sua vida. Ela adia o momento da organização e se arrepende de arrumá-la. Arrumação esta que a leva ao passado. Pergunta a si mesma porque estava fazendo isso, estava “arrependida de gastar as férias numa tarefa tão cansativa e sem urgência” (LUNARDI, 2011, p. 12). Atendendo ao telefonema, ela faz um resgate em sua memória. O passado é desorganização, o presente é tentar arrumar, tentar organizar os seus medos na prateleira e remover cada lembrança de sua memória, para que possa se sentir em paz, para que a culpa se esvaia: “o presente era uma biblioteca por arrumar, o trabalho de remover livro a livro pela lombada, abrir a capa e soprar um pouco de ar no miolo […] era adiar o triunfo e fungos, que de todo modo venceriam” (LUNARDI, 2011, p. 13-14). Sua vida se assemelha ao “caótico dos romances mal empilhados” (LUNARDI, 2011, p. 13-14), assombrada pela culpa, pelo medo, e por suas lembranças.
A comunicação entre as personagens envolvidas se faz por meio das cores. Quando mudam-se para Antares, o quarto das meninas é cinza, visto que já tiveram quarto “branco, rosa, lilás, areia”. Ele já havia sido cinza e volta a sê-lo: “Do cinza para o cinza” (LUNARDI, 2011, p. 15). Isto é, a cor textualiza seu sentimento, estado de espírito, sua vida passa por altos e baixos, passa da felicidade colorida à solidão descolorada. Não era só a cidade que foi construída à boca de um vulcão e permeada por planícies e pampas, a vida de ambas também possui esse contraste. É uma base de explosão de sentimentos que deixaram cicatrizes profundas. A planície é repleta pela vegetação rasteira, aquela que não se fixa, que é superficial, que não cria raízes profundas como as árvores, assim como a família das duas irmãs.
Em suas mudanças constantes, a narradora conhece Nietsche[1] em Antares e tornam-se melhores amigas. Muda-se após dois anos para Rio Razinho e, quando retorna, fica sabendo da morte desta. A amiga é personagem importante e que faz com que a garota sinta-se viva e esqueça um pouco de suas preocupações. Uma parte marcante da infância delas é o fato de Nietsche, na volta da escola, brincar com o vento e ensinar a vendedora de fósforos a tirar os seus pés do chão. A protagonista do romance sente-se deslocada, “sempre fora do lugar” (LUNARDI, 2011, p. 28). O vento que bagunça o cabelo da personagem quando está voltando para a casa com Nietsche é o mesmo que a faz despertar e amadurecer. O vento tira sua estabilidade, tira seus pés do chão e todas as suas falas, os seus sentimentos, suas crenças são levadas com o vento. Seu corpo levantou vôo e naquele momento ela compreende ou tem uma noção do que seja a vida: “Eu podia morar num furacão. Tinha descoberto o meu lugar na cidade” (LUNARDI, 2011, p. 31). Ela está começando a descobrir quem é e não seria mais a mesma de antes, como evidenciado na passagem: “eles [a família] tinham me perdido” (LUNARDI, 2011, p. 31).
Um personagem que merece destaque, e que nos faz refletir sobre a incomunicabilidade, é o irmão das meninas. Ele é o aluno problemático que faz com que os pais sejam chamados frequentemente na escola em decorrência de sua disfunção. Quando criança nunca falava em primeira pessoa e, já adolescente, deixou de usar as palavras no plural: “Esse pronome só é necessário ao pensamento. Usar na frase é uma redundância, um tumor no idioma” (LUNARDI, 2011, p. 38). Tal crise se funde com a incomunicabilidade dos personagens da obra. No caso do irmão, precisa encontrar uma forma diferente para se comunicar, criando uma “linguagem” encarada como diferente e estranha.
Além disso, evidenciamos que a mãe e o filho se comunicam com a ausência de fala, sem um diálogo verbalizado, como observamos na passagem: “Não houve duas pessoas a se entender melhor neste mundo do que minha mãe e meu irmão […] Eles passavam boa parte do dia juntos […] não consigo recordar sequer um diálogo entre eles tal o silêncio de que era feito aquele entendimento” (LUNARDI, 2011, p. 37). Constatamos, assim, que o silêncio do irmão não é vazio ou ausência, significa, assim também no caso de sua irmã, que vive em conflito com a família. Na última vez que ela foge e volta dias depois com histórias incoerentes, seu pai a tranca na lavanderia, e enquanto está lá escreve nas paredes palavras incompreensíveis:
Long-play jornal candelabro máquina de lavar cesta bola centrífuga secadora pregos martelo tesoura cadarço parafuso vaso barbante sandália sapato tinta escova de dente flanela pasta de sapato sabão em pó amaciante garrafa abajur moldura revista caixa esponja grampo de roupa lixívia anil ferro de passar rabicho ventilador hélice fio tampa arandela funil cabo corda vela castiçal mangueira serra papel bule não-sei-o-que-é cartão-postal ancinho válvula lanterna lupa mola luva (LUNARDI, 2011, p. 59)
Tais palavras fazem todo sentido para ela e não tem significado algum para os adultos, apenas para a sua irmã, que desabafa: “não podia ser uma simples relação de objetos esquecidos nas prateleiras, ainda que se pudesse ler assim. A cada fuga […] minha irmã voltava diferente” (LUNARDI, 2011, p. 59). Apenas a irmã tem a sensibilidade de perceber que as palavras soltas e desconectas traduzem a confusão de seus pensamentos e de sua vida, tal como a ausência da fala. As palavras são uma tentativa de se expressar, é um diálogo com o vazio, transmitem tudo e nada, é, senão, um pedido de socorro. As palavras escritas em um momento solitário exprimem sua alma, já que mesmo estando cercada de pessoas, sente-se sozinha. Esta é uma personagem que foge de casa porque sempre está em busca de algo, à procura daquilo que não pode ter: sua liberdade.
Este romance transita entre presente e passado. Quando a protagonista retorna ao passado lembra que sua irmã simplesmente desaparecia e, às vezes, ficava dias sem dar notícias. O desaparecimento constante da irmã significa que algo não vai bem, que ela precisa fugir dessa situação que a perturba, ter a liberdade que jamais terá. Sempre que foge seu pai diz que ela foi “longe demais” e, para ele, ir longe demais significa “atravessar ruas, bairros e até cidades, sem que ninguém soubesse onde, afinal, ela estava” (LUNARDI, 2011, p. 51). O profundo desespero da criança transparece em seus sumiços. Da última vez que retorna para casa aparece com as unhas pintadas de marrom, o que pode metaforizar a escuridão de sua alma, uma alma que não é mais transparente e sim marrom, negra, a ausência da luz, o silêncio. Apenas com o desaparecimento é que os pais prestavam atenção na menina.
Quando mergulha em sua infância, a narradora lembra que depois da mudança de Antares para Rio Razinho, começa a se relacionar com Cirineu, um menino que trabalha na oficina onde ela conserta a bicicleta. Cirineu lhe dá algumas ideias e a influencia, aos poucos, a utilizar uma alta quantidade de medicamentos para se drogar. Diz que sua irmã já fizera isso e oferece ajuda para a menina: “sempre tem um dia chato na vida da gente, ele filosofou. Quando for assim, me avisa que eu posso ajudar” (LUNARDI, 2011, p. 73) ou “Se decidir experimentar tire só dois comprimidos da cartela. Para não dar pista, ele recomendou” (LUNARDI, 2011, p. 75). Sua primeira experiência ao se dopar com a medicação foi na lavoura que Cirineu a levou, ambos foram de bicicleta e ingeriram os medicamentos.
Após essa experiência, novas se sucederam e, a exemplo da mais velha, a irmã mais nova começa a se dopar com remédios, até que um dia vai parar no hospital. Lá, o médico conversa com ela e quer saber mais sobre o que a fez tomar essa decisão. As visitas ao médico se tornam constantes e ela que, no início era resistente, se abre para ele. Começa revelando sobre as dores do amadurecimento, todos os infortúnios que sucederam a ela e, inclusive, a morte de sua amiga, a amiga com quem pela primeira vez criou laços fortes e cuja ausência deixou nela marcas terríveis.
A família da menina fica sabendo da morte de Nietsche quando retornam a Antares, dois anos depois. A vendedora de fósforos relembra as cartas que foram trocadas entre as duas e que, ao chegar a Antares, teria telefonado várias vezes, mas sem sucesso. Recebe a notícia de que ela teria morrido na montanha russa do parque de diversões. Mesmo que não transparecesse, a morte da amiga a abalou muito. Isso era raro, pois como mudavam bastante, não estreitavam os laços de amizade com ninguém, não conhecia ninguém a fundo. Levando em consideração o contexto familiar no qual estão inseridos, é visível a desunião da família e a indiferença dos pais, o que desestabiliza os três irmãos. Isso fica evidenciado na passagem: “As refeições eram feitas sem hora certa nem assento marcado, sempre na cozinha […] mas a rotina era buscar no restaurante a marmita que papai pagava por mês” (LUNARDI, 2011, p. 93). A indiferença dos pais é nítida quando uma das meninas chega em casa tarde e o pai está mais preocupado com suas palavras cruzadas do que com a filha. Ele só enxerga o que há exteriormente, nunca o sentimento das meninas, que sempre seriam as crianças imaturas que não participavam das decisões. O diálogo não se faz presente entre pais e filhos, ao contrário, eles decidiram “erguer aquela viga que separa as gerações em andares, reservando ao piso mais antigo a posse da última palavra” (LUNARDI, 2011, p. 96).
Além disso constatamos que, no romance de Lunardi, nenhum membro da família possui nome, a não ser a marca do sobrenome “dos Anjos”. De acordo com João Pedro Wizniewsky Amaral (2016), isso é muito significativo, já que reforça o uso da memória como processo de busca identitária, o que exerce uma função de autoconhecimento. A personagem, segundo o autor, não se autoafirma pelo registro escrito do nome, somente pelo conhecimento que fora adquirido na narrativa com as lembranças/memórias. As personagens são nomeadas apenas se fora do núcleo familiar; porém, muitas vezes, não com seus reais nomes, mas com “apelidos”. As protagonistas nomeavam pessoas ou até mesmo objetos, como evidenciamos na passagem: “Em nossa família, tínhamos o costume de dar nome a tudo. […] nada escapava ao batismo. […] Bobby era uma secretária de papai que nunca tirava os bobes da cabeça” (LUNARDI, 2011, p. 19). Assim, de acordo com Amaral (2016), para as personagens, a impressão das coisas, possuem um valor maior até mesmo que um documento, sendo assim, a memória rompe as barreiras do registro.
A vendedora de fósforos, assim como nos é apresentada, faz parte de uma “família nômade”, que perambula de cidade em cidade, que não se prende a lugares e nem a pessoas. Com isso, se tornaram pessoas anti-sociais, isoladas, indispostas a conhecer e/ou conversar com pessoas, viviam em um mundo completamente “cinza”, em que “o céu era o único a manter as cores” (LUNARDI, 2011, p. 82). Assim como evidenciamos no trecho: “De tanto mudar, papai e mamãe tinham desistido de conhecer gente. […] Eles eram antipáticos, quietos, dados ao isolamento. Cansados de encontrar os pares certos e ter de abandoná-los […] sequer se davam ao trabalho de buscar companhia” (LUNARDI, 2011, p. 41).
De acordo com Cury (2007), os romances contemporâneos prezam o ambiente urbano, no qual são apresentadas a realidade da violência urbana, a temática da exclusão social nas cidades ditas “desgastadas”. Além disso, coloca-se em evidência a representação do mundo das drogas, personagens migrantes e o “universo dos marginais e dos excluídos do sistema” (CURY, 2007, p. 9), temáticas presentes na obra em análise. Assim, a desterritorização dos personagens é algo que merece destaque.
O motivo das frequentes mudanças era, principalmente, pelo fracasso do pai, que não seguindo a tradição da família dos Anjos na carreira advocatícia, estudou contabilidade e, desde então, se mudavam de cidade constantemente em busca de condições melhores, sempre culpando o ambiente, o lugar pequeno demais, ou as pessoas, pelo seu infortúnio como contador. Assim como fica evidente na passagem: “Ao terminar o curso técnico contábil, papai deu a largada rumo à errância” (LUNARDI, 2011, p. 47). A mãe das jovens, por amor ao marido e para encobrir suas falhas, aceita todas as decisões que ele impõe, se afasta até mesmo de seus familiares para satisfazê-lo, como evidenciamos na passagem: “Mamãe escolheu sacrificar, em nome do casamento, primeiro os pais, depois os filhos” (LUNARDI, 2011, p. 150) ou mesmo quando a filha revela suas impressões: “[…] não consegui esconder a decepção de ter uma mãe que punha o marido acima de todas as coisas.” (LUNARDI, 2011, p. 150).
Quando retorna ao presente e chega até o hospital onde a irmã suicida está internada, não é recebida. Enquanto está sozinha relembra que há mais ou menos quatro anos não tinha contato com a irmã e que, após a morte da mãe e divisão dos bens, “a teia frágil da família foi definitivamente posta em desuso” (LUNARDI, 2011, p. 129). O último encontro das irmãs foi no enterro: “encontrei minha irmã pela última vez na outra cidade […] decidir em que lugar mamãe seria enterrada” (LUNARDI, 2011, p. 129), no qual até mesmo o irmão que não via há muito tempo reapareceu “após um telefonema de sentido obscuro que ninguém entendeu haver ele concordado ou não em ir para as despedidas” (LUNARDI, 2011, p. 129). Após a morte da mãe, cada um seguiu seu caminho, pois a morte de sua mãe a autorizava “a andar por aí com os próprios pés, pisando vazio da orfandade” (LUNARDI, 2011, p. 133).
Ainda no hospital, ela pergunta ao médico como foi a tentativa de suicídio da irmã, ele relata que enrolou um lençol em volta do pescoço e não soube dar o nó. A vendedora de fósforos fica surpresa, pois nunca a irmã deixou tão claro que queria acabar com a própria vida, antes “gás de cozinha e medicamentos em excesso compunham o repertório mais conhecido, o que habitava os mais otimistas a enxergar uma zona fronteiriça entre acidente e intenção. Não agora, dessa vez ela deixou bem claro. Só não soube fazer direito” (LUNARDI, 2011, p. 136).
Assim, constatamos que a personagem protagonista sente-se culpada por tudo que está ocorrendo com a irmã, que adoece aos poucos e tenta, por várias vezes, acabar com o sofrimento que a consome, isto é, sua vida. O sentimento de culpa da protagonista é evidenciado em suas reflexões, em suas lembranças da infância, na busca de encontrar uma razão pelo desamor que a irmã tem à vida, a razão pela qual ela deseja cometer o suicídio, quando na verdade nem tudo é compreensível e nem tudo possui uma razão. As vezes não conseguimos colocar tudo em seu devido lugar, algumas coisas se escondem no interior da alma e vai além de qualquer palavra e de todo entendimento.
2 SILENCIAMENTO E SUBMISSÃO FEMININA NO LAR BURGUÊS: ECOS DO PATRIARCADO NA CONTEMPORANEIDADE
A mãe das irmãs, se por um lado foge dos padrões da mulher patriarcal que vive em função do filho, que é dona de casa e tem o dom de cozinhar, por outro lado ela reforça esse papel quando se submete a fazer todos os desejos, vontades do marido e se acovarda. Ela não tem tempo para as tarefas de casa e não sabe fazê-las: “Não nascera para aquilo, dizia, rindo dos bifes que fritava a distância do fogão, ainda de salto alto, como quem entra por acaso na cozinha de uma festa e decide oferecer ajuda” (LUNARDI, 2011, p. 40). Além do mais, está sempre em trajes de festa e possui um “figurino que até então parecia impróprio a uma dona de casa” (LUNARDI, 2011, p. 42), rompendo com o padrão de que cabe a mulher se dedicar prontamente a todos os serviços de casa.
No entanto, é evidente a submissão dela perante o marido, que sempre toma sozinho a decisão de se mudar de cidade, sem sequer consultá-la. Decisões estas que ela acata com prontidão, como por exemplo quando estão em Rio Razinho e o marido decide voltar para Antares: “Quero tudo pronto para a mudança no final de outubro, papai disse, voltando a voz para a minha mãe. Ela balançou a cabeça afirmativamente” (LUNARDI, 2011, p. 95). Até mesmo os filhos incomodavam-se com a falta de atitude da mãe, como evidenciado na passagem: “Tudo porque tinha de ficar claro o mais cedo possível que eu não queria ser igual a ela. Só isso” (LUNARDI, 2011, p. 95).
Um outro aspecto marcante nessa personagem é que a sua escrita, assim como os serviços de caligrafia aos quais se dedica com afinco, é mal sucedido. Com efeito, o sumiço da placa da mãe é uma metáfora do apagamento da escrita feminina. Assim como os serviços de caligrafia, a escrita feminina é algo ignorado, de pouca importância, é como uma placa que, de tão inválida, é retirada.
Sendo assim, com essa personagem, Lunardi lança uma crítica ao estereótipo feminino daquela cuja subjetividade é apagada, representada pela figura da mãe e esposa que espera pelo marido para tomar decisões, que nada questiona, que se acovarda. Observamos este estereótipo em outras passagens, quando, por exemplo, as duas irmãs conversam sobre qual profissão escolher e uma delas diz que a melhor seria “escritora”: “Meninas podem escrever? Foi o que me ocorreu como pergunta”. (LUNARDI, 2011, p. 21).
Em relação a essa possibilidade da escrita feminina, Zolin (2003) afirma que o cânone literário foi, por séculos, prioritariamente constituído pelo homem ocidental, de alto poder aquisitivo e branco, porém, com a pós-modernidade, a mulher começou a ganhar mais espaço, deixando-se, assim, de ser tradicionalmente masculino. A autora afirma que o preconceito é contra a mulher propriamente dita, não contra os seus escritos, estão arrolados, sobretudo, valores da ideologia patriarcal.
Conforme Kehl (2016), ao longo do tempo, o lugar de homens e mulheres passam por deslocamentos. Mudanças estas que alteram o uso da língua, enfim, o lugar que a cultura concede aos indivíduos. Modificam-se sutil e lentamente, segundo a autora, devido aos acontecimentos ao longo da história, são eles os deslocamentos de classe, gênero e inserção junto ao poder. É lícito ressaltar, contudo, que a modernidade não foi o único período na história da humanidade que houve desestabilização, pois tais estruturas vem constantemente se transformando, sendo construídas e abaladas ao longo da história. Assim, Kehl (2016) cita a psicanálise e afirma que o homem, mulher e sujeito são construções mutantes, datadas, contingentes, pois não existe, por exemplo, “a mulher universal”, que transcende a todas as outras.
Kehl (2016) afirma que ocorreram mudanças na sociedade europeia após a revolução francesa, como a modernidade, industrialização, urbanização, estabelecimento de uma família nuclear e, sendo assim, criou-se um novo tipo de sujeito. Já que este passa a tentar compreender o mundo em si com grande esforço, tendo em mente que em seguida, será contestado pela próxima geração.
Neste período, a família nuclear moderna e o lar burguês tomam conta, de acordo com Kehl (2016). Cria-se um padrão de feminilidade que ainda sobrevive nos dias de hoje e sua principal função é “promover o casamento, não entre a mulher e o homem, mas entre a mulher e o lar” (KEHL, 2016, p. 37-38). Os discursos que constituíram a feminilidade tradicional fazem parte do nosso imaginário moderno e determina como a mulher deve se portar para ser verdadeiramente uma mulher. No entanto, outros ideais vêm a contrapor o ideal da feminilidade, como afirma Kehl:
Aos ideais de submissão feminina contrapunham-se os ideais de autonomia de todo sujeito moderno; aos ideais de domesticalidade contrapunham-se os de liberdade; à ideia de vida predestinada ao casamento e à maternidade contrapunham-se a ideia de que cada sujeito deve escrever seu próprio destino, de acordo com sua própria vontade (KEHL, 2016, p. 38)
A feminilidade é encarada, por sua vez, a um “conjunto de atributos próprios a todas as mulheres [..] em função de sua capacidade de procriação” (KEHL, 2016, p. 40). Sendo assim, atribui-se a mulher o papel de dona de casa, no qual seu destino é a maternidade, já que seu único lugar é o espaço doméstico, como afirma a autora. Espera-se, conforme Kehl (2016), que seu comportamento seja composto pelas “virtudes próprias da feminilidade” (KEHL, 2016, p. 40), como servir ao homem e aos filhos e ser receptiva às suas vontades e desejos, além de ser dócil e recatada. A mulher, ao longo da história, é, pois, encarada como frágil, como aquela que deve ser recatada e resistente ao sexo, sustentando a virilidade do parceiro de forma submissa e modesta. Tal fragilidade foi um forte argumento para que as mulheres não se dedicassem à vida pública, como não estudar, não trabalhar, não fazer esforços físicos e não se permitir aos excessos sexuais. Assim, Willian Acton (apud KEHL, 2016) afirma que a sexualidade feminina é satisfeita com o parto e a vida doméstica, já que as mulheres deveriam conter os seus “instintos” e ser subserviente ao prazer do homem. Deste modo, a autora constata:
Uma sexualidade que só estaria plenamente realizada com a maternidade. As intensidades do parto e dos prazeres do aleitamento seriam o coroamento da vida sexual das mulheres – e de sua autoestima também. A sexualidade feminina deveria ser reprimida desde cedo para, sobretudo, satisfazer o homem e “desempenhar a contento os papéis de esposa e mãe” (KEHL, 2016, p. 58)
Portanto, constata-se que as mulheres ao longo de muito tempo foram submissas, tendo sua força e voz apagadas pela supremacia masculina. Ainda hoje, apesar das mudanças que vem ocorrendo e do empoderamento feminino, vemos alguns vestígios de que a luta ainda não terminou e que a supremacia masculina ainda existe, mas de uma maneira mais velada, que pode ser refletida de inúmeras maneiras, seja nos salários desiguais de homens e mulheres, tendo esta um inferior, na violência contra a mulher, em seu medo de sair de casa durante a noite, de usar roupas decotadas, medo de estar sozinha, de ser solteira, insegurança em um relacionamento e obrigação de possuir “hábitos corretos” para não ser taxada de “fácil”. Tudo isso configura um papel que foi, muitas vezes, atribuído a mulher e que precisamos nos libertar de vez de tais paradigmas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em linhas gerais o romance aborda três temáticas extremamente importantes: a culpa, a autodestruição e a submissão. A culpa é manifestada na personagem da irmã mais nova que se sente mal por ter realizado os sonhos que a irmã não conseguira realizar, ou seja, por ter roubado o futuro que era dela, como ser escritora e se casar com Max. A irmã mais nova atribui as tentativas de suicídio da outra a esse fato. A autodestruição é, neste caso, uma forma de escapismo, de fuga, de sentir-se derrotado e ceder a esse sentimento, de não encontrar uma razão para existir depois de ver seus sonhos e expectativas se desfazendo e outra pessoa possuindo aquilo que deveria ser seu. Como pano de fundo ao drama das duas irmãs, temos a mãe das meninas que demonstra sua subserviência em relação ao marido quando acata todas as suas decisões e as aceita sem ao menos questionar. Tal passividade é vista pelas meninas e encarada de maneira negativa, pois elas expressam o desejo de não ser parecida com a mãe. Com efeito, existe o medo de se tornar a pessoa sem identidade, sem voz, que ela é.
Portanto, as temáticas discutidas ao longo deste trabalho são traços importantes que o caracterizam como romance contemporâneo, já que mesclam as questões mais delicadas, se aproximando de conflitos existentes hoje em nossa realidade, como a depressão, que leva muitas vezes ao suicídio. Algo importante abordado no romance é a dificuldade da família dos Anjos de se relacionar com as pessoas, o completo isolamento, o fato de desistir de conhecer pessoas. Podemos fazer, então, um paralelo com a nossa realidade, haja vista que não são só as personagens do romance que vivem esse dilema. Hoje vemos esse distanciamento entre as pessoas sendo causado pelas redes sociais, que nos afasta daqueles ao nosso redor para nos conectar com os que estão longe.
REFERÊNCIAS
AMARAL, João Pedro Wizniewsky. Fogos de memórias em “A vendedora de fósforos”, de Adriana Lunardi. Revista Primeira Escrita, Aquidauana, n. 3, p. 144-157, dez. 2016.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro, Zahar, 2004.
BONNICI, Thomas. A teoria do pós-modernismo e a sociedade. Mimesis, Bauru, v. 20, n. 2, p. 25-37, 1999.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. 13. ed. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2015.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Novas geografias narrativas. Revista letras de hoje, Porto Alegre, v. 42, n. 4, p. 7-17, dez. 2007.
FREUD, Sigmund.O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. 1 ed. São Paulo: Penguinclassics Companhia das Letras, 2011.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11.ed. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2011.
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
LUNARDI, Adriana. A vendedora de fósforos. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
RESENDE, Beatriz. Contemporâneos – Expressões da Literatura Brasileira no Século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008, p. 15-40.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é Pós-Moderno. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986.
ZOLIN, Lucia Osana. Literatura de autoria feminina. In: ZOLIN, Lúcia Osana; BONNICI, Thomas (Orgs.). Teoria literária: abordagens e tendências contemporâneas. 3. ed. rev. e ampl. Maringá: Eduem, 2009, p. 327-336.
[1] A família dos Anjos tinha o costume de apelidar as pessoas ao seu redor, assim, Nietsche provavelmente seja um nove fictício que tenha relação com Friedrich Wihelm Nietzche Filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor do século XIX.