Literatura na vida: reflexões sobre a criação literária como (trans)formadora do sujeito

Luísa Freire

La literatura es una representación falaz de la vida que, sin embargo, nos ayuda a entenderla mejor, a orientarnos por el laberinto en el que nacimos, transcurrimos y morimos.
(LLOSA, 2010)

RESUMO: Este artigo objetiva investigar a relevância da literatura como ferramenta de construção e reconhecimento de identidades individuais e sociais. Fundamentado em uma base bibliográfica, esperamos discutir o conceito de literatura, suas funções atreladas à questão de sentidos construídos e, por conseguinte, identidades retratadas, além de direcionar essa perspectiva para a sala de aula. Para tanto, partimos da noção de que a literatura é capaz de (trans)formar sujeitos críticos e reflexivos, que instiguem e questionem sobre suas realidades interiores e exteriores. Assim, nos propomos tratar da importância da literatura para todo indivíduo social e para os espaços educativos e sociais.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Sociedade; Identidade; Ensino.

ABSTRACT: This article aims to investigate the relevance of literature as a tool that builds and recognizes individual and social identities. Based upon a bibliographical research, we strive to discuss the concept of literature, its roles regarding the meanings established, and, by consequence, the identities portrayed, besides applying this perspective to the classroom. In order to do so, we start off from the notion that literature is capable of (trans)forming critical and reflexive human beings, that instigate and question about their inner and outer realities. We expect to address literature’s importance for every social individual, and educational and social spaces.

KEYWORDS: Literature; Society; Identity; Education.

 

Considerações iniciais

Este artigo almeja investigar a importância da literatura no processo de construção e reconhecimento de identidades e da pluralidade de visões acerca do mundo. Ademais, apresentamos um direcionamento a sua presença em espaços escolares, em especial nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, por meio da discussão do conceito de literatura e alguns de seus possíveis papéis a serem desempenhados. Inicialmente, busca-se responder à pergunta: “o que é literatura?” através da discussão e da problematização de certas concepções sobre o termo.

Dedicamo-nos, na segunda seção, a explorar a relação existente entre a literatura, os sentidos produzidos e construídos a partir dela, e a constituição de identidades que formam e transformam sujeitos. Exploramos as consequências de uma sociedade que não concebe a pluralidade de uma mesma história e se restringe a uma única versão. Logo, no terceiro momento deste artigo, abordamos essa questão a partir de exemplos da literatura canônica e contemporânea e os efeitos que podem gerar em alunos em sala de aula. Para tanto, consideramos o papel da literatura na formação de sujeitos críticos e reflexivos que reconheçam as realidades interiores e exteriores a si. Dessa forma, o artigo se propõe a tratar da importância da literatura para todo indivíduo social, para os espaços educativos e na (trans)formação de sociedades, em virtude de sua eficácia no desenvolvimento de indivíduos autônomos e reflexivos de si e seu espaço social.

Literatura: substantivo feminino

A definição de Literatura até hoje constitui um tópico de discussões e divergências, consistindo em conceitos abstratos por vezes extremamente pontuais ou amplos. No entanto, mesmo com seu caráter subjetivo, diversos são os teóricos que tentam definir o que é literatura. Em consonância com a perspectiva adotada sobre a importância da literatura como formadora do sujeito, destaca-se a concepção de Marisa Lajolo (2001).

A autora brasileira busca uma definição mais flexível de literatura, estabelecendo que “ser ou não ser literatura é assunto que se altera ao longo do tempo […]” (2001, p. 13). Assim, Lajolo destaca o caráter transitório do conceito de literatura, que muda com o período histórico político, além de acompanhar o contexto sociocultural do indivíduo que usufrui de criações artísticas e literárias.

A teórica mostra o caminho percorridos pelas obras até o ponto em que são classificadas como literatura e destaca o papel da escola nesse processo. O ambiente escolar é significativo na determinação dos livros ditos ou não “clássicos”, frequentemente considerados como de qualidade e importância superior. São as escolas que constroem a relevância de um livro no cenário nacional ao avaliá-lo como essencial na formação escolar. Dessa maneira, nota-se que os ambientes educacionais são espaços-chave no processo de literarização e no estabelecimento de uma literatura canônica.

Assim como outros autores, Lajolo (2001) considera alguns outros critérios como determinantes para a classificação de uma obra enquanto literatura. Ela levanta a possibilidade da literariedade depender de um uso especial da linguagem, mas logo refuta essa ideia. A estudiosa reforça que literatura não pode ser “fossilizada” com uma única significação concreta e imutável. Ela é fluida, transitória e múltipla. A partir disso, concebe-se uma “quase definição” de literatura:

não é o uso de um ou de outro tipo de linguagem que vai configurar a literatura. […] qualquer tipo de linguagem nem anula o literário nem necessariamente o provoca. A relação que as palavras estabelecem com o contexto, com a situação de leitura é que caracteriza, em cada situação, um texto como literário ou não-literário” (LAJOLO, 2001, p. 38, grifos da autora).

Desse modo, evidencia-se a importância do contexto em que a criação artística não somente é produzida, mas quando ela é consumida. Para o autor, seu discurso é relevante por razões próprias da sua situação de produção; enquanto para o leitor, as motivações são possivelmente diferentes. Se pensarmos, por exemplo, em Lucíola (1862) e Senhora (1875), a crítica literária indica que José de Alencar construiu críticas à sociedade fútil e aristocrática do Rio de Janeiro, no século XIX. Assim, seus textos têm um objetivo diretamente atrelado ao seu contexto de produção. O leitor do século XX ou XIX, contudo, ressignifica os livros. Eles não tratam de críticas ao “agora”, mas reflexões do passado. Não quer dizer, é claro, que muitos dos pensamentos de Alencar não possam ser transpostos ao presente. Entretanto, reconhecemos que os efeitos produzidos por eles dizem respeito às suas respectivas épocas, isto é, seus contextos sócio históricos.

Logo, é essencial compreender como caracterizar uma produção enquanto literatura depende de diversos fatores. Não diz respeito a um conceito/categoria estático e arbitrário. Ao associarmos um livro à definição de literatura, podemos ter divergências, como frequentemente acontece. Os significados produzidos por um texto vão além de características fixas, pois estão atrelados ao leitor, ao contexto em que foi produzido e lido, ao próprio autor e aos sentidos que produz.

Antonio Candido (2004), por sua vez, desenvolve sua definição de Literatura a partir do conceito de “bens incompressíveis” de Louis-Joseph Lebret. Para o estudioso brasileiro, a arte e a literatura seriam bens incompressíveis: não somente necessários à sobrevivência, como também garantiriam a “integridade espiritual”. Candido (2004, p. 174) reforça que essa classificação de arte e literatura ocorre apenas “se corresponderem a necessidades profundas do ser humano, a necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos de frustração mutiladora”. À vista disso, estabelecemos um sentido amplo de literatura, contemplador tanto do nível da palavra, como de aspectos emocionais do leitor. O autor se refere ao âmago do ser humano, indicando que este se constrói por meio do que apreende e, por conseguinte, da relação que constrói com a produção artística/literária.

Assim, salientamos a capacidade da literatura na constituição de sociedades e todos os elementos que a integram, os quais estão em constante (re)construção. Em consonância com Candido, é importante perceber a natureza (trans)formadora da literatura, em especial, no que diz respeito à identidade do leitor. Ao falarmos sobre o âmago do indivíduo e sobre o risco da “desorganização pessoal”, articulamos o elo existente entre literatura e identidade (sobre o qual discutiremos mais adiante). No entanto, esse vincula não se trata de apenas uma dupla, mas sim de um trio. O impacto da literatura é feito por meio dos seus sentidos, os quais incidem sobre questões identitárias. Desse modo, pensamos em: literatura, sentido e identidade.

Literaturas, significados e identidades

A partir dessa concepção de literatura, destacamos que a noção de sentidos e significados precisa ser pensada em consonância com seu contexto, como discutimos anteriormente. Logo, é essencial conceber os sentidos produzidos por um discurso como mutáveis e suscetíveis de ressignificação.

A ideia de mutabilidade de sentidos (e suas consequências) é melhor exemplificada pela escritora nigeriana, Chimamanda Ngozi Adichie , em sua palestra O perigo de uma história única (2009), em inglês The Danger of a Single Story – divulgada pela TED Talk, em que discute os efeitos, por exemplo, dos processos de colonização na forma como ensina-se história. O ensino de história reflete, em sua maioria, os relatos daqueles que saíam vitoriosos, uma vez que, frequentemente eram os únicos que deixavam registros escritos. Adichie demonstra as consequências de sermos expostos a uma versão dos fatos através de um relato pessoal:

Eu fui também uma escritora precoce. […] eu escrevia exatamente os tipos de histórias que eu lia. Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. Eles brincavam na neve. Comiam maçãs. E eles falavam muito sobre o tempo, em como era maravilhoso o sol ter aparecido. Agora, apesar do fato que eu morava na Nigéria. Eu nunca havia estado fora da Nigéria. Nós não tínhamos neve, nós comíamos mangas. E nós nunca falávamos sobre o tempo porque não era necessário. (ADICHIE, 2009)

Os reflexos do apagamento de outras narrativas e realidades é nítido na construção de identidades. A questão da representatividade cresce como pauta, tanto no cinema, como na literatura. Chimamanda Adichie é uma autora que tem seus livros protagonizados por mulheres e garotas negras, dando a oportunidade dessa comunidade se enxergar além das costumeiras representações de negros escravizados.

A relação literatura e identidade cresce na contemporaneidade, pois muitos autores que fogem da norma (caucasiana, cisgênero e heterossexual) perceberam que apenas reproduziam aquilo a que eram expostos. Hoje, temos livros construídos ao redor do protagonismo negro, feminino, feminista, LGBTQIA e muitas outras identidades marginalizadas, escritos por pessoas que se identificam com essas comunidades. Temos uma resposta desses grupos ao molde apresentado como “normal” por muito tempo e, por consequência, vemos indivíduos se impondo como protagonistas e que se impõem como sujeitos de suas próprias narrativas.

No contexto da colonização, a produção de literatura (seja de cunho histórico ou político), por ser originária da percepção dos “heróis”, tende a ser bastante prejudicial. Em 1500, por exemplo, Pêro Vaz de Caminha escreve a carta que inaugura o Brasil como terra “descoberta”. Como reflexo dessa “história única” sobre a terra brasileira e sobre os indígenas, tivemos duas respostas.

Em um primeiro momento, o termo “descobrimento” foi problematizado, uma vez que parecia indicar um território inabitado e escondido do mundo, quando, na verdade, tinha uma grande população indígena com sua própria organização social e funcionamento. Logo, discutimos a própria expressão “descobrimento do Brasil’ e a substituímos por “achamento do Brasil” (pelos portugueses).

Um segundo questionamento feito diz respeito às descrições de Caminha sobre os indígenas. O português os caracteriza como incivilizados, ignorantes e desavergonhados (em razão da nudez). No entanto, como resposta, Daniel Munduruku publica O Karaíba: Uma história do Pré-Brasil (2009), uma versão contemplando o ponto de vista a partir da ótica dos indígenas. No livro, a expedição dos portugueses às terras indígenas é descrita como a “chegada dos caçadores de almas” (MUNDURUKU, 2010, p. 26). Os anos que separam essas duas produções literárias foram suficientes para remodelar o modo que se concebia a chegada dos colonizadores. Eles deixam de ser salvadores e descobridores, pois passam a ser genocidas e invasores.

Desse modo, nota-se o caráter plural e plástico, além de poderoso, da literatura no que tange à construção de narrativas que, por sua vez, influem nos indivíduos e suas identidades. Como mencionado anteriormente, Lajolo fala que o principal critério de literariedade é a relação estabelecida entre o texto e os contextos em que é produzido e lido. Contexto este que é variável, mas que suscita uma reação da mesma forma. A percepção desse cenário é fundamental para os efeitos das produções sobre os quais Adichie fala: as diferentes visões de mundo que se constroem e se reconstroem, partindo da maneira que uma história é contada.

Por fim, Candido tem um enfoque humano que redireciona o olhar do texto para o leitor e sua relação com a produção artística e literária. Aqui, a questão da representatividade e do autorreconhecimento nas produções literárias tem sua importância posta em palavras. A importância de um discurso está em seus significados, os quais dependem do leitor para terem seu maior impacto. Assim, o encontro do leitor consigo mesmo, por meio da literatura, não deve ser ignorado.

Literatura e seu papel (trans)formador

Para compreender a importância da literatura enquanto produção feita para e pelo ser humano, julgamos essencial destacar que ela vai além do processo de ensino-aprendizagem. Direcionaremos nosso olhar para uma literatura que dialogue com alunos do ensino fundamental e médio, porém, não ignoramos o papel essencial dela na vida humana em geral. Dissertamos sobre sua importância na questão identitária sem focalizar apenas uma faixa-etária ou nível escolar. No entanto, aqui, discutiremos o papel (trans)formador da literatura, considerando que a formação de sujeitos começa desde a infância e a escola é um ambiente propício a isso.

Quando pensamos no valor da literatura, refletimos sobre as diversas funções que ela pode assumir. Candido (2004, p. 175) enfoca seu papel humanizador, para então distinguir a literatura entre três faces, destacando a segunda. Ela diz respeito ao poder de manifestação de sentimentos, emoções e a interpretação de mundo dos indivíduos. O literato brasileiro complementa a noção humanizadora da literatura quando escreve que ela “desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivo e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 2004, p.180). Para o autor, a literatura nos auxilia em organizarmo-nos, bem como na libertação de um mundo caótico, pois somos humanizados por ela.

A visão de Candido talvez nos pareça um pouco otimista. Isso decorre do período em que o autor escreve, seu livro Vários escritos (1970) surge em uma época que a sociedade brasileira construiu perspectivas esperançosas e confiantes no que tange ao ensino. Logo, as considerações do teórico que nos pareçam ingênuas, para o Brasil da década de 70, eram apenas partes de um plano a ser posto em prática.

Dessa maneira, com o intuito de balancear as reflexões de Candido com pensadores contemporâneos, sem divergir muito, apresentamos alguns pensamentos de John Green. O autor estadunidense de livros infantojuvenis possui um canal no Youtube de amplo alcance, em que são produzidos crash courses, isto é, vídeos que ensinariam rápida e intensivamente a respeito de algum assunto. Green, por exemplo, trabalha no crash course de literatura e, através dele, analisa e discute romances da literatura internacional; desde Sófocles, a Gabriel García Márquez e Charlotte Brontë. Por conseguinte, estabelece diferentes funções e significados para a literatura.

Em um primeiro momento, somos apresentados a mesma concepção de uma literatura humanizadora, uma vez que Green (2012) declara que ler se constitui como um ato de empatia, que permite nos colocarmos na posição de outra pessoa. A partir dessa noção já construímos um olhar humano e formador de sujeitos empáticos e sociais. Green (2016) complementa esse pensamento, percebendo que a literatura é um caminho que possibilita explorar o “eu” e explicá-lo. Podemos entender como nos identificamos e aos outros. Somos expostos, então, à relação de literatura e identidade, uma vez que para explorarmos e explicarmos o “eu” é necessário que nos identifiquemos com aquilo que lemos.

Em relação a isso, Regina Zilberman (2008, p. 17) coloca que “a leitura do texto literário constitui uma atividade sintetizadora, permitindo ao indivíduo penetrar o âmbito da alteridade sem perder de vista sua subjetividade e história”. Mais uma vez o elo existente entre literatura e identidade é reforçado. Ao lermos, descobrimos o novo, nos redescobrimos e nos identificamos. A literatura possibilita esse contato entre nossas identidades plurais que se (trans)formam constantemente.

Direcionando nosso olhar a alunos de ensino fundamental e ensino médio, argumentamos que a questão identitária seria mais produtivamente abordada por meio de uma literatura contemporânea. Isso não significa ignorar os clássicos, porém, muitos são os livros das últimas décadas que permitem aos alunos se perceberem e desenvolverem sua criticidade.

Quando se pensa na relação entre literatura e reflexão crítica, podemos citar autores canônicos como Castro Alves e sua poesia abolicionista e social; e, Maria Firmina dos Reis que surpreende o Brasil como a primeira autora mulher, além de ser negra e nordestina, também abordando temas abolicionistas, mas partindo de dentro da comunidade escravizada. Há muitos outros autores do século XVII, XVIII e XIX que são muito presentes na literatura ensinada nas escolas e que promovem reflexões acerca de seus âmbitos sociais e do próprio ser humano.

Todavia, ao pensarmos em uma criação literária contemporânea, não carecemos de exemplos que, além de enfocarem o indivíduo, ressaltam a essencialidade da literatura, da leitura e da escrita. Obras como Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury, e O conto da aia (1985), de Margaret Atwood, destacam o valor dos livros enquanto produtos humanos e meios transformadores da sociedade.

No livro de Bradbury, a organização de bombeiros é unicamente responsável pela queima de todos os livros, em razão de ameaçarem a estabilidade social. O próprio protagonista é considerado transgressor e um problema por questionar essa verdade dada como absoluta. Atwood, por sua vez, constrói uma sociedade que se fundamenta na submissão das mulheres, resultando na proibição da leitura. Offred, a protagonista, caracteriza a Bíblia como um instrumento incendiário, justificando o porquê de as mulheres não terem a permissão leitura. Ambos os romances nos permitem perceber não somente o poder que a literatura possui, mas também como a educação pode promover mudanças em sociedades antidemocráticas.

Em vista disso, citamos um dos livros mais famosos no que diz respeito ao poder de transformação da literatura: 1984 (1949), de George Orwell. O romance reforça a importância da linguagem através da língua utilizada em seu universo, pois na distopia, a língua vigente é a “Novilíngua” ou “Novafala”, desenvolvida pelo governo totalitário do universo. Ela foi criada de forma a manter a ideologia dominante e tornar quase impossível expressar ou conceber pensamentos revolucionários. Não limita apenas a fala, mas também restringe a capacidade de pensar e críticas da população.

Além dessa realidade, o próprio protagonista, Winston Smith, trabalha no Ministério da Verdade. Sua função é manipular textos de modo que o passado neles apresentado reflita a realidade mais proveitosa para o governo. Dessa maneira, as próprias memórias do povo são gradativamente alteradas e consolidadas. Percebemos, então como os registros escritos e a linguagem, ou seja, a criação literária é capaz de transformar a sociedade em que é produzida.

Carla Lopes Ferreira (2012, p. 66) retoma essa noção de literatura enquanto formadora de sujeitos pensantes ao dizer que ela “tem potencial para operar modificações significativas no indivíduo” em relação à percepção individual, de mundo e de ideias. Além disso, a autora reforça a concepção de literatura como via de apreensão da multiplicidade e complexidade do mundo que parece se estabelecer exteriormente ao indivíduo. No entanto, ressaltamos que essa complexidade e multiplicidade também é interior ao indivíduo. Ressignificamo-nos a cada novo elemento que alicerçamos a nossa identidade e realidade. Logo, retornamos à concepção de literatura na qualidade de humanizadora e transformadora de sujeitos críticos e reflexivos, seja interior ou exteriormente.

Tendo-se ciência do papel (trans)formador da literatura, pode-se então compreender a pertinência de sua presença nas salas de aula. Pensando em seu poder humanizador, percebe-se já as consequências positivas que pode gerar na escola, espaço no qual as crianças e adolescentes ainda estão se constituindo como cidadãos. Compreendemos e reforçamos que a literatura vai além do ambiente escolar, porém, é nesse espaço que muitas vezes acontece o primeiro contato com criações literárias instigadoras, além de promovedoras de autorreflexões.

Ferreira (2012, p. 16) destaca a eficácia da literatura “na aquisição e desenvolvimento de um conjunto de saberes e competências destinados a situar o indivíduo em relação a si e ao Outro”. Concebemos esse Outro, como muitos mais daquele que é diferente do “eu”. Muitas vezes os Outros são os próprios “eu” que ainda não identificamos em nós mesmos. Dessa maneira, salientamos a questão identitária como algo intrínseco à literatura e à leitura em sala de aula. Mesmo quando não se trata da identificação perfeita, pois ao não nos reconhecermos, estamos mais próximos de identificarmo-nos.

Em consonância ao trio literatura, sentidos e identidades, lembramo-nos de Denise Rodrigues e Zila Rêgo (2017, p. 236) que apontam que “talvez um caminho de leituras que alie patrimônio cultural e atualidades produza melhores resultados quando se trata de não apenas formar bons leitores, mas justificar a presença da literatura no cotidiano dos sujeitos contemporâneos”. Novamente reforçamos a importância da leitura como bem internacional, muito maior do que o espaço escolar, mas atravessadora da essência humana que se (re)constrói e se (trans)forma.

A literatura, um conceito que engloba nenhuma e todas as definições, constrói-se dentro do contexto em que é produzida e lida. Ela constitui sentidos que podem ser ressignificados, além de terem impactos diferentes em leitores diferentes. Buscar uma noção da literatura e dos seus elos com as identidades do eu e do outro é essencial para perceber os papeis que pode desempenhar no ser humano, seja dentro ou fora da escola. O sujeito social desenvolve sua criticidade a partir do momento em que se concebe enquanto parte de um meio, com sua identidade coletiva e individual. A literatura é intrinsicamente formadora de mentes reflexivas, mas também as transforma constantemente.

Considerações finais

Perceber que litetatura é algo que não pode depender de critérios, sejam eles estilísticos ou temáticos, é o primeiro passo para compreender que ela é capaz de muito mais. Literatura é um conceito que talvez não possa ser conceituado, uma vez que é mutável e heterogêneo. Este artigo almejou expor a função desempenhada pela literatura quando atrelada aos sentidos produzidos e à questão da identificação do leitor.

Para tanto, fez-se necessário apreender a natureza humanizadora da literatura, ou seja, seu papel para além do ambiente escolar. Concebemos ela enquanto essencial para o desenvolvimento humano social e individual. Aqui, podemos nos referir a sua capacidade revolucionária, ou a uma questão mais humana: a da identidade. Destacamos o poder da literatura em formar e transformar sujeitos a partir de espaços impulsionadores da constituição e evolução destes indivíduos enquanto reflexivos, críticos e questionadores.

A literatura tem, na medida que possibilita o espaço do perceber, do pensar criticamente e, a partir daí, do agir, o poder de promover (trans)formações nos indivíduos e em suas sociedades.

Referências

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