O Narrador Dom Casmurro

Bruna Luisa Macelai

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir a obra Dom Casmurro a partir de um olhar crítico para além da narrativa do protagonista com enfoque na figura do narrador, observando o quanto as interferências do narrador influenciam na leitura da obra.

PALAVRAS-CHAVE: Dom Casmurro; narrador; narrador-Protagonista; foco narrativo.

ABSTRACT: This article aims to discuss Dom Casmurro analysing the narrative of the protagonist with focus on the figure of the narrator, observing how much the interferences of the narrator influence the reading of the novel.

KEYWORDS: Dom Casmurro; narrator; narrator-protagonist; narrative focus.

 

Joaquim Maria Machado de Assis, nascido em 21 de junho de 1823, viveu até 29 de setembro de 1908, foi um escritor brasileiro. É um expoente no que consiste a literatura brasileira e uma das maiores referências no que concerne aos escritores brasileiros lidos pelo resto do mundo. Nasceu no morro do livramento no Rio de Janeiro e veio de família pobre. Negro e epilético, sempre à margem, estudou em escolas públicas e através do funcionalismo público foi galgando superioridade intelectual e cultural. Operou com basicamente todos os gêneros literários.

A obra “Dom Casmurro” foi pulicada em 1899 e faz parte da conhecida tríade do autor (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro). Seu principal tema é o ciúme doentio e, assim como os demais romances, tece uma crítica à sociedade brasileira, principalmente do Rio de Janeiro da época.

Durante muitos anos, a crítica se absteve da questão do próprio narrador para única, exclusiva e exaustivamente tratar da traição de Capitu. Entretanto, Dom Casmurro, narrador da obra, é o que de fato interessa. Segundo Silviano Santiago: “Os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou a impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de Dom Casmurro.”

Dom Casmurro narrador/autor narra as suas memórias e passa a contar sua infância vivida na casa de Mata-cavalos, até então é conhecido como Bentinho. Altamente instruído já na infância, tomava lições em casa. Sua vida se resumia à família composta pela mãe, Dona Glória, os tios, Cosme e Justina, o agregado, José Dias e a vizinha, Capitu.

É Capitu que se torna figura central de sua obra. O sentimento de ambos se esclarece já na infância quando a paga da promessa de se formar padre e ir estudar no seminário se aproxima. Mesmo assim, vivem um amor primaveril e de juventude. Já aí, há indícios dos ciúmes de Bentinho e, entre as tramas familiares, ambos tentam fazer despercebido o sentimento que mantêm um pelo outro.

Bentinho não consegue escapar da promessa da mãe e vai ao seminário. Lá, faz um único amigo, Escobar. Viram grandes amigos, amizade que se mantém após o seminário. Ambos conseguem sair antes de se ordenarem. Pagando para que um outro menino, que não Bentinho, se ordene padre conseguem contornar a promessa feita por Dona Glória. Saindo do seminário, Bentinho forma-se advogado. Após retornar, Capitu e Bento Santiago se casam.

Após casados, o ciúme de Bento, sempre presente, volta a ter grande destaque na obra. Depois de terem o primeiro filho a semelhança deste com o amigo Escobar vai transtornar a mente de Bento, que vai degredar a esposa para a Europa e virar as costas ao filho. Tudo isso ocorre depois da morte de Escobar, em que Capitu, no enterro, teria lançado os olhos ao defunto revelando de uma vez por todas a traição. “Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora como se quisesse tragar também o nadador da manhã.”[2]

Capitu morre sozinha no exílio e depois Ezequiel morre também, longe da figura paterna que vive uma mentira no Rio de Janeiro.

O narrador da obra, Dom Casmurro, é Bentinho já na velhice, que conta suas memórias ao leitor. O narrador nos revela que pensara em escrever um livro sobre política ou filosofia, mas, dado ao esforço que despenderia, resolve nos contar sua vida.

Acontece que, ao narrar sua estória desde a infância, todos os acontecimentos, os fatos e os pensamentos passam pelo filtro desse narrador amargurado que teve toda uma vida para roer e deformar suas memórias como se fossem plásticas. A falibilidade das memórias é incontroversa. Neste caso, então, em que temos um narrador completamente parcial que parece querer justificar ao leitor, e a si mesmo, sua vida, aí sim, não se pode transformá-las em verdades inquestionáveis. Muito pelo contrário, nesta obra se deve questionar o tempo todo esse “fantasma” (narrador) que vai nos revelando os acontecimentos de sua vida. Não se trata de rasgar o pacto ficcional criado, mas de observar o foco narrativo com atenção.

O foco narrativo pode ser considerado como a perspectiva que se escolhe narrar o enredo, nesse sentido, o narrador da obra, como já citado, é um narrador em primeira pessoa. E é pelo olhar de Dom Casmurro que a obra se desenlaça. Para Bosi[3] “o olhar” é verdadeiramente uma linguagem forte e carregada de sentido, expressa “a visão do narrador, o ponto de vista ou, mais tecnicamente… o foco narrativo”.

Ainda nesse sentido:

Ele é ora abrangente, ora incisivo, ora cognitivo e, no limite definidor, ora é emotivo ou passional. Os olhares que são revelados pelo narrador-personagem provocam-nos, gerando um hiato, e porque não dizer um certo desconforto, pois sabemos que Machado de Assis utiliza como objeto primordial o comportamento humano, através da percepção e observação de palavras, pensamentos e até os silêncios de homens e mulheres que habitaram o Rio de Janeiro durante o Segundo Império e o início das Repúblicas da Espada e Velha. Seu olhar não se exauriu no espaço-temporal que habitou, e graças a ele podemos hoje incorporar esse olhar machadiano à nossa percepção do social.[4]

Embora Dom Casmurro seja o narrador, não se pode deixar de observar que, na obra, as lacunas deixadas pelo autor implícito permitem que se criem dúvidas a respeito do olhar e do foco do narrador “Apresentando uma determinada visão de mundo, esse foco narrativo seria […] problematizado por uma estrutura maior, o autor implícito da obra, que relativiza, desmente, perturba e coloca à prova esse foco narrativo […]”[5]

Assim, o autor se encontra em certa medida distanciado e se contraponto ao foco do narrador “É característico o uso que Machado faz do narrador em primeira pessoa, seja ele Brás Cubas, o conselheiro Aires, ou o padre de Casa velha, que Machado está, de fato, bem distante do ponto de vista deles”[6]

Ademais:

Uma vez que não explicita seu narrador como não confiável, a obra machadiana possibilita três leituras, segundo Roberto Schwarz: […] uma, romanesca, onde acompanhamos a formação e decomposição de um amor; outra, de ânimo patriarcal e policial, à cata de prenúncios e evidências do adultério, dado como indubitável; e a terceira, efetuada a contracorrente, cujo suspeito e logo réu é o próprio Bento Santiago, na sua ânsia de convencer a si e ao leitor da culpa da mulher [7]

Dom Casmurro envelhecido reside em uma casa construída à imagem e semelhança da casa onde viveu a juventude em Mata-Cavalos pretendendo “unir as duas pontas da vida”. Fica claro que não consegue alcançar esse objetivo.

Deste modo, tem-se um Dom Casmurro quase “fantasma” que perambula pelos cômodos da casa relembrando, remoendo e mastigando os acontecimentos de sua juventude e suas implicações na vida adulta, buscando por motivos, explicações e indícios que justifiquem suas suspeitas e atos.

Evidentemente é impossível que ligue a juventude à velhice, já que todas as personagens da narrativa e pessoas de sua vida já morreram, pessoas essas que o atavam à realidade e à sociedade, além dele próprio não ser mais o mesmo. “Mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”. Portanto, vive isolado e preso em suas memórias. Vivencia um saudosismo muito forte do Bentinho e do amor que sentira outrora.

Existem na obra vários “eu” apresentados que vão se transformando um no outro ao longo da narrativa. Nesse sentido, na tessitura de sua estória há a presença desse “eu” que enuncia que é diverso do “eu” que vivenciou os fatos. Casmurro revive suas memórias, arbitrárias, seletivas e modificadas pelo decurso do tempo, para que possa contá-las, mas essas memórias dizem respeito ao seu eu passado, Bentinho, ou Bento Santiago, aquele que vivenciou essas emoções. “Toda a narrativa [de Dom Casmurro] fica marcada pelo tempo e pelo espaço da escritura (da enunciação) e pelo tempo e espaço da memória, num movimento entre o presente e o passado”

Não há identificação entre esse “eu” que narra com aquele que viveu os fatos. Durante a narrativa há construção e reconstrução desse sujeito. Tais movimentos levam a um despojamento do eu e a não identificação do sujeito.[9]

Esse movimento é um dos motivos da impossibilidade de ligar as duas pontas da vida. Para além dos entes queridos estarem mortos, já não é mais a mesma pessoa que vivenciou as passagens que vai contar. Não só não é a mesma pessoa, como essa persona “Dom Casmurro” é muito diversa do jovem Bentinho.

Além de narrador, podemos tomar Dom Casmurro por personagem da obra, já que ao longo da história vários espectros de Bento Santiago são apresentados. Durante a juventude, tem-se Bentinho, o personagem adulto é Bento Santiago e o final Dom Casmurro.

A obra vai desenrolar por meio do primeiro amor de Bentinho e vai culminar no tema do ciúme doentio que sente por Capitu ao longo da vida e já presente, como fruta dentro da casca, desde jovem.

Ao longo do enredo e corroído pelos ciúmes, que são muitos, Bentinho vai se transformando em Dom Casmurro até que de narrador passe a integrar a narrativa como personagem.

Agora no Machado tem essa coisa extraordinária de maldade de ele imitar sobretudo a elegância da figura de classe dominante, de imitar e refinar as representações mais estimadas da classe dominante a respeito dela mesma, mas com propósito destrutivo. O Dom Casmurro é uma exploração da poesia da reminiscência infantil, da poesia dos quintais, da poesia do primeiro namoro, de tudo que é mais poético na poesia brasileira. Ele toma verdadeiros ideais estéticos da classe dominante, incorpora o seu estilo, para depois lhe mostrar a sua canalhice. [10]

No último capítulo, tem-se um questionamento se a Capitu de Engenho Novo já estaria dentro da de Mata-cavalos, questionamento mais adequado ao leitor de Machado de Assis seria: “O resto é saber se Dom Casmurro de Engenho Novo já estava no de Mata-cavalos, ou se este foi mudando naquele por efeito de algum incidente. […] Ao que responder-se-ia: Se te lembras bem de Bentinho menino, hás de reconhecer que um estava dentro do outro, como fruta dentro da casca.”

Embora haja uma diferença evidente entre Bento Santiago e Dom Casmurro, os indícios de sua real personalidade e a possibilidade de que um culminaria no outro já estão presentes desde o começo da narrativa.

O narrador, e então personagem, escolhe e dinamiza suas memórias, não arbitrariamente, e, sim, movido pela paixão, como forma de fundamentar os atos futuros, que são só revelados nos últimos capítulos da obra.

Dom Casmurro, como num processo, apresenta elementos e testemunhas que incriminam Capitu na traição que ele imagina que ela tenha cometido. Estas testemunhas e elementos são todos os outros personagens e familiares e as falas que Dom Casmurro julga convenientes para atestar a natureza traiçoeira de sua esposa. Ele é promotor, juiz e executor da pena de Capitu. A obra é verdadeiro processo inquisitivo que desnaturaliza os direitos e não dá voz à acusada Capitu. Visto sob a ótica de nosso processo penal hoje em dia, manifestadamente ilegal. Se ilegal, no mínimo questionável quanto narrativa.

 Não sei, se devesse votar secretamente num júri, se resistiria à minha convicção íntima moral de que existiu o adultério. Mas devo agir aqui como juiz profissional, impedido de decidir por consciência e obrigado a decidir conforme as provas.[11]

Na narrativa, pode-se observar o quanto Bentinho é influenciado pelas pessoas que o rodeiam. José Dias e Dona Glória são os personagens mais relevantes nessa questão. Bentinho faz basicamente tudo que a mãe deseja, mesmo quando tenta manobrar a situação a seu favor.

Quanto a José Dias, o agregado, tem-se provavelmente a pessoa mais importante na formação do caráter de Bentinho. Bentinho descobriria seu amor por Capitu se não fosse sugestionado por José Dias? Teria caracterizado os olhos de Capitu como olhos de cigana oblíqua e dissimulada? Veria segundas intenções nas ações de Pádua? Foi José Dias que colocou ideias na cabeça de Bentinho ou Dom Casmurro que colocou palavras na boca de José Dias?

O fato é que na ausência de figura paterna, o agregado é figura que atua de forma paralela a Dona Glória na criação de Bentinho, que desde cedo se encontra em meio às tramas de interesses dentro de casa. Assim como vai apresentar ao longo da narrativa, todos têm papeis a representar na sociedade, como num teatro, para a busca de seus interesses, crítica machadiana já apresentada em outras obras.

O casal de jovens está de dois lados opostos na esfera social. Há um evidente distanciamento e escalonamento social entre eles, que pode ser, inclusive, observado através da representação do muro que separa a casa de Bentinho da casa de Capitu e que ambos teimam em ultrapassar, ignorar e esburacar. Nesse sentido, temos a família típica aristocrata de Bentinho imbuída de preocupação e a de Capitu fechando os olhos à situação. O que para uns viria a calhar, para outros seria um perigo social.

Machado, mais uma vez, tece críticas ao Rio de Janeiro do século XIX e apresenta essa estratificação social e esse parasitismo, na figura da família Pádua, que almeja um casamento como ascensão social, e do agregado, por exemplo. Neste romance, ainda, cumpre apontar a crítica sútil do meio de formação educacional das classes privilegiadas da época que se resumiam ao seminário, à carreira da advocacia e da medicina.

Ao transpor para o estilo as relações sociais que observava, ou seja, ao interiorizar o país e o tempo, Machado compunha uma expressão da sociedade real, sociedade horrendamente dividida, em situação muito particular, em parte inconfessável, nos antípodas da pátria romântica. O “homem do seu tempo e do seu país”, deixava de ser um ideal e fazia figura de problema.[12]

Quanto ao cerne, se teria ou não Capitu traído Bentinho, cabe ressaltar que vários fios ligam Bentinho aos demais personagens. Em um primeiro momento, tem-se, sim, esse possível “triângulo” amoroso em que Capitu o teria traído com Escobar. Analisando-se atentamente, pode-se perceber que, na realidade, tanto Escobar como Sancha podem estar ligados a Bentinho de uma maneira muito mais poética do que o leitor de 1899 acreditava.

Observa-se já no seminário que Escobar e Bentinho têm uma relação muito mais expansiva que a prevista na época para amigos. Não há indícios na leitura de que essa relação tenha passado do plano da mente para o plano do real, mas há uma possível e latente homossexualidade apresentada neste duplo. Não há, na terra ou no céu, ninguém que se iguale à Capitu e a Escobar no coração de Bentinho. Muitas vezes, percebe-se que Escobar parece muito mais com Capitu do que com Bentinho, apresentando-se ativamente na vida deste, quase como a figura masculina da mulher por quem Bentinho é apaixonado. Nesse mesmo sentido, Sancha, apesar de amiga de Capitu, está intimamente ligada a Bentinho. Além do relacionamento com o filho, Ezequiel, que, embora tratado indiferentemente, é permeado de convicções acusatórias. Mais do que um triângulo amoroso, tem-se um verdadeiro entremeado de fios que se conectam pela mente imaginativa e insidiosa de Bento Santiago.

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor… Mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou. [13]

A figura de Capitu, assim como tudo, também passa pelo filtro de Casmurro. Apesar de ser descrita como uma mulher diferente e dona de si para a época, ela não tem voz.  Como então efetuar um retrato fiel de Capitu já que tudo o que diz respeito a ela foi manipulado pelo narrador?

Não posso deixar ainda de mencionar a pequena mas significativa frase: “Tal é a opinião dos imparciais”. Essa opinião é a que fala do enigma e da impossibilidade de oferecer uma interpretação definitiva para o que ele propõe. Os “imparciais”, então, caracterizam-se como aqueles leitores que se abstêm de julgar Capitu e de fechar a questão relativa a uma leitura conclusiva do romance.[14]

Diante do apresentado, tem-se uma narrativa aberta, em que os leitores podem apresentar várias interpretações: inocência ou culpa de Capitu ou, ainda, algum tipo de combinado para gerar um filho que Bento Santiago não poderia gerar para leitores mais imaginativos.

Para quem esteve o tempo todo esteve durante o tempo todo de relato levantando indícios da traição visando legislar em causa própria, o final dessa narrativa oferece-nos um perfil desse casmurro-narrador marcado, essencialmente, pela ambiguidade. Sobre as acusações contra Capitu, deixa-nos como resposta a sua exposição retrospectiva. Em relação a essa questão – a do adultério -, Antonio Candido (1977, p.25) nos fornece a seguinte conclusão: “[…] dentro do universo machadiano, não importa muito que a convicção de Bentinho seja falsa ou verdadeira, porque a consequência é exatamente a mesma nos dois casos: imaginária ou real, ela destrói a sua casa e a sua vida[15]

Mais importante do que descobrir se houve ou não traição e se Ezequiel era ou não filho de Bento Santiago é observar o quanto as interferências do narrador influenciam na leitura da obra. Dessa maneira, talvez o foco narrativo seja o elemento primordial de Dom Casmurro. Refletir sobre ele talvez seja mais importante do que sobre o enredo em si.

O produto da literatura é a incerteza, tendo em vista a possibilidade de um mundo de significações. Nesta seara, caberá ao leitor depreender e construir suas significações a partir da leitura deste amontoado de referências que ele carrega e manuseia quase plasticamente para a atribuição dos sentidos possíveis ao texto. Conforme afirma Regina Zilberman (2001, p. 91), “a flexibilidade de cada texto decorre da habilidade em responder de modo distinto a cada leitor ou aos segmentos variados de público; decorre igualmente da propriedade de o destinatário intervir na obra.”

Nesse sentido o leitor deverá trabalhar ativamente, questionando o narrador a todo momento, para buscar por possíveis, mas não absolutas, respostas para as dúvidas que lhe aparecem ao longo da leitura.

O terreno é movediço, e cabe ao leitor orientar-se como pode, desamparado de referências consentidas, e tendo como únicos indícios as palavras do narrador […] com indisfarçada intenção de confundir. Uma espécie de vale-tudo onde, na falta de enquadramento convencionado, a voz narrativa se torna relevante em toda a linha, forçando o leitor a um estado de sobreaviso total, ou de máxima atenção, próprio à grande literatura. [16]

Ademais, o narrador, ao tentar uma aproximação com o seu leitor, busca a possibilidade de transmitir essa boa impressão sobre si e diminuir o impacto de sua violência, seja emocional seja nas atitudes que vai tomando ao longo da narrativa. Dom Casmurro tenta estabelecer um certo vínculo que permita que o leitor se torne cúmplice de sua narrativa.

Uma característica importante é que, tendo vivido já tudo que conta, narra de uma perspectiva de apriorismo. É possível que ele, através da sua retórica, prove com maior facilidade o que quer provar, já que ele já tem um conhecimento prévio de onde quer chegar.  Sua oratória, ou retórica, culmina necessariamente no seu objetivo, ou seja, provar sua conclusão, que não é necessariamente verdade, mas, sim, verossímil, trabalhada a partir de uma imagem fantasiosa que suas memórias não podem exatamente  comprovar, mas que fazem sentido para a realidade deturpada deste velho rancoroso e corroído pelo remorso que procura uma forma de se justificar.[17]

Ao mesmo tempo, tenta garantir a veracidade das informações que vai compartilhar ao, por exemplo, apontar que mesmo que não seja da vontade de seu leitor, contará os fatos como eles ocorreram de verdade. Tais artimanhas buscam dar validade à sua fala e convencer o leitor da veracidade das informações que presta. Assim, vai conquistando o leitor que deverá, através de suas referências e intuição, preencher lacunas que deixa no texto. O objetivo é a concordância do leitor, não como uma necessidade, mas como uma maneira de obter compreensão e justificar suas atitudes e vida nas confidências que tece.

Desse modo, assegura o seu compromisso com a verdade, referendando a validade do texto, de modo que o leitor pode confiar tanto nas informações apresentadas na narrativa como nas inquietações confidenciadas.[18]

Conforme a narrativa se desenvolve, fica evidente o motivo pelo qual esse narrador resolve publicar essa estória, que seria incriminar Capitu como em um tribunal. É para isto que o narrador exige a cumplicidade do leitor: para que a inocência de Bento Santiago seja atestada e a culpa de Capitu punida, além da justificação e reafirmação que necessita e busca constantemente na figura do leitor. O leitor deve buscar por um sentido que foge até mesmo ao narrador e atua também como um espelho distorcido que reflete de volta para o narrador uma imagem deformada de si mesmo.[19]

O argumento funciona da seguinte forma: ele, Santiago, não é ciumento sem causa; ele não executou uma vingança injusta: Capitu é culpada. Caso os leitores o julguem inocente, ele estará limpo a seus próprios olhos […]. Praticamente três gerações – pelo menos de críticos – julgaram Capitu culpada. Permitam-nos reabrir o caso (Caldwell, 2002, p.99 e 100).[20]

Para além do narrador, é importante notar que, nestas brechas deixadas na obra, se pode perceber a figura do escritor. Além dessas brechas existem, até mesmo, algumas pistas do escritor. Esses indícios reforçam e indicam que deve haver alguma desconfiança em relação ao narrador e desestabilizam os mecanismos empregados por ele para estabelecer a veracidade de seu discurso.

Neste processo, Machado coloca também no banco dos réus aqueles leitores que não são capazes de questionar a narrativa de Dom Casmurro, assumindo o narrador como autoridade soberana e honesta. Estes leitores são colocados no tribunal e julgados pelo que não está dito na obra, pelas escapadas do discurso do narrador que na realidade são um trabalho machadiano de denúncia de “hábitos mentais arraigados e errôneos” que Bento Santiago reflete.[21]

Sendo assim, a principal questão da obra, como já dito, não se encontra na traição ou não de Capitu. O tema principal é o ciúme. Para além disso, o primordial, sensível e sútil de sua narrativa está em perceber os recursos empregados pelo narrador, movido pelo ciúme, para validação do seu discurso e convencimento do leitor de que a ruína de sua vida foi culpa da primeira amada de seu coração e não de sua personalidade e histeria.

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[1]  SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos tópicos: ensaios sobre dependência cultural. Disponível em:< https://www.usp.br/bibliografia/obra.php?cod=15293&s=grosa> Acesso em: 08 de out. De 2019.

[2] ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 32. ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 927.

[3] BOSI, Alfredo. Machado de Assis: o enigma do olhar. 4 ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642001000100012> Acesso em: 08 de out. De 2019, p.10.

[4] SÁ, Luiz Carlos de. DOM CASMURRO: O MAL OLHADO. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/machado_de_assis/Dom%20Casmurro-%20o%20mal%20olhado.pdf>. Acesso em: 08 out. 2019, p. 03.

[5] KRUGER, Patrícia de Almeida. Penetrando o Éden: Anticristo, de Lars von Trier, à luz de Brecht, Strindberg e outros elementos inquietantes. 2016. Disponível em: < https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8147/tde-20122016-152701/pt-br.php> Acesso em: 08 de out. De 2019, p. 45.

[6] GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo. Uma reinterpretação de Dom Casmurro. Trad. Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.8.

[7] SCHWARZ, Roberto. “A poesia envenenada de Dom Casmurro”. In: _______. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 10.

[8] CELIDONIO, E. P. A paternidade em Dom Casmurro: ocultamentos e revelações. 2006. 216f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em: < https://lume.ufrgs.br/handle/10183/8659> Acesso em: 08 de out. De 2019.

[9] SEIDEL, Verônica Franciele. A ATUAÇÃO DO NARRADOR/PROTAGONISTA EM DOM CASMURRO. Disponível em: < http://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/28>. Acesso em: 08 de out. de 2019.

[10] MACHADO DE ASSIS: UM DEBATE: CONVERSA COM ROBERTO SCHWARZ. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, v. 29, mar. 1991. Quadrimestral. Disponível em: <https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/2572191/mod_resource/content/0/ALENCASTRO_Luiz_Felipe_et_al._Machado_de_Assis_um_debate_-_conversa_com_Roberto_Schwarz.pdf>. Acesso em: 29 set. 2018, p. 68.

[11] GOULART, Audemaro Taranto. Dom Casmurro, ainda e sempre. 2005. Disponível em: <https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/2572188/mod_resource/content/0/Dom_Casmurro_-_Ensaio.pdf>. Acesso em: 29 set. 2018, p. 03.

[12]SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades. 2000. Disponível em: < https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2014/04/schwarz-um-mestre-na-periferia-do-capitalismo.pdf> Acesso em: 08 de out. de 2019, p. 09.

[13]  ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 32. ed. São Paulo: Ática, 1997. 184 p.25.

[14]GOULART, Audemaro Taranto. A PLANTA BAIXA DE DOM CASMURRO. 2008. Disponível em: <https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwjH35Hy743lAhUWGLkGHcq9CZoQFjAAegQIABAH&url=https%3A%2F%2Frevistadaanpoll.emnuvens.com.br%2Frevista%2Farticle%2Fdownload%2F6%2F3&usg=AOvVaw33bWhdbHTNscACowMC4GX8>. Acesso em: 08 out. 2019, p. 26.

[15] SACCHETTO, Maria Elizbeth. Dom Casmurro: Um novo olhar em Machado de Assis: Atemporal. Organizado por Darlan de Oliveira Gusmão Lula: Juiz de Fora: Ufjf/mamm, 2012, p. 61.

[16] SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades. 2000. Disponível em: < https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2014/04/schwarz-um-mestre-na-periferia-do-capitalismo.pdf> Acesso em: 08 de out. de 2019, p. 18.

[17]  SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos tópicos: ensaios sobre dependência cultural. Disponível em:< https://www.usp.br/bibliografia/obra.php?cod=15293&s=grosa> Acesso em: 08 de out. De 2019.

[18] TORNQUIST, Sandra Regina; RAMOS, Flávia Brocchetto. LEITURA EM DOM CASMURRO: O NARRADOR, O EDITOR E O LEITOR. 2008, Disponível em: < http://e-revista.unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/view/2077> Acesso em: 08 de out. De 2019, p. 79.

[19]SEIDEL, Verônica Franciele. A ATUAÇÃO DO NARRADOR/PROTAGONISTA EM DOM CASMURRO. Disponível em: < http://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/28>. Acesso em: 08 de out. de 2019.

[20] FRANCHETTI, Paulo. No banco dos réus.: notas sobre a fortuna crítica recente de Dom Casmurro. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v23n65/a19v2365.pdf>. Acesso em: 08 out. 2019, p. 289.

[21] FRANCHETTI, Paulo. No banco dos réus. Notas sobre a fortuna crítica recente de Dom Casmurro. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142009000100019&script=sci_arttext>. Acesso em: 29 nov. 2018.