A representação do negro no conto machadiano

Samara Lima

RESUMO: Este ensaio tem como objetivo analisar alguns contos escritos por Machado de Assis considerando que o autor foi, durante muito tempo, lido pela crítica literária brasileira como omisso em relação à condição do negro no Brasil escravocrata. No entanto, nas últimas décadas, a partir da revisão teórica dessas premissas realizada por nomes como Eduardo de Assis Duarte (2007), Machado de Assis vem sendo lido como autor afrodescendente e suas obras vêm sendo reinterpretadas, com base na relação entre o projeto literário do escritor e sua etnia. Assim, tomando como pressuposto esse discurso revisionista, este ensaio busca situar a obra de Machado de Assis na discussão sobre literatura afrodescendente e refletir sobre o pertencimento étnico do autor e suas formas de manifestação em alguns contos famosos do escritor, como “O caso da Vara” (1899), Pai contra Mãe” (1906), “O espelho” (1882) e “Mariana” (1871). Em anexo, apresentamos a transcrição da carta escrita por Hemetério dos Santos (1908), publicada no jornal Gazeta de Notícias, a fim de sustentar a hipótese de que seu comentário foi uma espécie de marco zero dos discursos acusatórios proferidos contra Machado de Assis (MOUTINHO, 2015).

PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis; Literatura Afrodescendente; Representação.

ABSTRACT: This essay aims to analyze some short stories written by Machado de Assis considering that the author was, for a long time, read by Brazilian literary criticism as silent in relation to the condition of the black people in Brazil’s slavery time. However, over the last decades, from the theoretical review of some premises carried out by names like Eduardo de Assis Duarte (2007), Machado de Assis has been read as an Afro-descendant author and his works have been reinterpreted, based on the relationship between the literary project of the writer and his ethnicity. Thus, assuming this revisionist discourse, this essay seeks to situate Machado de Assis’s work in the discussion of Afro-descendant literature, to reflect on the author’s ethnic belonging and his forms of manifestations in some of his famous short stories, such as “O caso da the Vara” (1899),”Pai contra Mãe” (1906), “O espelho” (1882) and “Mariana” (1871).  Attached is a transcription of the letter written by Hemetério dos Santos (1908), published in the newspaper Gazeta de Notícias, in order to attest the hypothesis that his comment was a kind of ground zero of the accusatory speeches against Machado de Assis (MOUTINHO, 2015)

KEYWORDS: Machado de Assis; Afro-descendant Literature; Representation.

 

Não é novidade a posição de destaque que Machado ocupa na literatura brasileira, sendo considerado, por exemplo, pelo importante crítico literário norte-americano Harold Bloom (2003) como um dos grandes gênios do cânone ocidental a ponto de mencionar seu nome numa listagem de 100 autores mais criativos da história da literatura. Porém, no que tange a sua integração no cânone literário brasileiro, não é possível deixar de perceber que Machado de Assis não só não é apontado enquanto escritor negro, como também, seu pertencimento étnico foi, pouco a pouco, posto em dúvida por um discurso recorrente da crítica literária brasileira, como, por exemplo, podemos ler em Domício Proença Filho (1988), que insistiu em afirmar que tanto o cidadão, quanto o autor, manteve-se alheio às questões políticas e à problemática do negro na sociedade em que estava inserido.

Recentemente, tal discurso vem sendo posto em xeque, através de estudos que visam reinterpretar a obra machadiana e que buscam pensar a relação entre os aspectos políticos, sociais e econômicos do século XIX e sua produção, como faz, por exemplo, Alcides Villaça (2005). Neste ensaio, defendemos que, os contos que fazem parte deste estudo “Mariana” (1871), “O caso da Vara” (1899), “Pai contra Mãe” (1906) e “O espelho” (1882), compõem criticamente um panorama dessa sociedade e um posicionamento, ainda que implícito, do escritor em relação à representação da negritude. 

Machado de Assis e a crítica literária brasileira

A fim de entender melhor como surge a ideia de um Machado de Assis isento, apresentamos um pequeno passeio pela crítica literária que comenta a produção do autor.

Carolina Vianna Dantas (2009), em seu texto “O Brasil café com leite. Debates intelectuais sobre mestiçagem e preconceito de cor na primeira república”, discute sobre a diversidade de produções de intelectuais inseridos na primeira república que investiram na construção de uma identidade nacional e debateram sobre o preconceito de cor e mestiçagem no Brasil. Dantas observa como a sociedade oitocentista foi marcada por um pensamento científico que previa a inferioridade dos sujeitos negros e seus descendentes. Tendo como mote para a discussão alguns intelectuais “dissidentes” (DANTAS, 2008, p.74), a autora reflete sobre como esses intelectuais, que participaram dos debates sobre a mestiçagem, “operaram sensíveis deslocamentos no debate racial e cultural sobre identidade nacional no período” (DANTAS, 2009, p. 78) ao se desvincularem das teorias raciais que prevaleceram naquela época. 

Um dos autores que a teórica aborda é o professor negro Hemetério dos Santos, que no decorrer de suas produções se posicionou explicitamente contra a perseguição aos negros e o preconceito racial existente no século XIX. Nesse sentido, Dantas recupera a carta aberta de Hemetério dos Santos1 destinada a seu amigo Fábio Luz, publicada na Gazeta de Notícias, em 1908, e expõe como o autor da carta acreditava que Machado de Assis “teria apagado quaisquer vestígios significativos do negro em sua obra” (DANTAS, 2008, p. 74). Dantas não pretende analisar se o comentário do professor é válido ou não. Mas, aqui, tendo como referência o volume de cartas redigidas por Irene Moutinho (2015), gostaria de recuperar a carta e, principalmente, os comentários ácidos e apostar no argumento de que a carta de Hemetério dos Santos funciona como marco zero da acusação que “deu origem a levianos e tendenciosos comentários” (MOUTINHO, 2015, p. 209) sobre a escrita de Machado de Assis enquanto alheia à problemática do negro no século XIX. 

Segundo o argumento de Santos (1908), a presença do negro na obra machadiana partiu de ideias preconcebidas de sua raça e não mereceram “senão pálidas e aguareladas pinturas tão tímidas” (SANTOS, 1908, p. 2) que desfiguravam a “moral, simples e tradicional” (SANTOS, 1908, p. 2) do sujeito negro. Para ele, Machado de Assis “não foi um observador fiel” (SANTOS, 1908, p. 2) da sociedade oitocentista e negligenciou o “problema do negro” (SANTOS, 1908, p. 2) que estava presente na “vida de nação” (SANTOS, 1908, p. 2) brasileira. 

Hemetério dos Santos afirmava positivamente a sua cor, acreditava que os negros tinham um papel importante na construção de uma identidade nacional e que suas produções também eram “sem par no mundo” (SANTOS, 1908, p. 2). Por isso a insistência em exigir de Machado de Assis, que também era negro, uma literatura que levantasse “a pedra que injustamente esmagou seus irmãos de cor e de sofrer” (SANTOS, 1908, p. 2). Para o autor da carta, é impensável que um sujeito negro reprima tanto em vida, quanto em suas produções ficcionais, a cor que ele tanto defendia. Foi a partir desse raciocínio que intitulou a obra machadiana como uma “arte doentia” (SANTOS, 1908, p. 2) e sem nenhuma “relação com o sentimento nacional” (SANTOS, 1908, p. 2). Assim, Hemetério acreditava que Machado de Assis estaria abaixo de autores como Joaquim Manoel de Macedo, Bernardo Guimarães, Castro Alves “e tantos e tantos outros” (SANTOS, 1908, p. 2) que “não deixaram de molhar a pena nesse tinteiro de dor e de vergonha” (SANTOS, 1908, p. 2). Para concretizar melhor a especulação da carta como inauguração da crítica referente a Machado de Assis, gostaria de comentar brevemente algumas críticas que se perpetuaram no discurso literário após a publicação da mesma.

  Silvio Romero, importante crítico literário no século XIX, que Hemetério dos Santos reconhece como parte da “legião” de autores que desenvolveram uma escrita nacional, também proferiu comentários ácidos sobre Machado de Assis. Romero, no livro Machado de Assis (1897), no qual faz um trabalho comparativo entre Machado e Tobias Barreto, condenava Assis pela ausência de “cor local” e por falta de brasilidade na sua produção, como aponta o trecho: “Em seus livros de prosa, como nos de versos, falta completamente a paisagem, falham as descrições, as cenas das naturezas, tão abundantes em Alencar.” (ROMERO, 1936. p. 55). Foi possível observar, então, que a falta de brasilidade, isto é, a pouca importância que o Bruxo do Cosme Velho atribuía à fauna, à flora e aos elementos indígenas, presentes nas obras de José de Alencar, comprovam, na opinião de Romero, o descompromisso de Machado de Assis com a identidade nacional.

Outra avaliação, mas com comentários igualmente nada positivos, foi proferida por Mário de Andrade, em seu livro Aspectos da Literatura Brasileira (2002). Em um capítulo intitulado “Machado de Assis”, Mário considera o autor como um “anti-mulato”, aquele que não só venceu a mestiçagem ao assimilar moldes e tendências europeias ou por se ocultar no texto ao esconder sua afrodescendência, mas também, um exemplo de posicionamento apolítico, já que, para ele: “Machado de Assis não profetizou nada, não combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo” (ANDRADE, 2002, 128). Ambos, Mário de Andrade e Sílvio Romero, consideraram Machado como um exemplo de traidor da realidade brasileira, por se abster em sua produção literária de tratar temas recorrentes nas obras de seus contemporâneos.

O fato é que esses discursos ainda se fazem presentes na contemporaneidade, como, por exemplo, em Domício Proença Filho. O teórico, em seu texto “A trajetória do negro na literatura brasileira” (1998), ao discutir uma possível origem para a literatura negra, pontua: “De minha parte, entendo que a literatura machadiana é indiferente à problemática do negro e dos descendentes de negro, como ele.” (PROENÇA FILHO, 1998). Para ele, Machado se desvia das temáticas afrodescendentes, justificando que, mesmo quando o autor traz em suas produções personagens escravizados, os caracteriza como meros figurantes. Dessa forma, na opinião de Proença, não haveria um compromisso por parte de Machado com as questões de sua raça.

Após a leitura desse corpus crítico, no intuito de entender as críticas a Machado de Assis e a acusação de sua suposta indiferença aos problemas relacionados à escravidão e à negritude no período oitocentista, realizaremos um estudo sobre como tais críticas vêm sendo deslocadas. Eduardo de Assis Duarte (2009) em seu texto “Estratégias de Caramujo”, ao tecer uma discussão sobre o posicionamento de Machado de Assis, aborda a importância de levar em consideração o momento histórico em que o autor estava inserido para o entendimento do contexto em que sua obra e seu nome estavam surgindo e se consolidando. Assim, o crítico pontua que a sociedade do século XIX era escravagista e marcada pela crença no embranquecimento racial, em que a cultura branca, ocidental, europeia e discursos de desvalorização dos negros e mestiços se constituíam como referência de civilização. Por isso, a recusa de valorização da etnicidade por parte da população negra foi, muitas vezes, reprimida como forma de sobrevivência.

Mas a argumentação dele é que Machado não compartilhou desses pensamentos, pois não há nos escritos machadianos nenhuma palavra de apoio, implícita ou explícita, à escravidão. O fato é que, para ele, Machado de Assis não optou pelo confronto abertamente engajado e comprometido com a causa, como o escritor Lima Barreto, mas sim pela utilização de recursos literários como a ironia, o humor, o ceticismo e a mudança de foco narrativo para inscrever o seu posicionamento enquanto sujeito mulato numa sociedade racista. A essas estratégias ele intitula “Poética da Dissimulação”, em que o jogo entre o dito e o não dito participa simultaneamente na construção do sentido do texto. O comentário do teórico é muito pertinente, pois foi a partir desse pensamento que este ensaio igualmente visou refletir, a partir dos contos selecionados, sobre o pertencimento étnico do autor e suas formas de manifestação.

A representação do negro no conto machadiano

Alcides Villaça (2006), em seu texto “Querer, poder, precisar: ‘O caso da Vara’”, pontua como, nas narrativas machadianas, os pequenos gestos do cotidiano ou histórias aparentemente sem relevância abrangem questões de largo alcance e constituem um microrrealismo da realidade social. Com essa definição, foi possível proceder à análise do primeiro conto “O caso da Vara” (1899), de Machado de Assis, publicado no volume Páginas recolhidas, escrito após a Abolição da Escravatura (1888), mas que tem a história desenvolvida num período anterior à data de sua publicação, como expõe o narrador no início da narrativa: “Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano; foi antes de 1850” (ASSIS, 2009, p. 139 [1899]).

À primeira vista, o conto parece tratar da fuga de Damião do seminário e da carreira eclesiástica que deveria abraçar, mas renega. O personagem rapidamente escolhe Sinhá Rita, uma amiga querida do padrinho, para ajudá-lo em tal empreitada. Com a fuga, que é acompanhada da descrição do estado de Damião caracterizado por meio de adjetivos como espantado, medroso e fugitivo, o leitor deixa-se comover pela situação do personagem, torcendo até para que tudo corra bem com o rapaz, pois tudo leva a crer que o “caso da vara” tem como personagem principal o “pobre” Damião. Porém, no decorrer da narrativa, Lucrécia (que paradoxalmente significa “a que lucra”), escrava de Sinhá Rita, que vinha ocupando o pano de fundo da cena, ganha protagonismo quando é ameaçada por rir de uma piada:

Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas. (…) Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:

 -Lucrécia, olha a vara! (ASSIS, 2009, p. 141 [1899])

É interessante notar como a história sofre um deslocamento no núcleo narrativo. A personagem, que parecia ser acessória, descrita em um primeiro momento como “negrinha, magricela, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda” (ASSIS, 2009, p. 142 [1899]), ganha destaque e se constitui como o alvo que, aparentemente, o narrador teria visado desde o início. E, pouco a pouco, os personagens que pareciam bonzinhos, assumem características que antes não eram explícitas, como Sinhá Rita, que transparecia ser uma mulher vaidosa, risonha, mas se torna cruel quando se dirige à Lucrécia. E Damião que, aparentemente frágil, não interfere na ameaça feita pela Sinhá. O protagonismo de Damião, então, é substituído pelo silenciamento de Lucrécia e somos levamos a nos perguntar: sobre quem, realmente, é a história? Para quem tem conhecimento do conto, é instigante notar que o fato de o conto terminar sem uma resolução do caso, sugere uma ambiguidade e incita a pergunta: o tema do conto trata da fuga do seminarista ou da crueldade do sistema escravagista?2

O caso da Vara é exemplar para demonstrar como Machado de Assis utilizando-se de uma contenda familiar, com sua capacidade de miniaturizar uma situação aparentemente sem importância (neste caso encenado numa sala de visitas), problematiza nas entrelinhas as questões, como a escravização, o poder senhorial e a maleabilidade dos valores e interesses da sociedade. Dessa forma, quase em silêncio, o Bruxo do Cosme Velho desmascara a sociedade – e seus leitores de mentalidade escravagista, que se apiedam de Damião, mas pouco se importam com o destino de Lucrécia.

Já no segundo conto, “Pai contra Mãe” (1906), publicado em Relíquias da casa velha, a violência da escravização percorre toda a narrativa. Elisângela Lopes (2007), em seu texto “’Pai contra mãe’: memórias de um narrador da escravidão” aponta como logo no começo do conto é possível perceber a representação dos instrumentos coercitivos de dominação social e como, a partir da voz do narrador, pode-se entrever o posicionamento deste. O narrador diz: “A escravidão levou consigo muitos ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais”. (ASSIS, 2009, p. 147 [1906])

A descrição explícita dos instrumentos permite que o leitor visualize o funcionamento do que seria essa instituição, pautada na dominação racial, no intuito de manter o poder nas mãos de uma pequena elite senhorial. Tal convite à visualização proposta pelo narrador é realçado com o pedido: “imaginai uma coleira grossa, com haste grossa também à direita ou à esquerda, até o alto da cabeça e fechada atrás com chave” (ASSIS, 2009, p. 147 [1906]). A utilização do “imaginai” promove uma ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que o narrador tenta criar uma imagem dos instrumentos de tortura, no intuito de o leitor visualizar mentalmente os elementos de funcionamento da escravidão, é como se igualmente dissesse: imaginem leitores, essa “coleira grossa com, com a haste grossa” (ASSIS, 2009, p. 147 [1906]) no teu pescoço. Ponha-se no lugar desses sujeitos…

Outro elemento importante é que a narrativa se apresenta como memória da escravidão, já que o conto foi publicado em 1906, após a Abolição da Escravatura (1888). Como dito anteriormente, a narrativa tem início com a explanação, por parte do narrador, de alguns instrumentos e atividades recorrentes no período da escravidão. Um desses ofícios bastante comum era o de caçador de escravizados fugitivos. Este é o caso do protagonista Cândido Neves, que depois de tentar sucessivamente os ofícios de tipógrafo, comerciante e entalhador, tornou-se capitão-do-mato. Na história, Cândido se apaixona por uma moça chamada Clara, com quem constrói uma família, agora composta por seu filho recém-nascido, Clara e pela tia desta, Tia Mônica. Com o passar do tempo a profissão que parecia exigir pouco esforço e ser rentável, mostrou-se instável, visto que a concorrência aumentou diante de tantos outros libertos, que sem possibilidade de conseguirem um emprego, migraram para esse ofício, como pontua o narrador:

Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. (ASSIS, 2009, p. 152 [1906])

Numa primeira leitura, o narrador aparenta mostrar simplesmente um tipo da época da escravidão. Porém, por meio de uma leitura enviesada do conto, é possível notar como o narrador e, em última instância Machado de Assis, problematiza ficcionalmente um cenário comum na sociedade do século XIX. Ao retratar Cândido Neves como caçador de escravizados fugidos e integrante de uma terceira classe social “nem proprietário nem proletário” (SCHWARZ, 1982), composta por homens livres e pobres, Machado expõe como a liberdade aos escravizados sem uma reintegração dos mesmos continuou perpetuando a lógica escravista. Cândido Neves vive de favor, não tem dinheiro para alimentar a família é por isso que Tia Mônica propõe que entregue o filho à roda de enjeitados, para que a criança seja acolhida e não passe necessidade. Depois de muita relutância, Cândido Neves, com o filho no braço, a fim de entregá-lo à roda, reconhece, na rua, uma escravizada fugida chamada Arminda, que teria sua captura recompensada em 100 mil réis. Cândido não hesita em capturá-la e a leva para o seu dono, quando Arminda, grávida, aborta o filho diante dos dois. Após receber a recompensa, o personagem retorna para casa “beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava o aborto. – Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração” (ASSIS, 2009, p. 158 [1906]).

Arminda foge para garantir a sobrevivência do seu filho e Cândido Neves a captura no intuito de sustentar a sua família. Assim, como analisa Lopes (2007), se lermos o texto superficialmente, sob o ponto de vista narrativo que parece relativizar a situação e justificar tais atrocidades, poderíamos achar que a alegria de uns é a desgraça de outros, já que tudo se resumiria a uma questão de sobrevivência. Porém, por trás desse enredo, nas entrelinhas, foi possível perceber uma crítica à sociedade que está pautada nas crueldades cometidas em nome da manutenção do poder e da ineficácia da abolição da escravatura, que continuou perpetuando as mesmas condições precárias de vida submetida à população negra.

Também é possível notar a naturalização da escolha entre as vidas que estão em jogo na narrativa: o filho de Cândido e o de Arminda. O leitor é apresentado à situação precária da família de Cândido Neves, “em família, Candinho” (ASSIS, 2009, p. 148 [1906]), que, segundo o narrador, leva vida “difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde” (ASSIS, 2009, p. 152 [1902]). Assim, somos levados a nos sensibilizar e solidarizar com a condição do personagem, sem, no entanto, refletir sobre o mesmo drama vivido por Arminda que também teme pela sobrevivência de seu filho. A solidarização, então, de um em detrimento do outro destoa da simples ideia de sobrevivência. Em uma leitura mais atenta, é possível suscitar o questionamento: por que o drama de Cândido Neves desperta a simpatia do leitor, enquanto o drama de Arminda é naturalizado e esquecido? A sobrevivência de seu filho não importa pelo fato de ela ser escravizada?

O terceiro conto selecionado é “Mariana” (1871), publicado no Jornal das Famílias num momento em que questões como a instituição da Lei do Ventre Livre eram discutidas no parlamento. Assim como no conto “O caso da Vara” (1899) a história parece centrar-se em Damião, em “Mariana” o leitor depara-se com um conto que parece tratar de um reencontro entre velhos amigos que não se veem há muito tempo e que trocam confidências amenas, ao passo que ao mesmo tempo somos levados a notar como o que parecia um relato banal sobre uma história de amor (considerada, jocosamente, impossível por Coutinho, o narrador), guarda, dentre tantos questionamentos, um profundo debate sobre os problemas raciais no Brasil.

Mariana, a escravizada “criada como filha da casa” (ASSIS, 2009, p. 112 [1871]), apaixona-se por seu senhor. Embora o relato seja narrado do ponto de vista de Coutinho, o protagonismo é assumido por Mariana e seu drama, pois ao contar aos amigos o ocorrido, Coutinho, sempre em tom ameno e jocoso, deixa claro que a paixão da escrava é uma impostura, um absurdo:

Que esperanças concebera ela com as minhas palavras, não sei; cuido que elas só tiveram efeito por lhe acharem o espírito abatido. Acaso contaria ela que eu desistisse do casamento projetado e do amor que tinha à prima, para satisfazer os seus amores impossíveis? (ASSIS, 2009, p. 118 [1871])

A impossibilidade desse amor é fruto da rigidez dos limites sociais entre ambos, entre o senhor e a escravizada. Pois, ainda que Mariana fosse criada, segundo o narrador, com os mesmos afagos e educação que suas irmãs, Coutinho a enxerga sempre como criada, vítima da “fatalidade da sua condição social” (ASSIS, 2009, p. 116 [1871]). Dessa forma, o narrador expõe a mentalidade da época, que considera que a condição de Mariana é da ordem da natureza, e não um fato social, uma compreensão da história que consolida a crença da hierarquização das raças.

Já no final do conto, durante a festa de natal, Mariana foge da casa. Coutinho a procura pela cidade sem sucesso. Até que acaba dirigindo-se a um hotel para jantar e, inesperadamente, a encontra. Em um quarto, os dois começam a conversar e Coutinho insiste na volta de Mariana para casa: “Depois de gastar cerca de uma hora, sem nada obter, declarei-lhe positivamente que ia recorrer aos meios violentos, e que já lhe não era possível resistir” (ASSIS, 2009, p. 125 [1871]). Após várias tentativas sem sucesso, por um instante, Coutinho sai do quarto e quando retorna, Mariana pede que se lembre dela e morre ao ingerir um veneno.

A morte de Mariana conclui a confissão de Coutinho e o foco volta à reunião com os amigos: 

Coutinho concluiu assim a sua narração, que foi ouvida com tristeza por todos nós. Mas daí a pouco saíamos pela rua do Ouvidor, examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa tinha-nos restituído a mocidade. (ASSIS, 2009, p. 127 [1871])

A utilização da ironia, do tratamento da situação como apenas uma simples “conversa” é notável e, por isso, cria uma tensão entre o início e final do conto, ou seja, entre a leveza da reunião de Coutinho com os amigos e a história de Mariana e seu fim trágico, entre a morte da personagem e o divertimento dos ouvintes com outras moças assim que o relato de Coutinho termina. Esse contraste entra em compasso com o que Villaça (2006), ao analisar “O caso da Vara”, intitula de “flutuação farsesca de valores” (VILLAÇA, 2006, p. 25), já que a morte de Mariana pode ser considerada uma problematização do mito da democracia racial, pois ao mesmo tempo em que Coutinho afirma que Mariana era muito bem tratada na casa, reitera sua condição de sujeito escravizado e a trata como um simples “incidente” na vida do senhor.

O último conto a ser analisado é “O espelho” (1882), incluído no volume Papéis avulsos. Assim como nos contos anteriores, a narrativa parece não tratar da condição do negro na sociedade escravocrata, pois inicialmente o núcleo narrativo é um homem livre, Jacobina, que se encontra com quatro amigos em uma casa no bairro de Santa Teresa, conversando sobre “várias questões de alta transcendência” (ASSIS, 2009, p. 129 [1882]).

Aos 25 anos, Jacobina foi nomeado Alferes da Guarda Nacional, o que lhe garantiu uma mudança significativa de status transformando-o no orgulho da família. Agora, ele era o “senhor alferes” (ASSIS, 2009, p. 132 [1882]). Um dia, sua tia Marcolina o chama para ir até o sítio onde ela morava. Por conta do novo status de seu sobrinho, ela o presenteia com um grande espelho, proveniente da Família Real Portuguesa, que passa a ser a melhor mobília da casa, e que logo vai parar no quarto destinado a Jacobina. O personagem passou mais de um mês sendo bajulado pela tia e por seus escravos e “no fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes” (ASSIS, 2009, p. 133 [1882]). Sua percepção de si mesmo se transformou naquilo que os outros enxergavam nele, ou seja, o orgulho da família, o alferes, assim, Jacobina não mais existia.

Até que a tia precisou viajar, pois “uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte” (ASSIS, 2009, p. 133 [1882]). Jacobina fica em casa com os escravos até que, na manhã seguinte, os escravos fogem levando até os cães, deixando o alferes completamente sozinho no sítio. Sobre tal situação o narrador diz:

Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah! Pérfidos! Mal podia eu esperar a intenção secreta dos malvados. (ASSIS, 2009, p. 134 [1882])

Essa transcrição mostra como os criados da casa, aproveitando a ausência de Marcolina e já tramando a fuga, bajularam Jacobina, a fim de que ele de nada desconfiasse. No decorrer do conto, o personagem, sem os escravizados, não sabe o que fazer, passa a comer mal, alimentando-se de raízes, não consegue mais se olhar no espelho e cai em total apatia, devido à “situação moral” em que se encontrava. Gradativamente, os escravizados que eram os personagens que até então apareciam em segundo plano, aos poucos se tornam catalisadores de toda narrativa e promovem uma problematização por detrás da cena. Foi possível enxergar como o vazio deixado pela ausência dos criados interfere no modo de viver e de ser do personagem, que em um primeiro momento, aparentava ser o núcleo do enredo.

Como dito anteriormente, numa leitura superficial, pode-se achar que o narrador não traz questões relativas à condição do negro na sociedade escravocrata. Mas, em uma leitura atenta aos não-ditos, percebe-se que a fuga dos criados mostra que o trabalho –forçado- dos escravizados é decisivo para que Jacobina se afirme como o “senhor alferes”. Assim, há um questionamento da existência das relações de poder da sociedade do século XIX, onde os senhores, sem os escravizados e a possibilidade de exercerem sua influência, não seriam nada. No jogo das relações de poder, a supremacia de um depende da presença do outro e é, dessa forma, que os fugitivos se fazem presentes, ainda que ausentes, no conto.

Consoante o movimento de Eduardo de Assis (2009), é importante notar outro elemento bastante significativo no conto, que é a voz narrativa: o narrador fala em primeira pessoa e, por isso, cria-se um tom confessional. Ao passo que é a voz de um sujeito branco. Os recursos utilizados pelo narrador, segundo o teórico, não só criam uma carga de verossimilhança e credibilidade, já que eram os sujeitos brancos que possuíam escravos, mas também, encobrem o verdadeiro lugar autoral de onde fala o texto, que é o de Machado de Assis enquanto escritor afrodescendente e crítico da sociedade escravocrata.

Tais recursos estilísticos na obra de Machado de Assis, como a ironia e a mudança do foco narrativo, que vimos nas análises anteriores, misturados a pequenas situações aparentemente sem relevância, se manifestam como importantes elementos textuais que disfarçam as críticas dirigidas à instituição escravista. Segundo Ianni (1998), em seu texto “Literatura e Consciência”, parece que o autor não lida com tais questões, mas é aí que consiste toda a sua forma de observar, criticar e parodiar o mundo social. Por isso, é necessária uma maior sagacidade por parte do leitor, que precisa estar sempre atento a não se ater às aparências e às primeiras impressões de leitura.

Essas discussões e análises mostraram como a produção machadiana destoa da crítica que insiste em afirmar o absenteísmo do autor em relação às questões de seu tempo, como a carta de Hemetério dos Santos (1908). E como sua obra, se não for lida com atenção às ironias e aos jogos literários que são capazes de criar ambiguidades e relativizar o sentido do texto, pode caracterizar Machado de Assis como um escritor alienado e apartado das situações que o cercavam.

Devido ao tratamento de tais temas na produção machadiana, Octavio Ianni (1998), defende a ideia de que Machado merece ser também considerado cânone da literatura negra, pois o escritor parodia a visão de mundo burguesa, desmascara a sociedade e seus interesses, através de uma visão crítica, ironizando setores dominantes da sociedade, como, por exemplo, no conto “O espelho” (1882), em que a voz narrativa é de um sujeito branco, membro de hierarquia militar. Assim, pensar Machado de Assis como um precursor de uma literatura que tem temas específicos não prejudicaria sua posição na literatura brasileira, mas, ao contrário, ajuda a ampliar o leque de interpretação de suas produções. É esta também a posição adotada nesta investigação.

Referências

ASSIS DUARTE, Eduardo. Estratégias de caramujo. In: Machado de Assis afro-descendente. Pallas/Crisálidas, p. 239-278, 2009.

COUTINHO, Irene; Eleutério, Sílvia. Correspondência de Machado de Assis: Tomo V. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, p. 209, 2015.

DANTAS, Carolina Vianna. O Brasil café com leite. Debates intelectuais sobre mestiçagem e preconceito de cor na primeira república. Rio de Janeiro, v. 13, p. 56-79, 2009. 

FANTINI, Marli (2008). Machado de Assis: entre o preconceito, a abolição e a canonização. In: Matraga. Rio de Janeiro, v. 15, p. 55-73, 2008.

FREUD, S. (1915a/2004). O Recalque. In: S. Freud, Obras Psicológicas de Sigmund Freud, Vol. 1: Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, p. 175-193. (Trabalho original publicado em 1915).

IANNI, O. (1988). Literatura e consciência. In: Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros. São Paulo, USP/CNPq, n 28, p. 91-99, 1988.

LOPES, Elisângela Aparecida. “Pai contra Mãe”: memórias de um narrador da escravidão. In: “Homem do seu tempo e do seu país”: senhores, escravos e libertos nos escritos de Machado de Assis. Ufmg, dissertação, 2007.

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. “Mariana”. Jornal das Famílias. Rio de Janeiro, jan. 1871. In: ASSIS DUARTE, Eduardo (Org). MACHADO DE ASSIS AFRO-DESCENDENTE – ESCRITOS DE CARAMUJO [ANTOLOGIA]. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Pallas/Crisálidas, 2009. v. 2., p. 109- 127.

 _______________________________. “O caso da vara”. Páginas Recolhidas (1899). In: ASSIS DUARTE, Eduardo (Org.). MACHADO DE ASSIS AFRO-DESCENDENTE – ESCRITOS DE CARAMUJO [ANTOLOGIA]. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Pallas/Crisálidas, 2009. v. 2., p. 139- 146.

_______________________________. “O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana”. Papéis avulsos (1882) In: ASSIS DUARTE, Eduardo (Org). MACHADO DE ASSIS AFRO-DESCENDENTE – ESCRITOS DE CARAMUJO [ANTOLOGIA]. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Pallas/Crisálidas, 2009. v. 2., p. 129- 138.

_______________________________. “Pai contra mãe”. Relíquias de Casa Velha (1906). In: ASSIS  DUARTE, Eduardo (Org). MACHADO DE ASSIS AFRO-DESCENDENTE – ESCRITOS DE CARAMUJO [ANTOLOGIA]. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Pallas/Crisálidas, 2009. v. 2., p. 147- 158.

PROENÇA FILHO, Domício. O negro e a literatura brasileira In: Boletim bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo, n. 1/4, 1988.

STUART, Hall. Cultura e Representação. Tradução: William Oliveira e Daniel Miranda. Rio de Janeiro: PUC -Rio: Apicuri, 2016.

ROMERO, Sílvio. Machado de Assis. 2.ed. Rio de Janeiro: [s/i], 1936.

SANTOS, Hemetério dos. Machado de Assis: carta ao Sr. Fábio Luz. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 29 nov 1908.

VILLAÇA, A. Querer, poder, precisar: “O caso da vara”. In: Teresa, n. 6-7, p. 17-30, 2005.

 

[1] Ver texto integral da carta no anexo.

[2] Essa discussão já foi apresentada, resumidamente, no post “Falando sobre o silêncio” (2019), publicado no blog Leituras Contemporâneas – Narrativas do Século XXI. Disponível em: < https://leiturascontemporaneas.org/2019/09/19/falando-sobre-o-silencio/>.

Anexo

Machado de Assis

SANTOS, Hemetério dos. Machado de Assis: carta ao Sr. Fábio Luz. Gazeta

de Notícias. Rio de Janeiro, 29 nov 1908.

Hemetério José dos Santos (1858-1939), professor e escritor negro, que acusaria Machado de omissão na causa abolicionista e de desprezo à madrasta Maria Inês […] Seu escrito, logo reproduzido em outras publicações, deu origem a levianos e tendenciosos comentários biográficos, ainda verificáveis mais de cem anos após a morte do mestre. Irene Moutinho, nota 10, p. 209, in ASSIS, Machado. Correspondência de Machado de Assis: Tomo V, 1905-1908/coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. R.J: Academia Brasileira de Letras, 2015.

Carta ao Sr. Fabio Luz

Amigo Fabio Luz

Quando estive, nos primeiros dias de Outubro, conversando no Café-logeo sobre o valor de Machado de Assis, notei que estavam na roda dous rubros fanaticos, e logo vi de boa gentileza não fundamentar o juizo que, sinceramente, fiz e faço, do poeta, do romancista e do escriptor, mestre official dos artistas, dos artezãos da palavra, fóra e dentro da Academia Brasileira.

Guardei silencio de honesto commedimento, como de costume, quando vejo paradoxaes as minhas asserções; você insistiu em saber a causa intima do meu proceder, e eu dei de hombros, num mutismo desconsolado e triste. E todos me tiveram por um sujeito de idêas irreverentes e exoticas.

A’ noite, por occasião de rezar o decorrido durante o dia, vi a necessidade de uma explicação, não já perante os nossos companheiros de ágape, no Café-logeo, mas diante de todos os que vivem de letras, por amal-as carinhosamente, ou por prostituil-as, ordenhando-as com brutalidade e impericia.

Adiei a explicação, que hoje venho dar.

Tive sempre pela obra do Machado de Assis o sentimento que desperta o trabalho chinez de acurada paciencia em papelão, lata ou chumbo derretido: ephemero, porque a ausencia de fundo que se lhe nota não tem força de eternisar a fórma; passageiro, porque essa mesma fórma não se estima, e não se valorisa pela excellencia da construcção e pela variedade de materiaes.

Machado de Assis não foi um observador fiel do nosso modo de ser, um psychologo, mesmo no corrente sentido desta palavra, durante a sua vida muito alongada, e sempre bafejada pelo carinho dos seus e pelo aconchego que sempre teve de estranhos, o que o elevou ás posições culminantes do nosso mundo burocratico e literario.

Nascido em junho de 1839, sendo pois mais moço de que Gonçalves Dias, apenas de 16 annos, com identica força que o preconceito dá para lutar; em um << meio >>  mais culto e tolerante, e tendo sobrevivido ao poeta brasileiro 44 annos, a bagagem que nos deixa é relativamente apoucada e pequena.

O problema do <<  negro >> que assumiu em nossa vida de nação talvez um fulgor de bondade unido, sem igual, nem nos tempos antigos, pelos captiveiros de guerra, nem nos tempos modernos, pela escravidão colonial, não mereceu do romancista e do poeta senão pallidas e aguareladas pinturas tão timidas que claramente revelam que do artista primeiro partiam as idéias preconcebidas contra a sua côr e procedencia.

Joaquim Manoel de Macedo, Bernardo Guimarães, Gonçalves Dias, logo nos verdes annos, nas suas << Meditações >>, Manoel de Almeida, Agrario de Menezes, Trajano Galvão, Castro Alves, de tuba tronisonante, e tantos e tantos outros, não deixaram de molhar a penna nesse tinteiro de dôr e de vergonha nossa, sem fallar daquelles que, como o Visconde do Rio Branco, Patrocinio. Arthur e Aluizio Azevedo, Joaquim Nabuco, Sylvio Romero, Ruy Barbosa e varios em legião, juntaram a mente ás musas dada, ao braço ás armas feito.

As nossas guerras e as nossas questões externas resolvidas pela lutas pacificas e remansadas do talento e da diplomacia, não existem, para quem as procurar, nos livros de Machado, ou se existem, são simples episodios tenues e fugitivos de uma sociedade que morreu nascendo, ás mãos das Virgilias e Capitu’s, e outras hetairas tolhidas de sua desenvoltura pelos casamentos interesseiros e sordidos.

E, no emtanto, bom foi de virtudes o lar em que Machado passou os primeiros annos da sua juventude.

Seu pae, o pintor e dourador Francisco José de Assis, era um artista intelligente e de alguma leitura.

Vendo que a carreira das letras podia retardar a collocação do filho em posto que lhe assegurasse a subsistencia antes de sua morte, era com viva dôr contrario á inclinação pronunciada de Joaquim Maria.

Sua mulher, D. Maria Ignez de Assis, não concordava; e, acompanhando a applicação apaixonada e teimosa do enteado, ensinava-lhe todas as noites, e ás escondidas, o pouco de suas letras, quando o marido ia discretear com o vigario de S. Christovão, onde moravam, ou ia com os companheiros jogar as cartas em família e á puridade, conforme o costume daquelles tempos.

Bem depressa a bôa e inquieta madrasta, antes mãe cuidosa e caroavel, já nada mais tinha a transmittir ao menino; foi então que pediu ao forneiro de Madame Gallot, com padaria á rua de S. Luiz Gonzaga, que lhe ensinasse o francez, que depressa aprendeu a lêr, traduzir e falar regularmente, porque em dedicação o mestre corria parelhas com o discipulo.

Eu conheci essa bôa mulata velha, comendo de estranhos, com amor, e conforto maximo, chorando, porém, pelo abandono nojoso em que a lançara o enteado de outrora, nunca mais a procurando desde a sua mudança de S. Christovão, logarejo de operarios, para o opulento nicho de gloria nas Larangeiras.

Quatorze annos de paz a retiveram na casa de Eduardo Marcellino da Paixão, onde morreu, abençoada de todos, pela grandeza do seu coração, e por ter sido o anjo tuttelar de Machado de Assis.

Pelo francez, se lhe abriram todas as portas literarias, e na casa de Paula Brito foi então recebido no convivio dos grandes homens do tempo, – politicos, poetas, romancistas e jornalistas.

Viu tudo, e sentiu todo o passado nas palestras diarias da loja do << Canto >>; foi collaborador da << Marmota >> e de outras Revistas e producções que alli se editaram.

A sua poesia foi tão incolor, como os seus trabalhos ulteriores: desde o titulo chinez, até ao fundo, que sinceramente não lhe traduziu esse estado d’alma punjente e dilacerado, como se nos mostra, no juizo de todos os seus criticos e companheiros de arte.

Póde-se dizer que, exceptuado o admirado soneto á << Carolina >>, posto á frente das << Reliquias da Casa Velha >>:

<< Querida, ao pé do leito derradeiro,
Em que descanças dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquelle affecto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existencia appetecida
E num recanto poz um mundo inteiro.

Trago-te flores, — restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos mal feridos
Pensamentos da vida formulados,
São pensamentos idos e vividos. >>

todas as suas producções foram um bello exercicio para formar o estimado prosador, de maneiras unctuosas e de uma <<  preciosidade  >> colleante e serpentina, que foi, em tão grande e tão comprido desenrolar de annos socegados e tranquillos, como não ha egual, nem nos tempos antigos, nem nos modernos, quer em Portugal, quer no Brasil.

Para no verso produzir poemas que os de sua raça – portuguezes, negros e mestiços- haviam traçado com o coração e o braço, teve exemplos desde o raiar da nossa vida para a arte da palavra, até aos nossos dias.

Em 26 de Março de 1535, um belga, Nicolau Clenardo, escrevendo ao seu amigo Latomus, notou admirado que em Portugal, e sobretudo em Lisboa e Evora, havia muitos negros que em numero excediam á população branca.

<< Os escravos pullulam por todos os lados. Todo o serviço é feito por negros e mouros captivos. Ha em Lisboa uma tal quantidade dessa fazenda, que se acreditaria que excede em numero os portuguezes livres… Mas apenas puz pé em Evora, julguei-me transportado a uma cidade do inferno: por toda a parte via negros, raça que me inspira uma tal aversão que isso bastaria para me fazer abalar. >>

Gil Vicente não desprezou o facto, e o poz de mil modos nas suas farças. E como o preto era o roubado, era sempre o expoliado, até na producção, porque os filhos logo na segunda geração lhe sahiam louros, isto é, já lhe não pertenciam, Gil Vicente tinha em cada negro um comparsa ladrão!

Ainda até mesmo nos romances populares, a musa do povo não se esquivou, não se vilipendiou de tratar do negro:

<< Deu sete voltas a cerca,
Sem nada poder encontrar;
Viu là entrar uma “preta”,
Que se estava a pentear. >>

Oliveira Martins, na Historia de Portugal, não deixou de mencionar que, no reinado de D. Manoel, crescido e espantoso era o numero de negros no reino, conforme a estatistica do tempo; e as Ordenações tambem o registram pela maneira cuidosa de regular as reuniões dessa gente, que se incorporava á sociedade pelo serviço que lhe prestava.

E porque Machado não quiz, dando lenitivo á dôr que o acabrunhava, levantar com os seus talentos a pedra que injustamente esmagou os seus irmãos de côr e de soffrer?

Porque não teve, seguindo o exemplo do padre Antonio Vieira, o desassombro de dizer ao Sr. Graça Aranha, o pai infeliz do aborto << Chanaan >>, e de provar com os factos que a obra do portuguez e do negro, na America, é sem par no mundo, pela bondade e pela candura que ambos derramaram por toda a parte, nessa construcção de amor e de tolerancia que se chama o Brasil?

A sociedade brasileira é sem modelo na historia pelos exemplos de altas virtudes constantes, multiplas e variadas desses tres typos que se irmanaram pelo sentimento, tornando-se um só espirito para a cultura do bem, desde os tempos de Vieira e de Gregorio.

Por que o inglez que tem largos dominios na America do Sul não faz um Brasil?

Por que se não impoz o hollandez á obra final da formação da nossa nacionalidade?

Por que não faz surgir das suas Guyanas, opulentas de vida natural, uma nova Hollanda que seja a supplantadora do Brasil – Norte?

Por que não faz a França uma Republica que seja a incarnação de todas as virtudes que prega, de toda a sua humana sciencia, e que traduza o idéal dos seus filhos nas uberrimas e auriferas terras do Orenoco?

Onde está a obra de aggremiação humana, bondosamente feita pela nebulosa Allemanha?…

Só imaginariamente na << Chanaan >>, que ficará como um thema certo de collegial experto e applicado.

A arte de Machado de Assis esgota as energias, não tem ella nem uma relação com o sentimento nacional que, apezar dos prismas pigmentaes, já se impõe naturalmente ao observador, porque primeiro não o excita e não o satisfaz.

E’ uma arte doentia, de uma perversidade fria, não sentida directamente do meio, mas copiadas de leituras pacientemente ruminadas, de romances francezes e inglezes, de almanacks que representam, para a vida dos amores e das conquistas, o mesmo papel que faz e fez, para a economia domestica, a vida do Bom Homem Ricardo de Benjamin Franklin.

Por ser mulato, Machado não tinha razão plausivel para desfigurar a nossa moral, simples e tradicional.

Um Calabar litterato, contorcido e fugitivo nos seus meandros enigmaticos, não é menos criminoso do que um Calabar que deserta dos seus pela porta da traição e do suborno.

O elogio exaggerado, que vai além do valor real, é um philtro tão subtil como o mel de abelha: empolga e envenena.

Mulatos outros o foram; e antes de os haver no Brasil, houve muitos algures e em Portugal; e por emulo de Gil Vicente se notabilisou o mulato Affonso Alvares que primeiro teve, na nossa raça, a verdadeira intuição artistica, vivendo e vibrando com os typos verdadeiros, e apanhados da massa popular, e não com os typos imaginarios, e não encontrados pelo ledor, ao descançar nos finaes dos capitulos e dos episodios de qualquer composição de folego.

O segredo da arte de Machado de Assis é primario e rudimentar: está num vocabulario minguado e pobre, repetido tão a miude, indo e tornando, passando incessantemente sobre uma mesma tonica, que o leitor acaba por adormecer.

Quem ler duas ou tres paginas de << D. Casmurro >>, << Braz Cubas >> e << Memorial de Ayres >>, tem lido toda sua obra.

Esse odio disfarçado e felino que Machado teve para com todos, parentes e intimos, amigos e patricios, revelando-o, ora pelo silencio, que esmaga e annulla, ora pela creação de hetairas em época em que não as tinhamos em familia, porque a escravidão era o trabalho que conforta e a luxuria que allivia, teve-o elle sinceramente, ou foi uma simples e innocente ficção nevrotica?

Nas sociedades em desequilibrio, e em que a moral, de facto, ainda não igualou os typos varios que a compõem, já, porém, igualados pelas leis e pelos conceitos, as ligações de amor ou casamento obedecem a uma corrente uniforme, como as que, por impulso, se estabelecem maravilhosas na grande massa d’agua dos oceanos.

Machado assim não procedeu. Não cobriu e não amparou com a reputação do seu nome uma que fosse do mesmo cyclo de sua dôr, nem elegeu por companheira qualquer da roda aristocratica por educação, onde teve assento e carinhos singulares, e posição de mando, de director e chefe.

Para evitar encontros de Capitú’s e Virgilias, Machado teve por consorte uma portugueza que puramente lhe foi pela vida inteira um clarão de singulares virtudes domesticas.

Ainda bem que foi uma portugueza, porque se houve, consoante com a sua obra, alguma offensa, esta não chegou a ser profunda e lacerante, por ter sido dos nossos o coração que o acolheu.

Muito tem sido gabada a fórma de Machado; e, no emtanto, nada talvez haja mais acoimado de imperfeições. E’ banal- que as cousas nos ferem sómente pelo modo por que são ditas; pois o estylo está antes no valor das palavras, e nas suas relações orchestraes do que em qualquer outro artificio; não ha literatura sem lingua, como não ha estylo sem grammatica.

O nosso lexico é o mais rico de todos os dos povos civilisados. Elle se compõe de todas as palavras da baixa latinidade, accrescidas dos termos eruditos da alta litteratura latina, dos vocabulos asiaticos, porque nós fomos os primeiros a auscultar as civilisações e as religiões do Oriente pela penna observadora e assombrosa de Fernão Mendes Pinto e pela piedade e submissão de Francisco Xavier; de vocabulos germanicos e arabes que comnosco  commungaram na Peninsula; pelos dizeres regionaes da Africa que foi lavrar primeiro o solo europeu e veiu depois desbravar a luxuriosa vegetação da America; dos vocabulos dos nossos indigenas e dos novos termos creados na sua convivencia pelos padres que primeiro os chamaram á civilisação; e finalmente pelos temos e expressões scientificas creados aqui e alli que immediatamente se ageitam e se accommodam, assimilados ao nosso diccionario.

Com estes elementos, o escriptor << cria novas palavras >>, usando as mesmas do fundo da lingua, infiltrando-lhes, porém, novos aspectos nas relações que entre ellas deve estabelecer.

Machado não o consegue: o seu vocabulario tem o resumido numero do de escriptor que começa, e a sua syntaxe geralmente se insubordina ás leis surprehendidas.

Por vezes parece um artista novel que se queixa dos instrumentos, torcendo-os e conformando-os a seu talante.

  1. sabe, meu caro Fabio, que eu não aprecio exoticos que toquem flauta com o nariz, nem prodigiosos que, com os artelhos, corram o teclado do piano.

E’ comum na língua portugueza dar-se a attracção dos pronomes nos casos geraes e no emtanto Machado contra a lição de todos os escriptores até nós, faz systematicamente o contrario, conseguindo arranhar os ouvidos, pela fórma, e molestar-nos a alma, pelo ***.

Vejamos Braz Cubas, 4º Edição, mais de oito vezes visto e corrigido: – “Eu” deixei-“me” estar a contemplal-a – “Eu” deixo-“me” estar entre o poeta e o sabio – e “eu” via-“a” agora não qual era… – …outros minguaram, “outros” perderam-“se” no ambiente. E “eu” segui-“a”, tão  *** como o outro. “Eu” segurei-“lhe” *** mãos. E “eu” sentia-“me” feliz com vel-a “assim”. “Eu” agradeci-“lh’o” com os olhos humidos. “Elle” recebeu-“m‘a” com os olhos seintillantes de cobiça. “Ella” percebeu-“o” nos meus olhos.

E “eu” disse-lh”o” com ternura, com sinceridade.

Assim vai sempre contra todas as lições de Camões, Vieira, Bernardes, que lhe são conhecidas como a miude o repete, até produzir phrases como esta: – “Pois dou-*** eu, egua piedosa”… -“Elle, Cotrim”, acompanhava-“me” de longe. Assim em todas as paginas. Só algumas vezes disse com acerto: “Tudo” isso “me” levou a fazer uma cousa ***. “Tudo se” deve dizer. “Quem lhe” disse isso! “Ninguem me” visitava.  

Com qualquer pronome, todo o classico usa da anteposição pronominal, salvo nas fórmas de imperativo. Vejamos Camões, Cartas e Autos: “Ella nos” trata sómente como alheios de si… “Ambos lhe” *** das mãos virgens.

“Eu vol-o” direi… Este *** “se” perdeu alli.

“Eu o” tomei á *** de sua boa fama. E “eu” por gracioso “o” tomei.

Franscisco de Moraes…  e “isto me” fazia triste.

“Tudo se” faça hoje á tua vontade e tudo seja festa. – “Elle mesmo me” convidava pouco ha.

– ***-nos a Deus, e “elle nos” encha do seu espirito.

Frei Luiz de Souza: E “elle me” vigia a mim… “este me” avisa que não deixe de accudir.

Rodriguez Lobo: “Ambos se”  temiam de outra… e “cada um dos dois me” fez inveja. “Já eu me” quizera metter em meios.

Fallo com o *** e “cada um se” entende, conforme a roupa com que se cobre. “Eu vos” desengano.

Padre Antonio Vieira: E “eu” também “me” admiro dos que fazem o que elle fez. “Tudo isto se” fazia ao som de trombetas.

Assim todos os classicos não só no verso como na prosa, numa razão de noventa por cento.

E para que se não diga que os exemplos são velhos, e que são de “portuguezes”, darei exemplos de Ruy Barbosa em discursos que são peças não cuidadas: Por mais aspera que seja “eu a” declaro – “Eu a” reconheço e saudo – “Nós nos” alliamos contra vós – “Todos a” entendiam porque ella era a claresa e a lisura – “Ninguém o” compreende.

Nas phrases de conjuncção, todas as paginas estão cheias de offensas á grammatica e ao stylo, porque as posposições de pronome não formam verso regulares, o que justificia a infracção idiomatica.

“Porque” os contornos perdiam-“se” – “Porque” meu pae tinha-“me” em grande admiração. – “Que ella” amara-“me” a *** devia de sentir alguma cousa. – “Porque eu” tinha-“lhe” voltado as costas – “Porque” em tal caso poupa-“se” o vexame. – Lembra-me sim, “que em certa ***”, ***-“se” a flor, ou o beijo se assim lhe quizerem chamar, um beijo que ella me deu.

Destes *** “Dom Casmurro” e “Memorial de Ayres” estão cheios, bem como de periodos rimados e do emprego abusivo e fastidioso dos pronomes pessoaes.

Outras vezes cacophonias e francezismos que ferem de frente o modo consagrado:

“O Xavier com todos os seus ***, presidia ao banquete noturno, em que eu “pouco ou nada” comi, porque so tenho olhos para a dona da casa.”

No “Memorial de Ayres”: – Quando fallavam “pouco ou nada”, o silencio dizia mais que as palavras. – Na escola não briguei “com ninguem”, ouvia ao mestre, ouvia aos companheiros.

No “Braz Cubas”: – “Ouço daqui uma objecção do leitor: – Como póde ser assim, diz elle, se “nunca jamais ninguem não viu estarem os ***” a contemplar o seu nariz proprio nariz.”

Vc me pode dispensar o commentario, ou melhor os commentarios, e somente dizer commigo: – “Não nos deixeis, senhor, cahir em tentação…”

Ha plebeismo, no dizer, em quasi todas as paginas do “Braz Cubas” e “Memorial de Ayres”, como estes: “Pouco dissemos : noticias do barão que está “melhor” e do Aguiar *** bom e despe***”.

E’ commum aos *** ***zer de “melhor” *** “doente”. Não seria  ** **zer: noticias do barão *** **ta bom, ou que *** ***

E… “Outra cousa *** *** esquecendo tambem, *** “principal”, porque o off*** *** póde acabar *** *** de atuar  não *** ***

“Ma*** principal”

E tambem: “Qua*** ***” concordar com***

Não seria melhor *** “presente” o verbo *** “quasi?

A cada momento *** expressões como estas *** “meia” surda: “O *** doçura…”. “Os *** tosses…”

Estes tres ultimos *** appareceram comple*** *** pois de Camões que *** “Se a tanto me ajudar *** *** arte…”. “Que ** **” negara… Por *** “teu pai e ***”

O abuso do pronome, á franceza, e á ingleza, e as repetições de um mesmo termo duas e mais vezes na mesma pagina, e outros descuidos serios, eu não os trasladarei para aqui, pois seria copiar qualquer dos livros de Machado.

  1. sabe que não fui eu o inventor da grammatica que, por si só, é bastante, segundo Erasmo, para a tortura lançar na vida inteira de um homem, não deixando, entretanto de ser o desenho linear do litterato.

Não fui eu tão pouco quem primeiro viu que uma lingua sem disciplina denuncia, em geral, um povo sem cultura, e revela, na arte, um escriptor sem visão propria, falando sempre sob a influencia de emoções de outrem, já velhas, já sediças já banaes.

O << Braz Cubas>>  e << D. Casmurro >>, tanta vezes lidos e relidos, pelo autor, seriam um bello tratado das miserias humanas; um << a b c >> doirado para os mancebos libertinos, se não tivessem tantas e tão variadas incorrecções de fórma e de estylo.

Em summa, meu Fabio, como Vc. vê, o Machado não é um classico, porque não se inspirou directamente nos antigos; não é um romantico á provençalesca, porque lhe falta a bondade que é o amor para com os seus e um culto para as cousas do Além; nem ao modo  da escola mineira dos Inconfidentes, porque não nos fez vêr, por um prima todo seu, completamente novo, os successos que presenciou na sua longa vida de calma e socego sempre remunerados; nem na bitola dos de 1830, na phase de Porto Alegre, ou na de Gonçalves Dias, porque não soube aproveitar o grande arsenal de materias pacientemente accumulados por mais de uma geração, que honrou a lingua, eternisando as cousas boas do seu tempo e da sua patria. 

Adeus; Machado de Assis ficará na historia litteraria do nosso paiz ao lado de Magalhães que, apezar de branco, foi tambem roido pelas miserias da vida, pelos preconceitos vesgos e zarolhos que tambem roeram o creador de << Quincas Borba. >>