Laura

Filipe Chernicharo

Ela sentou-se no sofá. Encarou o nada; o imenso e insondável oceano de nada ao seu redor, mal contido pelo espaço diminuto da sala de estar; as ondas plácidas batiam contra os móveis cinzentos e sem graça, moldavam-se às baías que eram os cantos das paredes; inundavam, enfim, todo o recinto. Dentro da cabeça de Laura, a sinfonia descontrolada e frenética dos pensamentos em constante choque, como algum caos primordial: tenho de escrever pra mamãe ela não vai saber qual chave estranho a vida é diferente quando meu deus tão sozinha como deve estar o gabriel vi ele ontem no mercado será que morrer doi aquela mulher que limpava a casa da olga caiu da janela mas também a olga nunca ligou eu preciso ler mais tenho lido tão pouco e os filmes que preciso ver meu deus como não sou boa o suficiente eu e o cachorro dei comida pra ele já ou … pro jantar vou ter que qual é o segredo da vida virginia woolf escritora feminista inglesa que sede preciso pagar a conta do telefone e aquele primeiro garoto que eu deixei tocar no meu peito qual o nome dele mesmo era luís o que estava aqui ontem não sei pensando em fellini ultimamente sexo já não me interessa mais só às vezes o shakespeare e o grande calibã o banco já tá fechado tinha que passar no hortifruti

BLIMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM

Ela foi arrancada com violência do rodamoinho dentro da cabeça e lançada de volta ao tédio externo; exceto a campainha, que alardeava. 

Ora quem deve ser à essa hora não quero atender se eu tiver que falar com alguém vou gritar mas tenho que ir já vai

Ela correu até a porta; espiou pelo olho mágico, como um voyeur: era Marta, a amiga da faculdade. Abriu a porta, e a outra entrou de um impulso só; era assim, a Marta. Entrava como se fosse dela a casa; não pedia desculpas a ninguém, não. 

     – Tá sozinha? – disparou, quando Laura fechou a porta atrás dela. – Sua mãe não tá em casa?

     – Não – fez a outra, amuada. Sentou no sofá, com uma almofada no colo. – Que quer?

Marta esponjou-se na poltrona em frente à janela; a luz dourada de fim de tarde era filtrada por seus cabelos bagunçados; a textura dava apetite à Laura.

    – Mas que isso? – disparou – Uma amiga não pode visitar mais? É “que quer?”

Laura passou a mão pelo cabelo, distraída. Nem sabia porque tinha dito aquilo. Que importava?

   – Não tem ido à faculdade. Que houve?

   – Cansada. – e encostou a cabeça no braço do sofá, como se fosse o colo de alguém

   – Que cansada nada. Vai repetir semestre se continuar assim. Por que você é tão assim, Laura? Por que você é tão assim?

  – Assim como? – Laura interrogou, genuinamente curiosa, como se a resposta da outra fosse finalmente solucionar o mistério. Como que eu sou?

   – Não sei … parece que vive no mundo da lua … meio maluca – um sorriso hesitante brincava nos lábios finos da Marta; sua cabeça estava voltada para a janela, observando o sol moribundo lá fora, a placidez de fim de tarde.

O peito de Laura borbulhou que nem caldeirão; não sabia se era raiva, se era vontade de chorar, os dois ou o quê. Encolheu-se no sofá. Puxou as mangas da camisa. 

  – Vou pra faculdade na segunda. Nem perdi tanta coisa assim.

  – Não é só a faculdade. Me preocupo com você, sabe. A gente se conhece desde o ensino fundamental, mas eu não sinto como se soubesse nada sobre você além do nome, às vezes – a cabeça da Marta ainda voltada para a janela, distraída; honesta.

   – Veio aqui só pra dizer isso, foi? – Laura, igualmente distraída, brincava com uma das mechas de seus espessos cabelos. 

   – Sabia que vi sua mãe ontem no supermercado? Pensei “ela tá velha”; aí pensei: um dia eu vou estar velha assim também. Não sei como me sinto quando penso nisso … você pensa em quando for velha?

Laura achava que fosse morrer antes de chegar à idade da mãe, mas não dizia essas coisas fora da cabeça. Respondeu:

  – Sempre penso em círculos, nunca em linhas.

  – O quê? – a outra virou a cabeça para o seu lado, abandonando a contemplação do céu agora arroxeado como hematoma. 

  – Sabia que morreu a empregada da Olga? Aqui do apartamento de baixo?

  – Coitada! Morreu de quê?

   – Caiu da janela enquanto limpava

   – Mas que absurdo! E agora?

   – Não sei … – Laura suspirou. – nunca falei com ela … mas ela me sorria sempre que a gente se cruzava no elevador …

Ela me sorria sempre tão cheia de bolsas sempre curvada com aquela criança gritando num dos braços filho da olga ela nunca ligou eu não sei o nome dela meu deus ela é só a empregada da olga meu deus não quero que seja assim não é assim que vou lembrar dela ela sorria pra mim ela sorria pra mim e ela cantava enquanto limpava eu às vezes meu deus sim ficava sentada aqui nesse sofá só escutando só escutando a voz dela desafinada mas era doce ouvia horas a fio se pudesse qual era o nome dela meu deus eu não sei, não sei

Sentiu vontade de chorar; olhou para Marta, brincando com o pingente do cordão. Não ia chorar na frente dela. Encarou o teto; como era branco o gesso. De repente esbofeteou-lhe a noção de que o teto iria ruir sobre as duas ali; o que se passava na cabeça de alguém, nos nano-segundos finais? Será que sequer tinha tempo de passar alguma coisa? Onde que tinha lido, ela tinha lido … ah, sim … é a hora da estrela. Aquele momento derradeiro que nos separa do que quer que venha depois: é o momento em que todo mundo brilha que nem Marilyn Monroe ou Jeanne Moreau … é a hora da estrela, é o close-up final. Será que a empregada sorridente e cantante brilhou nos seus momentos finais? Antes de quebrar o pescoço na queda? Pode-se brilhar em uniforme de empregada?

Ficava encarando o teto branco feito quarto de hospital; o oceano de silêncio e tédio envolvia-lhe, vagarosamente afogava-lhe …

      – Bem, você promete que vai pra faculdade na segunda? – Marta perguntava, enquanto se levantava lentamente, desdobrando as longas pernas. Passou a mão pelos cabelos. – Eu te passo minhas notas sobre os conteúdos que você perdeu … mas tem que me prometer que vai tentar fazer alguma coisa. Sei lá, sair mais de casa …

      Laura balançou a cabeça positivamente.

      – Te acompanho até a porta … obrigada por vir; estou bem … tô bem; na segunda tô lá – e ia caminhando ao lado da outra até a porta.

Abraçaram-se. “Se cuida”, a amiga segredou antes de sair porta à fora. Como?, ficou entalado na garganta de Laura. Como que a gente se cuida? 

Pôs um casaco e saiu porta à fora. Pegou o elevador. Pensou na empregada, que lhe sorrira naquele lugar de encontros acidentais. Apertou a chave na mão. Virou-se de frente para o espelho. Meu deus … e ficou se encarando. Não se achava bonita, nem feia. Era como se fosse apresentada a alguém novo toda a vez que encarava seu reflexo num espelho. Cansada, sempre com olheiras e pálida, isso nunca mudava. Mas o resto sim, ela sim. Nunca era a mesma. Ou talvez fosse porque o espelho já não fosse o mesmo … de repente o leve sacolejo da aterrisagem. 

Caminhava pelas ruas do bairro pequeno burguês em que vivia; olhava para o alto, para as copas das árvores frondosas, para as janelas iluminadas dos altos prédios. Quanta gente meu deus quanta gente cada uma com uma história cada uma fazendo alguma coisa e eu não conheço ninguém e a empregada morta meu deus agora já deve estar enterrada ou cremada será que queimaram ela que estranho que engraçado que é a gente morrer não estar mais aqui e a vida continuando e as pessoas no alto dos prédios fazendo coisas e a gente esquecida porque vão esquecer vão rir de piadas vão comer coisas gostosas só ela que não vai mais ela não vai fazer mais nada ela já não existe mais e meu deus meu deus que sacrilégio que sacrilégio que horror que é a gente continuar a viver quando alguém morre quem me deu o direito quem eu te pergunto quem me disse você vive e ela morre mas é assim a vida é assim a gente diz isso pra tudo que não sabe explicar direito já reparou a vida é assim mesmo as coisas são assim fazer o quê né a vida é assim ela continua a vida

      Sentou num banco, debaixo de um poste. Tinha uma mulher com um carrinho de bebê sentada no banco vizinho. Ela balançava o carrinho com um dos braços, empurrando e puxando de volta, empurrando e puxando de volta, empurrando e puxando de volta, que nem uma onda na praia. Que nem a onda daquele oceano de nada que seguia Laura para todo canto. Ela observou o rosto da mulher, como se estivesse sentada de frente para um quadro em um museu. Tinha a pele amarelada sob a iluminação doentia que fornecia o poste, onde bichinhos-de-luz se aglomeravam; os cabelos ralos e loiros caíam sobre as orelhas; a mão que não balançava o carrinho do bebê, tinha-na sob o queixo, em posição de indiferença e alienação. Via-se que estava cansada, desiludida. Para a imaginação hiperativa de Laura, aquela mulher perdera as ilusões já há muito. Nada mais triste que desiludir: as ilusões são tão boas, tão confortáveis. Tão mornas e agradáveis; parece até cama no fim do dia. Ilusão é cama no fim do dia. Desilusão é dormir em cima de paletó velho, que nem a mãe dela dormia quando era menininha. Muito tempo antes de casar com o pai; quando nem sonhava com um apartamento nesse bairro pequeno burguês. 

Olhou para cima, para a luz doentia do poste esguio; os bichinhos-de-luz eram também alienados ao resto das coisas, a tudo que não fosse a luz daquele poste. Uma brisa fria varria as folhas das árvores, balançava os fios de transmissão que corriam feito corda bamba entre os postes. Era triste o vento à noitinha assim. O que faço? O que devo fazer devo ler devo desenhar ver coisas ver gente devo aceitar que estou sozinha engraçado aquele moço do outro lado da rua a cabeça dele é tão grande eu pensei que fosse ter mais à essa altura mas à essa altura olha só eu não tenho nem vinte e cinco ainda o que que a gente tem aos vinte e um pra mostrar nada eu acho que vou comprar uma pizza eu não sei e a marta veio fazer o quê tadinha ela gosta de mim eu acho o namorado dela aquele dia que eu fui com ela não sei ela segurou minha mão antes de entrar no consultório eu acho que faria a mesma coisa a mãe dela nem sabe tive medo meu coração batendo e ela segurou a minha mão e a empregada qual o nome dela meu deus qual o nome dela será que ela tinha devia ter não é possível se não filho então alguém alguém pra dizer adeus pra ela eu espero por que a vida é como é eu já não sei tô com sono o bebê tão sereno a carinha parece uma boneca de cerâmica a mulher desiludida dever ser mãe vai ver é babá ou tia queria perguntar queria saber pra onde você vai pra onde a gente vai

Levantou do banco. Enterrou as mãos nos bolsos do casaco; foi andando até a casa do Fernando. Ele estivera lá ontem, enquanto a mãe ia fazer uma de suas visitas periódicas à tia. Laura tinha telefonado. Queria ser tocada, queria ser tocada; às vezes era só isso. Ele era meigo; tinha sempre um cheiro incidente de suor, mas era bom, mal se notava. Não falava quase nada. Laura dizia: “te acho lindo”; ele olhava pra frente – talvez até enxergasse o mesmo oceano de nada que ela, quem sabe – e respondia, a voz grave: “você também”. E então ficavam em silêncio. Nus, na cama. Em silêncio. Ela dizia: “minha mãe daqui a pouco chega”. E ele, catando as roupas: “vou”. Ia embora, depois de tocar nos cabelos dela. Era como um fantasma; mal Laura sentia seus dedos, já se fora. Gostava dele. Sabia onde ele morava. Já fora algumas vezes. Não era muito longe; morava sozinho; era burguesinho também. Não pensava muito nisso, Laura. Era como as coisas eram: a empregada cujo nome não sabia morreu limpando a janela da Olga, ela vivia indolências com o Fernando. 

Depois do sexo, nus na cama, Laura falou para o escuro (às vezes trespassado pelo reflexo dos farois de um carro): 

   – Morreu a empregada de uma vizinha, sabia? Caiu da janela da Olga enquanto limpava.

   – Olga é a que fede a cigarro? – a voz estoica quis saber.

   – Ela. Não sei o nome da empregada … 

   – Hm. Coitada … – a voz era sonolenta. – Vai dormir aqui?

Não havia expectativa. Não havia acusação. Não havia desculpa no tom com que a pergunta foi feita. Laura olhava fixamente pro teto escuro, só às vezes iluminado por alguns segundos pelo reflexo dos farois de um carro. Beijou a mão dele, sem pensar. Fazia dessas coisas, às vezes. Assim, sem pensar. Vestiu-se e foi embora. Beijaram-se antes de ela ir. 

Ficou a andar, sem rumo, por aí. Pelas ruas iluminadas. Pessoas passavam por ela na calçada; carros deslizavam sobre quatro rodas. O que tudo isso significa hein o que significa o prazer que eu acabei de experimentar o que significa esses carros que passam essas pessoas que andam o que significa a janela da olga meio limpa limpa só pela metade o que significa a minha faculdade a minha mãe que dormia em paletó velho quando era mais nova que eu o que significa o bebê no carrinho que não era o bebê da marta o que significa fernando e ela meu deus ela o que significa a mulher que me sorria no elevador ela não significa mais nada ou será que ela significa só agora porque já não é mais nada agora que eu me pergunto qual o nome dela tenho de passar no correio amanhã a gente vive a gente não sabe nada eu não sei nada os carros os farois conheço aquela mulher vou pra casa o sono meus olhos

Depois de chutar os sapatos para um canto, de arrancar fora o casaco e amassá-lo em cima de uma cadeira qualquer, depois de enterrar a cabeça no travesseiro, o rodamoinho dentro da cabeça de Laura não cessou. Ainda não; nunca não cessava. Ela sonhou: caía de uma janela; espiralava pra baixo, pra baixo, sempre pra baixo e mesmo em sonho, triste, desiludida: meu deus não sei o nome dela.