No nosso planeta Terra / A vida humana é um drama:
No teatro do Destino / É que começa o programa –
Só termina quando a morte / Vem trazer o telegrama.
– Manoel D’almeida Filho
1. Introdução (ou: a projeção se inicia)
Abra-se tudo diante de uma câmara super-8 – a única lente possível para lançar-nos ao uni-verso poético e filosófico deste angelical demônio insofismável da cultura marginal brasileira –: “eis, magro e taciturno, o homem que nas ruas do Recife e João Pessoa do início do século passado cismava, sofria e escrevia poemas”1. F. W. Murnau desce dos céus para benzer os quadros de expressão expressionista do nordeste brasileiro em tempos de invasão da indústria e da ciência. A cena segue. A câmara pousa em plano médio na Escola do Recife. A imagem esmaece.
Um espaço sepulcral se abre aos olhos de quem assiste ao ensaio-cinematográfico, o que se vê são ruínas e caixões. Diante de um necrofone (microfone às avessas), a seguinte passagem é narrada por um experiente coveiro: “por uma teoria cinematográfica da poesia!2 A invenção ao inventor, veja bem, a invenção ao inventor – é preciso que se diga. Pois bem, vindo de outras eras, o poeta Augusto dos Anjos foi assentado na história da literatura brasileira como navegante de errante barco simbolista. Dono de porosa dicção prosódica, a música cacofônica de seus versos como que desafinou a nau parnasiana. As imagens de seus vermes, associadas ao alto pessimismo schopenhaureano, compõem a partitura semântico-visual de sua poética”. A sequência continua com a câmara em plano fechadíssimo na boca do velho homem, que afirma peremptório: “Poeta, féto malsão, creado com os succos / De um leite máu, carnívoro asqueroso, / Gerado no atavismo monstruoso / Da alma desordenada dos malucos; // Ultima das creatúras inferiores / Governada por átomos mesquinhos, / Teu pé mata a uberdade dos caminhos / 1 Em voz off, a citação é proferida por certo poeta irregullar. 2 Paródia a máxima de Jairo Ferreira em Ecos Caóticos (1975), curta-metragem em que o cineasta marginal homenageia o inventivo Sousândrade: “por uma teoria poética do cinema!”. E esteriliza os ventres geradores!”. Alguns túmulos atravessam a tela e são mostrados em zoom as inscrições gravadas nas pedras – a câmara desvela os nomes de Joaquim de Sousa Andrade e Pedro Militão Kilkerry. A cena se encerra.
Panorâmica sobre o rio Capibaribe. É noite. A câmara flagra na encosta do rio o ronronar de felinos assustados, ao passo que um perfil não identificável trespassa o olhar do espectador. Era como a figura de um fantasma que se refugia na solidão da natureza morta. A câmara aponta para a vegetação podre que cerca as águas do Capibaribe, para o lodo e o lamaçal que compõem o acervo imagético desse antipoético cartão-postal da cidade recifense. Em lances de montagem ideogrâmica, a câmara filma paralelamente o movimento do rio e, em outro quadro, o cuspe afrodisíaco das fêmeas, isto é, o gozo feminino.
2. As cenas do destino
É diante de um corpo feminino nu que a próxima sequência se revela. Plano de detalhe na vagina da mulher. A câmara lentamente se desloca para a parte de cima do corpo da moça. Barriga, seios, pescoço, queixo – nesse momento, constrói-se uma cartografia do tecido humano –, maçãs do rosto, nariz e, finalmente, os olhos são fixados na tela. A voz embargada da mulher ressoa de maneira opressiva: “Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo / A apodrecer! (depois dessa palavra, há um silêncio letargo. os olhos continuam a mirar a tela.). És poeira, e embalde vibras! / O corvo que comer as tuas fibras / Há de achar nelas um sabor amargo!”. A imagem abre. Um plano de conjunto põe à mostra o pequeno quarto em que a mulher e um homem estão prostrados – este, desacordado, com largo hematoma na cabeça (o sangue escorre desbragado). Visualiza- se também uma janela que dá para uma catedral. A cena finda sob o som estridente da guitarra de Edgar Scandurra na versão de Arnaldo Antunes de Budismo moderno.
A super-8 flana entre as tortuosas ruas de um Recife assolado por contrastes sociais aberrantes. As novidades gestadas pelo avanço da industrialização acirraram as desproporções no que se refere à distribuição de renda. O drama é potencializado pela intensidade das sombras rembrandtescas das paisagens que atravessam os quadros da sequência. De todo aquele mundo (estado, associações, municípios etc), restava apenas um mecanismo moribundo e uma teleologia sem princípios.
“A noite era funesta” – pondera em off o narrador, dotado de voz falha, rouca, mas cortante. Em sibilar cansado, quase incompreensível, continua: “Madrugada de Treze de Janeiro. Rezo, sonhando, o ofício da agonia em que pese, talvez um dia, a grandeza da arte que se anuncia. Que a tórrida tumba do poeta errante dê lugar ao poeta incapaz que maldiz a poesia”. A voz adquire angustiante tom áspero, ao que profere a frase seguinte: “les contemporains ne savent pas lire”. A câmara, confundida isomorficamente com um morcego, reflete toda a extensão das ruas pretas e a podridão do bafo exalado pela cidade. As imagens da modernidade, por outro lado, são refratadas, de modo que os anúncios das lojas e casas de comércio mais parecem epitáfios, adornados tristemente tal como elegias de Propércio.
Ascende a claridade. O vagar dos raios do sol compondo a aurora do dia acenam para a próxima cena. A câmara reside sobre um cadáver deitado no chão da praça Rio Branco (Marco zero de Recife). O som das traças roendo o corpo putrefato é almejado como uma espécie de sinfonia. As pessoas, ao passarem pela cena, dançam trepidantes ao som vermicular da carne corroída. Há, nesse momento, um jogo de câmara fragmentário: os vermes são focados em plano de detalhe, enquanto as pessoas – enquadradas em plano médio – dançam alegremente. As duas imagens (vermes e pessoas) são sobrepostas na montagem, indiciando certa relação direta entre as partes. A transição para a cena seguinte se dá com a tradução musical do poema mallarmaico (A tarde de um Fauno) por Claude Debussy a partir de 1 min e 10 seg. (https://www.youtube.com/watch?v=SkJzDou8EGA).
A outra sequência se inicia ao fim da trilha sonora em 1 min. e 33 seg.
Em plano fechado, um letreiro escrito numa parede às margens do Marco Zero é filmado. Nele, constam os dizeres: “um filme não cabe num poema; a vida de um poeta não cabe num filme – a criatura ao criador, a invenção ao inventor”. A câmara gira em torno de seu próprio eixo para a direita e capta a figura de um bêbado urrando aos berros repetidas vezes a sã sentença: “Estou sozinho! A estrada se desdobra. Todos os meus colegas estão preocupados com as suas obras. Eu, moderníssimo, só me importo com as minhas sobras. Estou sozinho, moço! A estrada se desdobra. Todos os meus colegas estão preocupados com as suas obras. Eu, moderníssimo, só me importo com as minhas sobras”.
A cena é cortada abruptamente.
A câmara mira um grupo de jovens estudantes, que conversam num boteco. O diálogo é gravado em movimento de plano e contraplano. Um deles entorna o líquido que tem no copo e exclama: “o Tamarindo de Augusto dos Anjos já não cresce mais, o poema que se faz hoje é mais patético do que poético. É preciso que se limpe a poesia de toda a rosa, de toda a merda, fazendo-a ainda mais ridícula”. O outro, ávido, completa: “mas, não poetizar o poema, sim. Mas e quanto a poetizá-lo? Seu fado de magia e música o acossa de todos os lados”. A câmara se distancia vagarosamente dos jovens e a voz de João Gilberto toma conta da cena. Ele canta Meditação, composição de Tom Jobim e Newton Mendonça (https://www.youtube.com/watch?v=bORLmILswnM).
3. Último credo
A câmara estática enquadra em plano aberto o memorial Augusto dos Anjos, localizado em Sapé, município da Paraíba. Narra-se em voz off os excertos finais: “Morte, ponto final da última cena”. E segue: “e, no entanto, a mais alta expressão da dor estética consiste essencialmente na alegria. A augusta poesia deste Anjo Torto é um acorde dissonante na história das letras brasileiras. Diria um tal Torquato que é preciso desafinar o coro dos contentes. Anjo de versos tão diversos de tudo que endeusam por aí, escarro verbal, escatologia existencial. Poeta da recusa: não fez da poesia adorno, riso simpático ao gosto médio. Não fez de sua poesia instrumento da filosofia, forma um pouco mais
sofisticada de adorno. Ao contrário, viveu a sua poesia sem concessões. Percebera desde os mais ínfimos anos de vida que criação artística sem invenção é ciranda para criança dormir. Augusto dos Anjos é, pois, um Eu antropofágico antes da antropofagia de Oswald de Andrade. Em seu banquete, serviu-se de Cesário Verde, das ideias de Tobias Barreto, de Haeckel e de certo pensamento filosófico soturno”.
Sucede-se um plano-sequência. A câmara continua estática, ao passo que um homem e uma mulher aparecem, concomitantemente, pelas laterais da tela. Um na direita, outro na esquerda, posicionam-se lado-a-lado. Eles recitam (cada um verseja uma estrofe, de maneira alternada) Os doentes. As vozes são entoadas pesadamente.
Como uma cascavel que se enroscava,
A cidade dos lázaros dormia.
Somente, na metrópole vasia,
Minha cabeça autónoma pensava!Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pizava,
Um figado doente que sangrava
E uma garganta de orphã que gemia!Tentava compreender com as conceptivas
Funcções do encéfalo as substancias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckel comprehenderam…E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de billiões de raças
Que há muitos anos desappareceram!
Corte brusco. A tela enegrece. Os créditos começam a subir. A projeção se encerra.
Referências (créditos)
Escrito e dirigido por Rafael Passos.
Textos citados: O príncipe enterrado vivo e a rainha justiceira, de Manoel D’almeida Filho; Eu, de Augusto dos Anjos; Vida e morte nordestina, de Ferreira Gullar; Mallarmé, de Décio Pignatari e dos irmãos Campos.
Músicas citadas: Budismo moderno, tradução de Arnaldo Antunes para o poema de Augusto dos anjos; Prelúdio à tarde de um Fauno, de Claude Debussy; Meditação, de Tom Jobim e Newton Mendonça.
Cinemas citados: Ecos Caóticos, de Jairo Ferreira; Brás Cubas, de Júlio Bressane; O cinema falado, de Caetano Veloso.