O que o mar leva consigo

Thyago Costa

Era um fim de tarde e o homem velho caminhava mais uma vez naquela praia. Dessa vez estava descalço. Sentia cada passo afundar na areia e os grãos incomodarem entre os dedos. Andava lentamente com o peso da idade nas costas e a inquietação de um coração cansado. Aquela provavelmente seria sua última visita àquele local, já estava acostumado com o ritual. Mas era um costume dolorido, um hábito que ele não queria ter, uma vontade que não lhe pertencia, uma escolha que lhe faltava.

A praia estava movimentada, como sempre. Por toda sua extensão, bancos largos de madeira, escurecidos pelo tempo, eram dispostos a poucos metros do mar. Vários estavam ocupados por momentos festivos de alegria, mas também por arrependimentos de vidas carregadas de angústia. Na linha do mar, várias canoas descansavam na areia, com seus remos abraçados no interior, esperando a conversa de seus futuros ocupantes cessar para assim partirem para o mar.

O homem velho sentou em um dos bancos, o mesmo que usara em visitas anteriores. Dava umas tapinhas afetuosas na madeira maltratada, como se visse um antigo amigo de tempos esquecidos. Via algumas canoas seguirem em direção ao horizonte, com seus ocupantes acenando para os que ficaram, em uma despedida chorosa. Apertava os nós dos dedos, nervoso. Aguardava por alguém, assim como muitas pessoas ali também aguardavam. 

O azul do céu começava a mesclar-se com o laranja, logo o sol ia se pôr. O homem velho já tinha visto essa aquarela muitas vezes, já acenara para muitas pessoas da beira da praia também, mesmo não lembrando mais do rosto de nenhuma, nem da emoção que sentira ou se chorara. Respirava fundo e, quando sua mente começou a embaralhar confusa de questionamentos, ele ouviu:

“Pai?” Um jovem alto, na casa dos trinta, chegou de mansinho, sentou ao lado do homem velho e sorriu com o acalento de alguém que ama muito.

“Oxe menino, pensei que não viesse mais.” A voz tremida escondia o nó na garganta. “Anda, senta logo aqui, deixa eu olhar pra você. Tá tão magro, menino, esse cabelo todo bagunçado. Parece aquele garotinho correndo na casa do teu avô, cheio de energia que minhas costas não aguentam mais.”

“Estava dormindo, meu velho. Por isso estou com essa cara de cansaço. Mas pra falar a verdade, eu realmente estou um pouco cansado. Por quanto tempo esperou aqui, hein?”

“Cheguei faz um cadinho de tempo, fiquei olhando pra esse povo todo indo pro mar. O dia está bem agitado, cheio de despedidas. Não lembro direito como cheguei aqui, novamente, só sei que tinha que vir, né? Queria era nunca mais vir aqui, sabe, mas nem lembro dos motivos de não querer.” Alguns segundos de vazio carregaram as palavras pelo vento. “Envelhecer dói.”

“Era necessário vir, meu velho. Eu mesmo estou aqui, apesar de tanto tempo ainda venho visitar o senhor, mesmo depois de tanta amargura que lhe envolveu nessa vida.” O jovem olhava para os pés descalços do pai, cheios de areia. “Pai? Lembra quando conheceu a mãe?”

“Não, não lembro.” Coçava o nariz enquanto via mais pessoas em suas canoas. “Não lembro do sorriso, nem do cheiro, nem da cor dos cabelos. Merda, menino. Não lembro nem do nome dela.”

“Tereza.” Os olhos fitavam o rosto do pai, procurando uma resposta oculta.

“Tereza… sim, era esse o nome. Engraçado– lembro agora quando ela tava barriguda, esperando você. Eu tava afinando meu velho violão e ela gritou, assustada. Corri desembestado pra saber o que tava acontecendo. Tinha estourado a bolsa. Pedi pra um compadre, que tinha uma caminhonete, levar nós no hospital. Chegando lá: lotado. Não tinha médico, a sala de espera tava cheia de gente gritando de dor. Não lembro muito bem, mas nós conseguimos dar um jeitinho de fazer a– a Tereza, né, ser atendida. Pareceu que um bocado de horas se passaram, sabe, então me chamaram pra ir até o quarto. E então eu te vi, uma bolotinha de gente. Eu tinha medo demais das responsabilidades de ter filho, eu tinha dezoito anos, tua mãe dezessete. Só que– naquele momento, com você nos meus braços, eu– eu nasci também, sabe. Eu tinha o mundo nos meus braços.”

“Eu lembro dessa história. Mamãe contava sempre nas minhas festas de aniversário. Ver sua cara vermelha de vergonha era ótimo. Mas eu queria poder ter sido mais abraçado pelo senhor. Essa história só me faz pensar que esse foi o primeiro e último dia que me pegou nos braços com tanto esmero.”

“Eu confesso que quando você era menorzinho, pequetucho, eu era cheio de amores que transbordavam do peito, sabe. Mas você cresceu tão rápido. Não consegui encarar isso e voltei praquele medo juvenil.”

“Eu não tive culpa de crescer, pai.”

“Não, não teve mesmo. A culpa foi do teu jeito, da brabeza de adolescente que me negava a chance de me aproximar. Porra! Você se tornou exatamente do jeito que eu era com teu avô. Eu detestava aquilo se repetindo. Teu avô morreu sem meu perdão, sozinho no leito de um hospital enquanto eu enchia o cu de cachaça na praça da cidade com alguns amigos.” O olhar fitava uma visão distante no tempo. “Teu avô é um vulto sem rosto que atormenta minha cabeça todo santo dia. Eu brigava com ele sempre, sempre e sempre. Porra! Eu não queria morrer na cama de um hospital igual ele. Mas você não me dava a chance, a merda de uma chance.”

“Eu nunca odiei o senhor. Eu queria realmente que me desse atenção quando eu mais precisava. Dentro do mesmo teto nós éramos dois estranhos que mal trocavam palavras. É irônico pensar que a gente só começou a se aproximar quando o senhor separou da mamãe. O senhor foi morar em outra cidade, nos víamos apenas uma vez por mês. Essa época é curiosa, a gente aproveitava o máximo o dia juntos. Por que isso, pai?”

“Tive um sério desentendimento com tua avó, mãe da tua mãe. Como você morava na mesma casa que elas, eu não podia sequer passar na porta. Eu só tive o direito de ver você uma vez por mês. Às vezes eu passava uma semana na cidade, pensava em maneiras de ir na tua casa te arrancar de lá. Mas eu era covarde, meu filho, ainda bem, pois sei que se fizesse isso as coisas teriam sido muito piores. Nossos dias mensais eram a melhor recompensa que uma pessoa como eu poderia ter. A gente costumava comer pizza nesses dias, né?”

“Sim. Eu detestava aquela pizza.” Um sorriso amarelo deu as caras.

“Detestava? Como assim, moleque? Você amava! Comia uma grande sozinho com esse olho esfomeado.” Incrédulo com a afirmação do filho, procurava um refúgio nos seus olhos.

“Toda vez que íamos comer pizza era no fim da tarde. Eu já sabia que o dia estava acabando e que o senhor teria que me deixar em casa. A pizza tinha o gosto amargo.”

“Era o que nós tinha, meu menino. Queria ter participado mais da tua caminhada e não de apenas um único dia por mês. Mas era o que nós tinha.” A voz começava a falhar. “Você se tornou um rapaz tão vitorioso. Tua mãe teria tanto orgulho de ter visto você se formar. Eu prometi pra ela, no seu leito de morte, que sempre iria cuidar do nosso filho, era uma promessa que eu nem deveria ter feito, era uma obrigação minha. Você era– é meu filho! Como eu fiquei orgulhoso de ver você vencer, nossa, que alegria ver que você começou a construir uma família melhor do que a que eu ofereci.”

“Mas então veio o acidente, né?” 

“Sim. Veio o maldito acidente. Porra! Eu– eu não tinha mais nada depois daquilo. Por que você teve que viajar naquele dia? Eu te falei para não ir de barco, porra, eu falei tanto pra não ir de barco.” As lágrimas queimaram os olhos por causa do forte vento. “Não tive nem direito ao teu corpo pra enterrar. Tá lá no fundo, dormindo numa cova escura e fria, tão longe de mim que nem pude colocar você nos meus braços como no dia que nasceu.”

“Eu lamento, pai. Eu tive tanto medo naquele dia, eu pensei na minha esposa e nos meus filhos. Mas pensei tanto no senhor. Já faz quase quarenta anos, e ainda lembro da última coisa que pensei antes do fim.”

“Envelhecer dói tanto, meu menino, como dói. Eu queria que nós tivesse em lugares trocados naquele dia. Eu não lembro nem onde eu tava– mas, onde? É–?” A confusão embaralhava o discernimento. Eles estavam ficando sem tempo, o sol já estava quase para tocar o mar. “O que pensou, meu filho? No fim.”

“Naquela música que o vovô tocava pro senhor no violão, todos os dias antes de sair pra trabalhar, lembra? O senhor adorava e depois de crescido dedilhava as cordas do seu próprio violão, cantando essa música embalando em uma rede na varanda.”

“Eu– eu lembro, quer dizer, lembro mais ou menos– Não lembro da letra, nem da melodia, nem das notas– de nada, mas lembro que algo assim existia.”

“Eu lembro!” Um sorriso misturado com choro surgiu no rosto do rapaz.

O homem velho sentiu o coração acelerar.

O rapaz respirou fundo, tomando um ar de vida. Olhou para o velho pai ao seu lado, sorriu e começou:

Ando devagar porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais

Hoje me sinto mais forte
Mais feliz, quem sabe
Só levo a certeza
De que muito pouco sei
Ou nada sei

Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maçãs

É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Penso que cumprir a vida
Seja simplesmente
Compreender a marcha
E ir tocando em frente

Como um velho boiadeiro
Levando a boiada
Eu vou tocando os dias
Pela longa estrada, eu vou
Estrada eu sou

Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maçãs

É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Todo mundo ama um dia
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora

Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
E ser feliz

Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maçãs

É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Ando devagar porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais

Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
E ser feliz

O homem velho então lembrou do pai, sentado na cadeira de balanço e com o violão descansando na coxa, enquanto dedilhava as cordas e cantava. O homem velho sentiu o cheiro do café que sua mãe tomava, sentada na cabeceira da mesa para ver o esposo e sua cantoria. O homem velho sentiu o frio do chão de madeira que sentava para ouvir o pai em seu mantra diário, os olhos brilhavam com a voz do senhor do violão que sorria ao finalizar cada verso com a ternura de uma alma feliz. O homem velho então aplaudia o pai no final da apresentação, todo eufórico e realizado. O homem velho então ouviu a mãe dizer: “Tome a bença do teu pai, Mundico, ele já tem que ir!”

O homem velho, Mundico, olhava para o filho sentindo o peito rachar de tão apertado o coração que ali batia. Ele sentiria tanta falta dele, mais do que já sente. Com a voz trêmula, amparada por soluços, abraçou o filho e disse:

“Eu te amo, meu filho. Eu sempre vou te amar!”

“Eu também te amo, meu velho! E sei que isso sempre será verdade.” O rapaz tocou no rosto do pai, beijou sua testa e foi se levantando. “Agora tenho que ir, já está tarde, quase não se tem canoas. O sol já está se pondo e tenho que seguir viagem. A gente vai se encontrar de novo um dia, pai, mas não aqui. Esse foi seu último dia nessa praia de lágrimas.”

O jovem foi andando até a beira da praia, pegou uma das canoas que restavam, empurrou pelas águas e embarcou com um pulo. O jovem remava em direção ao horizonte, assim como as outras incontáveis canoas que seguiam para o mesmo destino. Mundico já tinha visto essa cena diversas vezes. O filho agora faria companhia às sombras sem face de seu pai, sua mãe e sua esposa. O mar levava consigo aquela pequena canoa contendo o último resquício de suas lembranças que ainda não tinham sido corroídas pelo véu do esquecimento. 

Envelhecer dói.