Sexteto Atlas de Nuvens

Júlia Serrano

RESUMO: Esse ensaio versa criticamente sobre o romance Atlas de Nuvens (2016), originalmente publicado em inglês com o título Cloud Atlas (2004), do escritor britânico David Mitchell e traduzido por Paulo Henriques Britto. A obra e sua literariedade são apresentadas a partir de argumentos desenvolvidos pelo próprio Mitchell (2015; 2018) e por Ítalo Calvino (2012), autor que, como fica demonstrado, influenciou a produção do autor britânico. Em seguida, uma análise crítica de Atlas de Nuvens (2016) é desenvolvida, focada no aspecto da construção das vozes de seus personagens, elemento especialmente relevante no romance, dado que ele é tomado aqui como um romance polifônico, uma noção cunhada por Bakhtin e trazida aqui sob as lentes de Machado (1995). Também são levadas em consideração, as críticas feitas por James Wood (2014) ao trabalho de Mitchell, assim como suas perspectivas teóricas quanto ao funcionamento do romance ficcional (WOOD, 2011). O trabalho de Mitchell em Atlas de Nuvens (2016) é positivamente caracterizado pela polifonia e por seu experimentalismo estrutural e narrativo.
PALAVRAS-CHAVE: Atlas de Nuvens; Crítica Literária; Polifonia; Vozes.

ABSTRACT: This essay critically verses on the subject of the Atlas de Nuvens (2016) novel, originally published in English under the name Cloud Atlas (2004), written by British author David Mitchell and translated by Paulo Henriques Britto. The book and its literacy are explained through arguments presented by Mitchell (2015; 2018) himself and by Italo Calvino (2012), Italian author who, as shown, has influenced the work of the British author. Next is a critic analysis of Atlas de Nuvens (2016), which focuses on the constructions of the voices of the characters, a particularly relevant aspect of the novel, given that this work understands the book as a polyphonic novel, notion that has its roots on studies by Bakhtin and is presented here under the lens of Machado (1995). The criticism offered by James Wood (2014) to the works of Mitchell is also taken into consideration, as well as Wood’s understanding of fiction (WOOD, 2011). What Mitchell has done in Atlas de Nuvens (2016) is positively marked by the polyphony and by his structural and narrative experimentalism.
KEYWORDS: Cloud Atlas; Literary Criticism; Polyphony; Voices.

 

“O Sexteto Atlas de Nuvens contém
minha vida, é minha vida”
(David Mitchell)

Abertura

O texto literário está submerso na multiplicidade, no “potencial semântico das palavras, de toda a variedade de formas verbais e sintáticas, com suas conotações e coloridos e efeitos”, como disse Calvino (2012 [1988], p. 123) – ao falar da prosa do italiano Carlo Emilio Gadda. Assim, na atividade da criação literária, autores navegam por diversas técnicas e estruturas narrativas; questões de estilo; escolhas linguísticas e discursivas; que terminam por produzir obras únicas entre muitas outras, mas também únicas dentro de si, pois se renovam a cada página, gerando múltiplos sentidos – tanto semânticos quanto narrativos.

Também submerso na multiplicidade, com sua prosa e estilo experimentais, o texto que desperta o interesse e suscita os questionamentos do presente trabalho é Cloud Atlas (2004), na sua edição brasileira Atlas de Nuvens (2016) – traduzido por Paulo Henriques Britto. Segundo o autor do livro, David Mitchell, é possível destacar dois temas centrais na obra. O primeiro é a interconectividade (inclusive entre causa e efeito), que o autor explica a partir das seguintes palavras: “você pensa que tem sua vida única e que ela segue seus próprios trilhos […]. Pensamos que somos ilhas, mas na verdade somos arquipélagos de ilhas interconectadas” (ROADSHOW FILMS, 2013, s.p., tradução nossa). O segundo é a predacidade em seus vários níveis:

a forma como indivíduos predam indivíduos, tribos predam tribos, corporações predam suas sociedades hospedeiras, Estados predam indivíduos nesses Estados. A mecânica, a eletrônica, da predacidade […]. (ROADSHOW FILMS, 2013, s.p., tradução nossa).

Ambos os temas, é claro, relacionam-se intimamente ao longo de toda a narrativa para construir seus sentidos.
O romance é o terceiro livro do autor britânico contemporâneo David Mitchell e é, talvez, sua mais audaciosa empreitada narrativa. Mitchell é um autor com gosto para o inventivo e é por isso que, ao dizer que Atlas de Nuvens é sua “mais audaciosa empreitada narrativa”, é preciso antepor a afirmação com um grande “talvez”. Ele próprio diz, em entrevista a Skotte (2015 [2014]), que almeja ser onívoro na sua escrita, que deseja renovar, a cada livro, seu jeito de contar histórias. Do ano de lançamento de Atlas de Nuvens até agora, Mitchell já lançou outros livros que passam a compor seu projeto, talvezainda mais audacioso, de um “uber novel” – em que todos seus trabalhos de ficção se interligariam criando um só “livro” – explodindo a lógica e o mundo do romance em proporções ainda maiores do que as de um único objeto livro.

No livro em questão, o autor intercala numa “imagem espelhada” – inspirando-se na obra Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino (1999 [1979]) – seis narrativas de seis personagens distintos, mas que estão conectadas por mais motivos do que se imagina a princípio. Cada um desses personagens passa por uma “jornada ética através do tempo” (ROADSHOW FILMS, 2013, tradução nossa). Mas a expressão “através do tempo” denota mais do que a experiência de vida de cada um. O tempo é todo o tempo do mundo, já que todas as vidas dos personagens estão interligadas (um dos temas do livro) não só por pequenos indícios históricos presentes no texto, mas pelo subtema da reencarnação, utilizado pelo autor para conectar mais intimamente essas vidas ficcionais de seu romance.

Para melhor compreensão, a primeira narrativa apresentada é a de Adam Ewing, um tabelião ianque, e nos conta, através de entradas de diário, os episódios finais de uma viagem de trabalho que mudaram sua vida. A segunda é a do pianista britânico Robert Frobisher, que, em suas cartas, conta os eventos que levaram à produção do seu sexteto Atlas de Nuvens e à sua morte. A terceira é a da repórter Luisa Rey, um romance policial escrito em terceira pessoa em que a protagonista luta contra o preconceito social e a corrupção de uma empresa de energia ao investigar os protestos contra a nova instalação nuclear na cidade de Buenas Yerbas.

A quarta é a de Timothy Cavendish, um editor londrino que se vê ameaçado por uma família de criminosos e acaba preso em um asilo geriátrico. Em sua autobiografia, ele conta dessa experiência no asilo e sobre como escapou dela. A penúltimaé a de “Sonmi~451”, um clone servente descobrindo a liberdade, e é apresentada ao leitor a partir de uma entrevista que ela faz logo antes de ser condenada à morte pelos seus atos de traição contra o governo chamado de Corpocracia. A sexta e última história, apresentada através da reprodução de uma narrativa oral, é a de um pastor chamado Zachry e se passa em um futuro pós-apocalíptico quando Zachry encontra uma mulher chamada Meronym e recebe a função de ajudá-la durante a sua estadia em seu vale.

Mesmo sendo ultimamente uma só alma que passeou pelo tempo, cada um desses personagens é dono de sua própria existência material e possui sua própria voz, seu próprio posicionamento no mundo, muitas vezes opondo-se a de outros personagens. Essas vozes discursivas são criadas e caracterizadas pela mudança nos gêneros textuais utilizados em cada uma das seis narrativas, pelas escolhas linguísticas e pela clara alteração da filosofia moral presente nessas vozes. A noção de polifonia construída ao longo dos trabalhos de Bakhtin sobre a prosaica (c.f. BAKHTIN, 1981; 1982; 1988) e revisitada por Machado (1995) vem a calhar. Tanto na música quanto na literatura e nas vozes, a polifonia é o encontro de vários espécimes (notas, instrumentos, textos, gêneros, vozes discursivas…) e Atlas de Nuvens guarda todos eles.

Largo

Se por um lado a narrativa realista moderna começou com Flaubert, como defende James Wood (2011), ela certamente não esgota o potencial temático ou narrativo do gênero prosaico. Então, quando Wood (2014) fala que David Mitchell tem muito a contar, mas pouco a dizer, não me surpreende, já que o autor britânico, escritor de Atlas de Nuvens (2016 [2004]) se aproxima mais de um realismo mágico, ou até de ficção científica, do que de um romance realista. Wood (2014) não poderia cobrar dele, então, uma abordagem tão centrada no ser humano como protagonista das leis do universo, ou negar a possibilidade da existência de uma força superior, transcendental, ou mística que influencia suas vidas. Mas sua crítica tem fundamento.

Ao falar sobre o realismo e Flaubert, algumas das características essenciais propostas por Wood (2011) são o detalhe expressivo, a neutralidade frente ao bem e ao mal, a presença visível, mas imperceptível, do autor em todas as frases de sua prosa. Wood (2014) argumenta que Mitchell produz sentenças e detalhes supérfluos, e exemplifica com a ligação muito tênue entre dois personagens que encabeçam, cada um, uma das seis narrativas presentes no livro: Robert Frobisher, compositor, nos anos 1930, do Sexteto Atlas de Nuvens, e Luisa Rey, repórter, nos anos 1970, que encontra registros dessa produção em cartas trocadas entre Frobisher e seu amante e parte a caçar a rara gravação do sexteto. Para Wood (2014), essas pequenas ligações, essas peças colocadas por Mitchell, não nos diz nada senão a existência de uma interconectividade universal talvez até desinteressante.

Falhei em compreender como os detalhes que marcam a interconectividade transtemporal de Mitchell se diferenciam dos detalhes que o crítico aplaude em Flaubert, além do fato de extrapolarem sua linha temporal e se jogarem na história protagonizada por outro personagem. Falho em perceber como a inutilidade específica de Frobisher encontrar um livro numa prateleira esquecida e descobrir nele a história de Adam Ewing, outra das seis narrativas, é diferente de Emma Bovary acariciar os sapatos de cetim que utilizou semanas antes, num baile. As seis narrativas estão todas conectadas por motivos às vezes mais claros, às vezes mais misteriosos, aparentemente sem motivo místico nenhum, senão a ligação histórica entre eles, como é o caso de Frobisher e Adam, que pouco têm em comum, a não ser o segundo se tornar livro de cabeceira do primeiro.Mas juntaselas constroem uma só obra, uma só vida que atravessa o tempo e o espaço.

Talvez Wood (2014, s.p.) desejasse que o livro tivesse uma moral. Porém, isso se afasta do desejar “neutralidade frente bem e mal” que ele propõe (WOOD, 2011). Seria, então, a falta de “humanidade” que ele retrata ser evidente em outro livro de Mitchell, The Bone Clocks (2010), resultado de uma “construção narrativa de personagens sem liberdade para viver, sem sua própria voz, com atos e maneirismos existentes apenas para fazer rolar a narrativa que leva a uma supranarrativa de poderes maiores que os indivíduos” Wood (2014, s.p.), resultado, portanto, da presença de um “autor-deus”. Sem a leitura de The Bone Clocks é impossível me opor à opinião de James Wood no caso desse livro em particular, mas, tendo em vista que o crítico apresenta isso como uma característica “Mitchelliana”, faz sentido avaliar o caso de Atlas de Nuvens. Deixarei, entretanto, a discussão das vozes e das reflexões humanas para mais adiante. Desejo, antes, encerrar o debate com o crítico também britânico.

Então, discordo do posicionamento que tem Wood, como demonstrado em seu artigo Soul Cycle: David Mitchell’s “The BoneClocks” (2014) ao The New Yorker, sobre a existência de um autor-deus ser uma característica essencialmente negativa. Todavia, concordo com ele quando diz que Mitchell às vezes cai no clichê (o que macula levemente sua prosa – comentários sobre isso virão posteriormente) quando se torna visível em determinados momentos do seu texto. Ainda que nem sempre de maneira óbvia, o autor de Atlas de Nuvens interfere nas vozes dos personagens para colocar comentários seus e interfere também na construção textual da obra, o que cria, no final das contas, uma narrativa cíclica, perfeitamente encaixada, que conta a história dos temas da interconectividade e da predacidade. O encaixe é feito de uma maneira que o início de cada narrativa se torna, ao mesmo tempo, uma abertura para a história seguinte e uma espécie de previsão do final das anteriores. Isso porque Atlas de Nuvens apresenta o início inacabado das seis histórias e depois as vai encerrando de maneira espelhada, ou seja, a última história apresentada é a primeira a ser finalizada e a primeira a ser apresentada é a última a ser finalizada. Por exemplo, a primeira narrativa é a de Adam Ewing, um tabelião do meio do século XIX, e ela é também a história que encerra o livro. A primeira parte da narrativa se interrompe antes do homem descobrir o motivo da doença que o aflige, coisa que fica um pouco evidente para o leitor fora do livro e para o leitor dentro do livro, Robert Frobisher, que na história seguinte encontra parte do livro (exatamente aquela que lemos) e sobre ele diz:

O texto me trouxe à mente o pateta do capitão Delano, protagonista do Benito Cereno de Melville, que não enxerga nada da conspiração à sua volta — ele não percebe que o dr. Henry Goose (sic), no qual deposita tanta confiança, é um vampiro, que alimenta sua hipocondria com o objetivo de envenená-lo aos poucos e arrancar-lhe dinheiro.
A autenticidade do diário é um tanto suspeita — ele parece estruturado demais para ser um diário de verdade, e a linguagem não soa convincente —, mas quem se daria o trabalho de forjar um diário assim, e por quê? Para minha profunda irritação, o texto termina no meio de uma frase […]. Você perguntaria a Otto Jansch, da Caithness Street, se ele sabe alguma coisa a respeito desse Adam Ewing? Um livro lido pela metade é como um caso deamor não consumado. (MITCHELL, 2016, p. 70-71).

O trecho demonstra não só como a narrativa anterior serviu como mote de um subenredo da história seguinte, como também trouxe marcas do próprio David Mitchell – e nesse quesito James Wood e eu concordamos –, que gosta de colocar aqui e acolá um humor sutil. Na voz de Frobisher, Mitchell zomba de sua própria produção do diário, produzido fora do universo narrativo pelo autor-criador a partir de um pastiche, como o próprio Mitchell admitiu em entrevista, e com a finalidade clara de se encaixar na sua narrativa, não podendo se tratar de um documento histórico, mas que no livro poderia ser tratado como tal, não tivesse Robert acusado uma aparente edição da obra. Inclusive, já na primeira parte da história de Ewing, encontramos a seguinte nota de rodapé:

* Meu pai nunca me falou dos dendróglifos, e deles só fiquei sabendo tal como relatei na Introdução. Agora que os moriori da ilha Chatham são uma raça que já traspassaram a beira do abismo da extinção, não há mais motivo para preocupar-se com o risco de traí-los.
— J. E. (MITCHELL, 2016, p. 28).

O trecho confirma e retoma (em perspectiva) a percepção de Frobisher de que o documento havia sido editado, mas não por Mitchell, fora da história, e sim por J.E., filho de Adam, que editou e publicou os diários do pai. Asegunda parte da narrativa de Ewing é apresentada e antecipada na segunda parte da história de Frobisher quando o compositor menciona ter conseguido pegar, ler e devolver a segunda parte do livro ao remetente de suas cartas, Sixsmith. O leitor fora do livro, então, prepara-se para descobrir o que foi que Frobisher leu. Fecha-se, então, esse ciclo que vinha se construindo desde o início, registro dessa interconectividade entre as histórias que ultrapassa a linha do tempo das vidas individuais e se constrói tanto para os personagens dentro do livro, a partir das ligações entre cada uma das histórias, como para nós leitores, a partir da apresentação ordenada de pequenos detalhes que vão e voltam no tempo, apresentados em momentos estratégicos para construir essa imagem de conexão entre elas. Os detalhes não estão lá por acaso, têm sua função temática.

De fato, Wood (2014) saúda Mitchell por sua prosa espetacular. Para o crítico, o autor é um esplêndido contador de histórias, com uma narrativa despretensiosa, com requintes cômicos, cheia de uma vida própria. Diz que, como leitores, sentimos que ele é capaz de fazer e nos convencer do que quisere de variados modos, mas para Wood (2014), a percepção de Mitchell como arquiteto da história demonstra o seu “querer ser deus” do mundo da obra e de seus personagens, e para ele isso é um aspecto negativo, algo que um bom romance realista não deveria ter. Eu não vejo problema nisso, pois Mitchell não subjuga as vozes dos personagens, como trabalharei melhor adiante.

É verdade que vejo Mitchell imbuindo Atlas de Nuvens com um fechamento, não necessariamente moralizante, mas tendencioso a certas conclusões metafísicas. Conseguimos ver forças que consideramos do bem e forças do mal (e às vezes forças moralmente e eticamente ambíguas), e daí é possível tirar outra fonte de desgosto para Wood, já que essa aproximação do julgamento do bem e do mal é algo condenado pelo crítico, como já mencionado antes. Entretanto, nada disso me atinge como uma característica ruim, apenas diferente, já que em momento nenhum o autor parece pretender construir um romance histórico e realista ao extremo: Mitchell escreve, por exemplo, duas das histórias num futuro distópico, e noutro momento pós-apocalíptico, o que traz características da ficção científica para a obra.

Como exemplo, uma dessas histórias é a protagonizada por Sonmi~451, garçonete geneticamente fabricada (um clone) que se insurge contra o poder da “Unanimidade”. Sua narrativa é apresentada em forma de entrevista, em que Sonmi narra ao Arquivista – seu entrevistador – a sua história:

No futuro, istoriadores que ainda nem nasceram vão lhe ser gratos pela sua cooperação, Sonmi~451. Nós, arquivistas de oje, agradecemos no presente. Nossa gratidão pode não valer muita coisa, porém vou tentar lhe conceder qualquer último pedido que você faça, se estiver dentro da esfera de influência do meu ministério. Bem, este dispositivo prateado em forma de ovo se chama rogativa. Ela vai registrar uma imagem tanto do seu rosto quanto das suas palavras. Quando terminarmos, a rogativa será arquivada no Ministério de Testamentos. Isto não é um interrogatório, repetimos, nem um julgamento. Oque importa é sua versão da verdade.
Para mim, nenhuma outra versão da verdade jamais teve importância. (MITCHELL, 2016, p. 195, destaques do autor).

Para Wood (2014), Mitchell falha na caracterização de seus personagens em The Bone Clocks por utilizar floreios na linguagem, por se mostrar demais como escritor. Para exemplificar isso, ele menciona uma cena do livro em que participa um homem de nome Crispin Hershey, cuja missão como escritor é evitar a todo custo os clichês, chegando a dizer que todo escritor deveria classificar todas as símiles e metáforas de seus textos, eliminando todas que estivessem abaixo de determinado grau. Mitchell, diz Wood (2014), estaria inserindo um comentário cômico sobre o “exibicionismo pós-flaubertiano”, sem ser capaz, no entanto, de resistir ele mesmo à tentação:

Há um momento de descrição em que Crispin, que estava a visitar uma área da Austrália marcada por atrocidades contra os Aborígenes no período colonial, reclama sobre “todas aquelas galerias suspeitas vendendo arte aborígene… é como se os alemães tivessem construído uma praça de alimentação de comida judia sobre toda Bunchenwald.” Aiofe, que estivera escutando a ele, comenta em aprovação: “encontre o escritor.” […] a frase sobre a praça de alimentação de comida judia soa muito como David Mitchell: o escritor como um construtor de frases, o cara que mantém as coisas divertidas. Fica cansativo continuar encontrando o escritor. (WOOD, 2014, s.p., tradução nossa).

Novamente, sem conhecer o livro, esse exemplo serve apenas como registro do comentário de Wood, e para uma possível comparação com David Mitchell, o construtor de frases de Atlas de Nuvens. Todo o livro é recheado de pequenos detalhes históricos (ou pseudo-históricos) demonstrando o trabalho de construção de mundo do autor. Ele mantém cadernos e mais cadernos com dados antropológicos e geográficos dos povos e lugares que utiliza em suas histórias, realiza pesquisas e coloca sorrateiramente pedaços de suas leituras da vida, mencionadas, inclusive, no final do livro, nos Agradecimentos:

Os capítulos em que aparecem Ewing e Zachry são fruto de pesquisa com o auxílio de uma bolsa de estudos da Society of Authors. A obra definitiva de Michael King sobre os morioris, A Land Apart, apresenta um relato factual da história das ilhas Chatham. Algumas cenas das cartas de Robert Frobisher foram inspiradas pela obra de Eric Fenby, Delius: As I Knew Him (Icon Books, 1966; edição original: G. Bell & Sons Ltd., 1936). O personagem Vyvyan Ayrs cita Nietzsche com mais frequência do que ele próprio admite, e o poema lido por Hester Van Zandt para Margo Roker é “Brahma”, de Ralph Waldo Emerson. (MITCHELL, 2016, p. 539).

Se, para James Wood (2014), Mitchell falha como construtor de frases, não se pode dizer que ele falha como construtor de mundo. Ainda assim, mesmo com a eventual licença autoral de se intrometer no texto, tomo o trabalho de linguagem do autor como especialmente bem-feito. Mitchell se identifica como um Wordnerd, um “nerd da palavra”, ele admite com todas as letras que escritores gostam de brincar com elas, de colecioná-las, como se colecionam selos. Mas não só isso, ele diz que isso faz com que ele trabalhe exaustivamente a linguagem que vai utilizar ao escrever (ROADSHOW FILMS, 2013). A cada história dentro de Atlas de Nuvens, David Mitchell procura moldar desde o vocabulário, ortografia e sintaxe ao gênero, tipo textual e ao personagem que fala. Vimos o exemplo de Sonmi, história futurística na qual o autor criou uma variação linguística e ortográfica hipotética, introduzindo novos vocábulos como a “rogativa” (em inglês orison), palavra que já existe, mas que é aplicada com uma variação semântica, ou alterando a ortografia, como pela ausência da letra h muda que até hoje persiste por questões etimológicas (um trabalho realizado também, portanto, pelo tradutor Paulo Henriques Britto).

A criatividade demonstrada e o jogo que Mitchell faz durante sua narrativa experimental cheia de facetas, como uma Matriosca, além de entreter, desafia o leitor a acompanhar o crescimento das histórias, alternando entre gêneros textuais, linguagem e ortografia utilizada, e entre as várias vozes dos personagens que contribuem tanto para a progressão do enredo quanto para a construção do vínculo entre leitor e obra. Vejamos mais sobre isso a seguir, agora que as considerações de e sobre Wood foram ultrapassadas.

Andante

Mencionei anteriormente que a obra de David Mitchell é inspirada na de Ítalo Calvino (1999). Explicando sua inspiração, o autor britânico disse que queria experimentar produzir uma obra que causasse um efeito diferente do de Se um viajante numa noite de inverno:

Eu achei um pouco frustrante como muitas vezes acho com narrativas pós-modernas. Elas são mais engenhosas do que amáveis e eu queria o resto da história. Então como ficaria um livro se você interrompesse a narrativa seis vezes e depois não simplesmente a deixasse para lá? “Fim”. Mas se você fosse atrás e as continuasse num movimento retrógrado. Eu só estava curioso para saber se isso funcionaria ou não. Então eu devo metade da ideia ao Sr. Calvino e se ele fosse vivo eu compraria uma cerveja, ou provavelmente uma garrafa de vinho italiano decente para ele. (SKOTTE, 2015, s.p., tradução nossa).

A frustração de Mitchell não é uma característica negativa. Ela foi, para ele, uma fagulha para sua própria criação artística. Sobre ela (a criação artística), David Mitchell conta como vem de muitos começos diferentes e que cada um deles é um “mito de criação” (SKOTTE, 2015): uma versão polida da história, uma anedota. A do romance em questão veio de Ítalo Calvino. E como leitor de Calvino, é possível entender a presença de intertextos e hipertextos em Atlas de Nuvens como uma forma de expressão autoral e de exercício narrativo de Mitchell. Aqui cabe um parêntese: para Bakhtin (MACHADO, 1995), a única forma de escrever um romance é pela polifonia, pela presença de textos dentro de textos, visão da qual Calvino é adepto. No apêndice da edição de Se um viajante numa noite de inverno, uma conferência posterior ao lançamento do livro é citada. Nela, Calvino diz que um dos objetivos de seu livro era lançar luz sobre como todo livro nasce na presença de, e no confronto com, outros livros e, como já demonstrado pelo trecho transcrito dos Agradecimentos de Mitchell, esse é um exercício que o autor realiza em Atlas de Nuvens. Os autores parecem, então, concordar em muitos pontos quanto ao estilo e estrutura experimental que adotam em seus romances.

Comparando o livro do britânico ao romance do italiano, cuja estrutura, e arrisco dizer também algumas anedotas, influenciou a prosa de Atlas de Nuvens, é possível notar aproximações e distanciamentos. A estrutura cíclica da obra inglesa funciona como um organismo, com início meio e fim que se fecham em si, ainda que as histórias ocorram paralelamente. Usei a palavra “matriosca” anteriormente, porque realmente se trata de uma narrativa dentro de uma narrativa, dentro de outra narrativa (…), e também expliquei que essa construção não parece agradar tanto a James Wood, ainda que o crítico reconheça sua validade e seu poder de entretenimento para muitas pessoas. A narrativa de Calvino (1999) também utiliza esse mecanismo de encaixamento, esse preparo, e ele explica que esse polimento (nas palavras de Mitchell, esse “mito de origem”) é uma forma válida e até necessária em obras com tal caráter “geométrico”. Em carta aberta, como resposta ao crítico Angelo Guglielmi, que falou de Se um viajante numa noite de inverno, Calvino disse:

Para você, “fazer os números baterem” é apenas uma solução conveniente, ao passo que isso pode muito bem ser visto como exercício acrobático para desafiar, e indicar, o vazio subjacente.
Em resumo, se você não tivesse omitido (ou eliminado?) da lista o “romance geométrico”, parte de suas perguntas e objeções não existiria, a começar por aquela sobre a “inconcludência”. (Você se escandaliza porque eu “concluo” e pergunta a si mesmo: “Trata-se de uma desatenção de nosso caro amigo?”. Não, pelo contrário: prestei muita atenção e calculei tudo para que o “final feliz” mais tradicional, o casamento do herói com a heroína, selasse a moldura que encerraa desordem geral.). (CALVINO, 1999, p. 192).

Coincidentemente, ou não, essa resposta poderia servir a muitos dos argumentos de Wood sobre a narrativa de Mitchell. E coincidentemente, ou não, o final de Atlas das Nuvens vem com o prenúncio do casamento entre “herói e heroína”, num tom esperançoso (depois de termos vivenciado o “fim do mundo” como ele é): um “‘final feliz’ mais tradicional”, uma moldura sólida que “encerra a desordem geral”. A engenhosidade do autor é extraordinária, mas seria “amável”? Ou também cai no problema que o próprio autor aponta nas “narrativas pós-modernas”? Defendo que, em Atlas de Nuvens, a engenhosidade funciona e contribui para a apreciação da obra e dos personagens.

Mas persiste o argumento do “exibicionismo” de Wood (2014), do qual, a meu ver, sequer Flaubert escapa. Tentar controlar até a última vírgula do seu romance é paradoxalmente buscar evitar o erudito e ao mesmo tempo exemplo máximo da vaidade intelectual. E ele está certo em ter essa ambição. Como também Mitchell teme também Calvino. Não notei um “preciosismo erudito” na linguagem empregada por Calvino (1999), mas pude observar isso em Mitchell e, algumas vezes, a interferência dele nos chama atenção demais ao fato de que aquilo é uma seleção de fatos e ideias que o autor queria que nós víssemos. O único problema disso é o ser demais. Um exemplo disso, e talvez o único que considere realmente exagerado, é a forma como David Mitchell tenta encaixar, em algumas das histórias, o “Atlas de Nuvens”. Se o termo aparece naturalmente na narrativa de Frobisher, ao nomear seu sexteto, ele aparece um pouco deslocado na autobiografia de Timothy Cavendish e mais ainda na narrativa oral traduzida em texto na última história da cronologia do livro, contada por Zachry num futuro pós-apocalíptico. Na de Cavendish o termo é introduzido da seguinte forma:

Um programa de história na BBC2 naquela tarde mostrou um filme velho de Ypres em 1919.
Aqueles destroços infernais do que outrora havia sido uma bela cidade eram o retrato da minha alma.
Três ou quatro vezes apenas na minha juventude vislumbrei as ilhas Ditosas, antes que se perdessem em meio a nevoeiros, depressões, frentes frias, ventos malévolos e marés contrárias… Tomei-as, erradamente, pela condição de adulto. Imaginando que seriam marcos fixos na viagem de minha vida, não lhes registrei a latitude, a longitude, as redondezas. Pombas, burrices da juventude. O que não daria eu agora para ter um mapa inalterável dessa inefável constante? Possuir, por assim dizer, um atlas de nuvens? (MITCHELL, 2016, p. 399).

Editor, Cavendish não parece ter muitas referências ou interesse sobre geografia ao longo do texto de sua biografia, então, ainda que antecipado pelo aparecimento do programa da BBC2 sobre Ypres, ou pelas lembranças das ilhas, não são suficientes os indícios para justificar a metáfora sobre um “Atlas de nuvens”. Conceito que ele pouco trabalha. Por outro lado, é possível justificá-lo já que, como escritor, Cavendish tem tendências ao preciosismo e exagero poético e ele poderia estar retirando essa metáfora geográfica do programa assistido. Na narrativa de Zachry, a ligação é ainda mais duvidosa, pois vem do surpreendente conhecimento que um “mero” pastor tem de ferramentas geográficas que sua pequena tribo rudimentar deveria desconhecer, já que não têm acesso a quase nenhuma tecnologia, guiando-se sempre pelo conhecimento e vivência de área e, sequer são um povo de marinheiros:

Deitado no fundo do caiaque fiquei veno as nuve. As alma travessa os tempo que nem as nuve travessa o céu, e por mais que mude a forma e a cor e o tamanho da nuve ela continua seno nuve, e as alma tamém. Quem que sabe dizer de adonde que veio a nuve ou quem que a alma vai ser amanhã? Só Sonmi o leste e o oeste e a bussa e o atlas, é, só o atlas de nuve. (MITCHELL, 2016, p. 332).

A justificativa poderia vir desse enunciado ter sido produzido após sua inserção na sociedade dos Prescientes, povo que parece ter mantido ou alcançado maiores tecnologias, momento em que ele já poderia ter conhecimento dessas ferramentas, mas ainda assim soou-me fora do personagem.

Sobre a temática das obras, já falei sobre a interconectividade das coisas na obra de Mitchell, um dos temas que ele designa como central. O outro é a predacidade, que basicamente gira em torno das diversas formas de relação de poder entre pessoas ou entre grupos sociais. As narrativas de Cavendish e Frobisher são mais associadas ao nível íntimo (as relações entre pessoas), com outras temáticas subjacentes: no caso do editor, um pouco com a relação de abandono da maior idade; no caso do pianista, com a ética social entre patrão e funcionário ou o próprio ostracismo daqueles com orientações sexuais não normativas. Todas as outras têm um enredo mais voltado aos impactos gerados por grupos de pessoas: tribos, no caso de Zachry; cor de pele, no caso de Adam; corporações e grupos econômicos poderosos no caso de Luisa Rey (que traz sutilmente a relação de opressão da mulher no ambiente de trabalho) e Sonmi. Nessa última, entretanto, se condensam todos os outros problemas, pois Sonmi é geneticamente modificada, sofrendo por ser considerada menos humana (como os escravos na história de Adam); por fazer parte de uma sociedade dominada por corporações (que o autor chama de Corpocracia) que controlam seu corpo e sua vida; e subjugam qualquer ameaça, tentando dominar cada vez mais territórios, como fazem as tribos da realidade de Zachry.

Um dos antagonistas do romance policial de Luisa Rey, inclusive a única das narrativas feita em terceira pessoa, discorre sobre poder, sendo essa a história com maior tratamento do assunto de maneira explícita:

O que é que faz com que alguns obtenham poder enquanto a maioria de seus compatriotas o perdem, usam mal ou evitam? Será vício? Riqueza? Sobrevivência? Seleção natural? Sustento que todos esses fatores são pretextos e resultados, e não constituem a causa fundamental. A única resposta possível é: ‘Não há um porquê. É a nossa natureza. ‘Quem’ e ‘o quê’ são coisas mais profundas do que ‘por quê’.” O chefe da Agência de Proteção ao Ambiente sacode-se, rindo de sua própria tirada. (MITCHELL, 2016, p. 138, destaques do autor).

Enquanto isso, anos antes, o tabelião Adam Ewing se questiona sobre a ordem das coisas, sobre a relevância da raça como critério e permissão para o domínio do homem sobre o homem:

Por que lutar contra a ordem “natural” (palavra terrível!) das cousas?
Por quê? Por isto: um belo dia, um mundo puramente predatório há deconsumir-se a si próprio. O último que se dane, e assim será até que o primeiro se torne o último. Num indivíduo, o egoísmo enfeia a alma; na espécie humana, leva à extinção. (MITCHELL, 2016, p. 538).

Como essa reflexão aparece ao final do livro, ela age tanto como um “dedo na ferida” do que acabamos de ver ocorrer no futuro (as histórias já encerradas de Zachry e Sonmi que mostram o derradeiro fim da humanidade na Terra), como um retorno ao passado de forma a fechar o ciclo que vinha sendo construído por Mitchell. Além disso, se complementa com o trecho apresentado da narrativa de Luisa, pois ratifica, ainda que por motivos diferentes, a afirmação do antagonista sobre como “quem” e “o quê” serem mais importantes do que o “porquê”. O livro de Mitchell é um livro que reflete sobre a existência humana (é a vida humana), com uma linha paradoxal de inevitabilidade e de esperança profunda. Sabemos que escolhas foram feitas pelos personagens e que elas levaram ao fim que levaram, mas nem todas foram ruins e sobre algumas podemos nos questionar “realmente foi ruim?”. Mas o que mais importa é a conexão que sentimos com os personagens, cada um em seu dilema.

Por outro lado, o tema na obra de Calvino (1999) é, nas palavras dele mesmo, uma tentativa de escrever um romance sobre o Romance, sobre o prazer de lê-los. Nele, o protagonista é o leitor, personificado no personagem Leitor, que começa a ler dez romances não chegando a terminar nenhum deles.

Calvino diz que, ao escrevê-los, tentou produzir romances “apócrifos”:

Isto é, aqueles que imagino tenham sido escritos por um autor que não sou eu e que não existe […]. Tive, portanto, de escrever o início de uma dezena de romances de autores imaginários, todos de algum modo diferentes de mim e diferentes entre si: um romance todo de desconfianças e sentimentos confusos; outro todo de sensações densas e sanguíneas; um introspectivo e simbólico; um existencial revolucionário; um cínico-brutal; um de manias obsessivas; um lógico e geométrico; um erótico-pervertido; um telúrico-primordial; um apocalíptico-alegórico. (CALVINO, 1999, p. 197).

David Mitchell também criou novos narradores para escreverem suas histórias, todos diferentes dele e diferentes entre si. Um deles, inclusive, conta sua história conversando em momentos com o leitor da obra, assim como faz o narrador de Calvino: “O Pavoroso Calvário deTimothy Cavendish, que tal? Eis um título chamativo.” (MITCHELL, 2016, p. 157). Cavendish é um editor de livros, inclusive do romance policial que conta a história de Luisa Rey, já antes apresentada. Mas, como dito, o protagonista de Se um viajante numa noite de inverno é o leitor e, além de conversar com as vozes dos autores, Calvino procurou, acima de tudo, conversar com o leitor. É assim que segue o narrador do livro, que aparece, explica a situação do leitor, guiando-o pela cena na qual ele mesmo atua: “Você vai começar a ler o novo romance de Ítalo Calvino, Se um viajantenuma noite de inverno. Relaxe. Concentre-se.” (CALVINO, 1999, p.9). Depois o deixa ler a obra que lhe foi apresentada, interrompendo a leitura em momentos estratégicos, como se a própria leitura do Leitor tivesse sido interrompida:

Um momento, olhe o número da página. Não é possível! Da página 32 você retornou à 17! O que você considerava um rebuscamento estilístico do autor não passa de erro de impressão: repetiram duas vezes as mesmas páginas. (CALVINO, 1999, p.24).

Essas interrupções de leitura calculadas também estão presentes na obra de Mitchell, assim como a construção da obra a partir das vozes de autores diversos, porém, diferentemente de Calvino, o autor britânico não conversa diretamente com o leitor fora do texto, ao invés disso, deixa que cada história interrompida tenha seu próprio narrador (e leitor interno), dando pistas apenas com a estrutura textual. As leituras interrompidas são, agora, as dos próprios personagens do livro, como a já vista de Frobisher ao descobrir que faltavam páginas no diário de Adam Ewing. Como efeito dessa alteração na forma (e até função) da interrupção, o romance tomou um ar mais sisudo do que a conversa quase íntima que Calvino (1999) tem com seu leitor, que propositalmente deixa coisas vagas e “indefinidas”.

Ambos, portanto, criam vozes e estilos diferentes dentro de uma mesma obra, não escapando nunca do dialogismo, desse posicionamento de um em relação ao outro. Ítalo Calvino (1999) dá voz ao Leitor, ao narrador (que é ao mesmo tempo ele e um recorte dele), e aos demais personagens de cada um dos romances iniciados dentro de Se um viajante numa noite de inverno. David Mitchell cria seis diferentes narradores, que também são seis diferentes leitores, e os outros personagens das histórias contadas. Seu trabalho na estruturação dessas vozes, na criação e formação da imagem de cada um desses narradores é bem executado, como tentarei demonstrar a seguir.

Adagio

Considero a construção das vozes dos personagens um ponto forte na narrativa de David Mitchell e, por isso, deixei a discussão para o final. Aqui retomo meu argumento de que Mitchell, apesar de mostrar sua própria voz no texto, não subjuga as dos personagens. É verdade que tenho críticas a algumas intervenções da voz do autor sobre a dos personagens, como já comentei e exemplifiquei anteriormente, mas aqui apresentarei argumentos para demonstrar que, mesmo com esses deslizes, somos atraídos pelos personagens e até mesmo pelo autor, que, no final das contas, apresenta sua própria ideia de ética e valores através do contraste entre as mensagens dos narradores internos e do desfecho do seu romance.

Para Bakhtin, lido aqui pelos olhos de Machado (1995), o Romance é um gênero híbrido que representa a imagem do homem a partir da linguagem que constrói discursos e enunciações. A essência da representação do ser humano pela linguagem está justamente na tensão que uma pessoa encontra ao se comunicar com outra. A interação é, em sua gênese, um jogo de posições no mundo. Nos trechos de Atlas de Nuvens apresentados anteriormente, podemos ver como a construção linguística contribui para situar os personagens no tempo e espaço e dessa maneira, estabelecer o ponto de vista deles sobre o mundo. Sendo assim, a voz de cada um deles é representada pelo seu contexto social, mas também o representa. Noutro plano narrativo, entretanto, podemos ver que o autor-criador (Mitchell) está acima de seus personagens, colocando-se como outro, afastando-se de seus personagens e, assim,permitindo que existam como vidas ficcionais: afinal, o discurso literário pode ser entendido como um discurso dentro de outro discurso.

Em Atlas de Nuvens, os personagens principais (os narradores) ocupam seus lugares como “heróis” do romance muito mais pelas reflexões ideológicas pelas quais passam do que pelo sucesso ou fracasso de suas empreitadas no mundo. E, ah! Se não há multiplicidade de visões em todas essas narrativas, eu não sei o que há. De fato, o romance termina uno, com a visão de Mitchell, a voz de Mitchell, ecoando sobre as reflexões metafísicas que propõe a partir da apresentação das vidas de seus personagens. Mas isso não invalida a experiência de cada um deles, é justamente sua multiplicidade que permite a construção una. Torcendo por ou reprovando suas ações, vemos cada personagem ter sua vida e personalidade bem definida.

Essas múltiplas vozes, essa polifonia, são construídas com o uso de múltiplas ferramentas já delineadas anteriormente: a mudança nos gêneros textuais utilizados em cada uma das seis narrativas, as escolhas linguísticas e a clara alteração da filosofia moral presentes nessas vozes. Sobre os gêneros/tipos textuais nos quais se desenvolvem cada uma das narrativas: um diário, uma coleção de cartas, um romance policial, uma autobiografia, uma entrevista gravada e um relato oral.

O diário conta a história de Adam Ewing: com força de um quase documento histórico, o diário anotado de Ewing caracteriza o tempo passado, de registros pessoais de viagens, diferente de uma postagem nas redes sociais da contemporaneidadetanto pelo meio de expressão como pela construção linguística e estrutural apresentada. Caracteriza também a formação profissional de Ewing, tabelião, preocupado com a forma e com os registros, em sua estrutura de cabeçalho, datação e notação precisa. A redação também é feita utilizando uma imitação do que seria o inglês mais antigo, e na obra traduzida o tradutor se preocupou em manter essas marcações, como no trecho mostrado anteriormente, em que “coisas” está grafado como “cousas”.

As cartas de Robert Frobisher a Sixsmith também retomam o tempo passado, inclusive datado e geograficamente localizado, já que as cartas são tipicamente marcadas por data de escritura e local no qual estava presente o remetente. Vemos logo de cara que Robert está “no estrangeiro”, na Bélgica, fugindo de seu passado. A redação da carta é genuína, com abreviações e frases em francês sem tradução, já que uma carta não apresentaria traduções de sentenças em línguas compartilhadas pelo remetente e destinatário: isso nos avisa de detalhes sobre Robert sem que ele precise nos dizer “eu sei falar francês”.

O romance policial conta a história de Luisa Rey e é o único em terceira pessoa, mas não por acaso. Luisa é uma jornalista investigativa (ainda que não acredite tanto na sua atuação profissionalno início da história). A neutralidade e objetividade são características almejadas nas redações jornalísticas, é o que dizem. Portanto, utilizando um narrador observador, a história abraça essa suposta objetividade jornalística que os textos de Luisa teriam. No texto, Luisa relembra seu pai em diversos momentos. Num deles ela se lembra dele lhe dizendo que mentiria em seus textos o tanto quanto fosse preciso para alcançar a verdade. A história de Luisa não parece ser contada por ela, afinal, é ficção (editada e publicada por Cavendish, história que a segue na cronologia). A história transformou o possível relato de Luisa Rey a alguém de sua confiança – que por sua vez transformou sua vida em literatura – em uma mentira que pode ser verdade, afinal, é a representação do homem pela linguagem.

A autobiografia de Cavendish reflete seu curso profissional como editor e escritor, além de indicar sua personalidade autocentrada, egoísta, narcisista (pelo menos no início de sua história), além do já antes mencionado preciosismo literário e sua propensão ao exagero (ao drama). As escolhas linguísticas corroboram essa ideia. Ele intitula seu livro “O Pavoroso Calvário de Tymothy Cavendish” que por duas vezes fala do tormento, do pavor, do sofrimento que foi a vida do editor, mas que não chega nem perto de se comparar ao sofrimento bíblico de Jesus.

A entrevista de Sonmi, intitulada Uma rogativa de Sonmi~451, foi uma escolha particularmente dolorosa, pois reflete o quão sem voz é a personagem na sua condição social: ela só ganha voz, só é escutada, porque alguém com poder deseja registrar aquilo e compreender melhor seu funcionamento. Sonmi é um espécime em estudo. E, inicialmente, a personagem realmente não tem voz, não passa de um clone de rotina automática e sem pensamento crítico. Mas até nisso o gênero reflete a jornada de Sonmi. A entrevista é um convite à interação e à reflexão crítica, representando a jornada filosófica pela qual Sonmi passa e, à medida que a entrevista progride, Sonmi se torna mais dona de sua voz, de sua verdade, envolvendo o seu entrevistador e alterando o ponto de vista dele sobre ela. Para situar a entrevista no tempo futuro, Mitchell inventou, como já foi dito, uma variação linguística, que pode ser observada no trecho já apresentado. A queda do h etimológico, inclusive, é uma variação perfeitamente plausível do ponto de vista linguístico.

A última história é uma narrativa oral. Bakhtin (MACHADO, 1995) e tantos outros teóricos falam sobre como a origem do romance é a narrativa oral. A voz (o som que fazemos ao falar) é o instrumento mais antigo de comunicação linguística das sociedades como entendemos hoje. Esse gênero poderia indicar o tempo passado, não fosse seu posicionamento interno no livro. Sabemos, ao lê-lo, que se trata de um futuro pós-apocalíptico. A sociedade cosmopolita sumiu, restaram apenas suas ruínas e a população humana “regrediu” ao estado tribal, em que o poder é demonstrado não por transações financeiras, mas pela força bruta. É, na sua maneira, um novo início. A comunicação voltou a ser quase que exclusivamente pela oralidade. Aqui, o gênero também auxilia o fechamento da narrativa cíclica: o fim é o começo. Quanto à reflexão da personalidade de Zachry, narrador dessa história, ela fica a cargo da linguagem carregada de marcas de oralidade, que se afasta do que temos hoje (e até no futuro de Sonmi) como “norma culta”. Essa narrativa se afasta, então, do acadêmico, aproximando-se da vida precária na “terra” que Zachry leva.

Além das escolhas de gênero e signos linguísticos utilizados, a multiplicidade de vozes e visões se expande e se confirma com personagens tão distintos entre si. Falei que eles passam por uma “jornada ética”, mas além dos tópicos de reflexão de cada um, os níveis de ética também são alterados (ética pessoal/profissional em contraste com a ética social, por exemplo). Em ordem cronológica temos um tabelião que vê sua vida ameaçada por um “homem da sociedade”, um médico, e é salvo por um escravo, causo que o faz refletir sobre a hierarquia dos homens, sobre a “ordem natural” e, por mais clichê que a sua jornada possa ser (um homem branco que descobre que negros também são homens e entra num arco de redenção), o fato é que a jornada de Ewing conduz para uma aparente elevação do espírito, já que o romance é construído com a indicação de que isso é uma coisa boa, uma coisa positiva. Depois dele, vem o pianista Frobisher, fanfarrão, boêmio, que deve dinheiro a muitas pessoas, teimoso e orgulhoso. Aqui é preciso lembrar que existe o subtema da reencarnação do livro: os personagens com uma marca específica são – como fica subentendido – a mesma alma passando no tempo como as nuvens passam no céu. Então a jornada de Frobisher pode ser vista como oscilante, já que ele briga para defender o que é seu e alcançar o que ele acredita ser a missão dele na terra: transpor sua alma na música (Sexteto Atlas de Nuvens), mas ao mesmo tempo comete atos destrutivos, e com tendências declinantes, pois, em comparação com Ewing, que aprendeu a compaixão, a necessidade de ajudar ao próximo, etc., não carrega marcas do que a sociedade considera bom para o espírito, chegando a acabar com a própria vida (e a de outrem). Aí entra Luisa, cuja jornada é a busca de si, pela busca do social. A profissão de Luisa é uma luta dela pela verdade e pelo bem comum, mas é também uma busca por si, sendo, no geral, positiva, crescente. Como ainda não dei voz a Luisa, mostro aqui um pouco sobre seu conflito interno, que ao longo da narrativa se mistura ao conflito de interesses entre a sociedade e empresários poderosos:

“Eu sinto muita falta dele, Rufus, uma coisa crônica. A toda hora esqueço que ele morreu. Fico achando que está a serviço em algum lugar, e que um dia desses vai voltar.”
“Ele devia ter orgulho de ver que você seguiu os passos dele.”
“Ah, Luisa Rey não é nenhum Lester Rey. Desperdicei anos bancando a rebelde e liberada, brincando de ser poeta e trabalhando numa livraria na rua Engels. Não convenci ninguém, minha poesia era ‘tão vazia que nem chega a ser ruim’ — palavras do Lawrence Ferlinghetti — e a livraria foi à falência. Assim,eu continuo sendo só colunista social.” Luisa esfrega os olhos cansados, pensando na última fala de Richard Ganga. “Não faço nenhuma reportagem de guerra queganhe prêmio. Fui pra Spyglass cheia de esperanças, mas até agora as fofocas maliciosas sobre festas badaladas são o mais perto que eu já cheguei da profissão do meu pai.”
“Ah, mas são fofocas maliciosas bem escritas?”
“Ah, são fofocas maliciosas muito bem escritas.”
“Então é muito cedo para lamentar que desperdiçou sua vida. Me desculpe por exibir minha experiência, mas você não faz ideia do que significa desperdiçar uma vida.” (MITCHELL, 2016, p.100-101).

Nesse diálogo vemos como Luisa duvida de si inicialmente. Ele mostra como a família lhe é importante e definidora de seu caráter (Frobisher, por exemplo, forma seu caráter em oposição à sua família). Aproveito para comentar sobre Rufus, cujo sobrenome é Sixsmith, o destinatário das cartas de Robert Frobisher, e que também passa por uma jornada em segundo plano, debatendo sua própria moralidade ao se comparar com Frobisher que morreu defendendo o que acreditava. Sonmi, por outro lado, constrói sua personalidade a partir do filme da história de Cavendish, que na época dela é recepcionado como uma história de enfrentamento da opressão e do abuso. E Zachry recebe as palavras de Sonmi como divinas e suas ações, sua moral, são guiadas pelos ensinamentos dela, que na verdade eram palavras de insurgência. Ele não conhecia a rogativa de Sonmi, ainda não a tinha visto triste e resignada com o fato de toda sua jornada não a ter levado a lugar nenhum (é o que ela pensa, por não ter alcançado seu objetivo social). No fim da vida, ela diz:

Minha narrativa terminou. Pode desligar sua rogativa prateada, Arquivista. Meu tempo é curto, e vou fazer meu último pedido.
Está bem… pode fazer.
Usar seu sony e seus códigos de acesso.
O que você quer baixar nele?
Quero terminar de assistir a um filme que comecei a ver quando, durante uma ora em minha vida, conheci a felicidade.
(MITCHELL, 2016, p.375, destaques do autor).

Um pedido singelo para encontrar conforto, um dos sentimentos que lhe faltam no início de sua jornada. No geral, sua jornada ética acaba caindo numa linha flácida, pois o pouco tempo que ela teve para vivê-la não foi suficiente para levá-la a lugar nenhum. Como leitora gostaria de dizer que houve uma curva ascendente, já que Sonmi se aproximou, ainda que pouco, do mistério do Ser. A história de Zachry, a primeira e a última a terminar, o leva numa rápida queda e um final crescente. Ele é, talvez, o que mais cai. O pastor atinge o fundo do poço ao ceder à covardia e à raiva e ver seu povo sofrer como consequência de seus atos, antes de decidir lutar contra seus instintos e andar na direção que julgava ser a certa, aceitando a ajuda de Meronym para salvar o resto de vida humana que havia no mundo. Também não me parece ser uma ocorrência aleatória, pois, na organização textual, sua narrativa corresponde ao meio do livro, desenhando uma parábola que vai do alto, ao baixo e depois ao alto novamente.

Todos esses personagens são, portanto, pessoas, mesmo que fictícias. São bem desenvolvidos e os fragmentos que nos apresenta Mitchell são capazes de formar em nós sua identidade, de transmitir sua voz.

Al fine

Atlas de Nuvens aponta vários lados da existência humana, vários conflitos, várias histórias, várias pessoas. Há uma multiplicidade de formas, de linguagens, de efeitos narrativos. Quando escreveu o livro, o autor relata, ele era jovem e corajoso, e sem muita experiência ou técnica, mas fez o livro mesmo assim, porque “queria tentar” (SKOTTE, 2015). Os deslizes que comete na sua empolgação juvenil não condenam sua obra, mas seus acertos a fazem ganhar um espaço no Atlas da Literatura. David Mitchell acertou a mistura entre estrutura e enredo no romance, e fez nascer um amável e desafiador quebra-cabeças. O Sexteto do Atlas de Nuvens traz vozes belíssimas: “piano, clarinete, violoncelo, flauta, oboé e violino, cada um com seu próprio idioma de tonalidade, escala e cor” (MITCHELL, 2016, p.474), regidas pelo maestro Mitchell, que produzem uma orquestra sonora, bem ordenada e prazerosa de se ouvir.

Referências

CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. Tradução de Nilson Moulin. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo Barroso. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

ROADSHOWFILMS. Cloud atlas (2013) david mitchell interview. [s.l.: s. n.], 2012. 1 vídeo (4min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DwaTdWUCUd4. Acesso em: maio de 2019.

LOUISIANA CHANNEL. David Mitchell interview: stories have a number of beginnings. Entrevistador: Kim Skotte. Entrevistado: David Mitchell. Dinamarca: Louisiana Channel, Louisiana Museum of Modern Art, ago. 2015 [2014]. 1 vídeo (17min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SbLNRxw3tZ8. Acesso em: maio de 2019.

MACHADO, Irene A. O romance e a voz: a prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago Editora, São Paulo: FAPESP, 1995.

MITCHELL, David. Atlas de Nuvens. 1ª ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2016. Tradução de Paulo Henriques Britto.

MITCHELL, David. Start with the map: a writer’s lessons in imaginary cartography. The New yorker, NovaYork, s.n., 13 set. 2018. Disponível em: https://www.newyorker.com/books/page-turner/start-with-the-map. Acesso em: 25 de maio de 2019.

WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Tradução de Denise Bottmann.

WOOD, James. Soul Cycle: David Mitchel’s “The Bone Clocks”. The New Yorker, Nova York, s.n., 8 set. 2014. Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2014/09/08/soul-cycle. Acesso em: 25 maio de 2019.