Há gosto de Morte

Cecília Cruz

Desço ao inferno e não te encontro aqui. Para alguém que sempre se achou rebelde, te foi dado passe-livre para cima. E de algum jeito eu que me sinto morta. 

A você, que desprezava eufemismos, darei o relatório completo:

Não parecia estar dormindo, parecia morto. O caixão foi fechado, você estava arruinado. As flores não afastaram o cheiro de morte, a maquiagem não disfarçou a ausência de vida. Nos delongamos ao teu redor. Fomos os últimos a te ver, a te ouvir. Ainda escuto teus áudios quando sinto tua falta. Tuas últimas notícias bêbadas querendo me ver dois dias depois de morrer. Deus sabe o quanto eu ainda tinha pra te contar.

Gustavo foi o último a chegar e primeiro a sair, retendo lágrimas teimosas e palavras desacreditadas. Jéssica dirigiu oito horas durante a noite com esperança de que fosse brincadeira. Eu me agarrava incrédula ao Garcia, que me abraçava e beijava a cabeça, suas lágrimas molhando meus cabelos. E chorei minha própria morte. Chorei porque um dia vou perdê-lo também, assim como todos prostrados naquela sala infeliz. Chorei por odiar tudo aquilo e por saber que você odiaria também. Odiaria o padre, a reza, a inconveniência de morrer longe dos teus pais. Todos nós atuávamos e você era a estrela daquele espetáculo cujo ator principal está ausente.

Não podia ser verdade, porque o dia estava bonito e coisas ruins não acontecem em dias bonitos. Queria abrir o caixão e expor aquela encenação, jogar aquela tampa longe como uma louca, como a única sã. Nada ali dentro era teu. Não se tratava de um funeral, mas uma sala de parto. Um novo mundo nascia. Pior, mas novo, onde eu não tenho acesso a ti, aos teus conselhos, ao teu olhar vira-lata (meu Deus, eles colaram teus olhos).

E o chegar em casa aquela noite.