MOFO
Respiro livros mofados. Minha vida mofa na estante, meus sonhos também. Tudo está estático. Respirar é um privilégio mesmo sendo o ar do mofo. Enquanto respiro penso nas orelhas de Van Gogh: Por que não as duas? Organizar a estante de livros é revisitar inquietações como essa.
O tempo em Rio Grande escorre como tinta pelas paredes. Parece uma obra de arte dizendo “Você não está sozinha!”. As paredes secam no dia de sol. Os dias são repetitivos. Imagino como seria entrar na toca do Coelho, desaparecer nas histórias e respirar novos ares. Meus dedos apontam direções diferentes, o corpo diminui, a pele muda. Quem sou Eu? Quem eu era antes de ser quem sou agora?
A umidade cresce dentro de mim. Deixei de sentir meu corpo, não me reconheço nessa escuridão solitária. Respiro livros mofados.
PEDIDOS
Nasci no dia oito de agosto, dia de São Simão, dia oficial de ouvir o barulho da chuva no escuro. Há muito tempo atrás havia um homem chamado Simão que estava num barco com seus amigos e seu senhor, Simão tinha medo do mar e da escuridão. Em uma noite o seu senhor deixou cair no mar uma caixa com uma joia preciosa chamada fé, desesperado o senhor pediu a Simão, seu fiel escudeiro, que a encontrasse. Ele procurou por um bom tempo aquela caixa e a encontrou porém, deixou a fé cair da caixa e pelas muitas águas ela se perdeu. Ainda assim, o senhor ficou orgulhoso pela atitude de Simão mesmo ele tendo perdido a fé pelo mar.
Naquele instante, o senhor disse que realizaria um desejo de Simão e ele prontamente pediu que chovesse no escuro para que nunca mais pudesse ter medo e o som da chuva pudesse mostrar o caminho da fé novamente. Desde então, comemora-se o dia de São Simão, gosto de saber o que se comemora no dia do meu aniversário, me sinto única no mundo ainda que a minha vida se pareça com a de outras mulheres adultas que sofreram o abandono do pai e foram criadas pela avó. Minha avó me ensinou a ouvir a mata, a terra e o ar, sinto tanta saudade da avó e é por esse motivo que estou retornando para
casa nesse trem junto com o céu estrelado. Volto para o meu verdadeiro lar, o qual fica à beira do rio Munduruku. Consegui a passagem para viajar às dez horas da noite, dizem que esse horário é mágico, nele o milagre da fé pode escolher alguém para visitar, justamente nesse dia estou viajando com pessoas desconhecidas contando os minutos para chegar.
Conheço apenas o maquinista que se chama Bolso, ele sempre trata pessoas negras e homossexuais com desrespeito, trabalhou vinte sete anos no meu prédio como porteiro e foi demitido por justa causa, fico com medo e desejo apenas chegar ao meu destino. Durante a madrugada não consigo dormir, fico imaginando se alguém algum dia vai encontrar novamente aquela joia, se ela realmente existiu. Fechei os olhos e pensei o que eu faria se a encontrasse, se através dela seria possível mudar algo no mundo, nas pessoas, no Bolso por exemplo. Escuto vozes de crianças gritando o meu nome, ter um nome é como receber um dom, ouço gritos de crianças pedindo ajuda, ouço a queima de matas e de papeis verdes outros amarelos, ouvi gritos de mulheres como se estivessem sendo mortas.
Quando acordei meu primeiro pensamento foi “ainda bem que era apenas um sonho”. Sinto cheiro de peixe, ouço o barulho das redes sendo atiradas ao rio para pescar me dizendo que algo grandioso estava preste a acontecer, senti esperança. No meu sonho eu ouvia raios atingindo o trem em que eu estava, o raio dizia que ele só queria arrumar o percurso porque talvez o maquinista Bolso estaria nos levando para a direção errada, os raios tinham uma aparência colorida.
Só eu e o sono pesado diante do infinito trem, só eu e a ansiedade de abraçar quem me ama. Ouço o ruído dos pingos de chuva pela janela, chove forte do lado de fora, chove mais forte do lado de dentro da memória, o som da chuva no escuro é sinal de novos caminhos e de superação, talvez fosse esse o sentimento que Simão teve naquele episódio e eu começava a ter nesse momento, talvez o meu medo passasse, esperava muito que passasse. Finalmente avistava o final da ponte, avistava a fé em algum lugar perdida pelo mar ou na porta de casa vindo me abraçar, era sonho e saudade tudo junto, tudo enrolado como passos de cegos sem guia.
Havia uma voz conhecida dentro do trem, era mais um sussurro de alguém orando, fazia tanto tempo que eu não sabia o que era orar. Não encontrava a dona da voz, a oração se tornou gritos fortes. O grito forte se tornou súplica e choro, choro de criança abandonada pelos pais, choro de esquecimento sem paz. O trem havia parado junto com o tempo na minha mente, tivemos que descer naquele início de manhã, não consegui esperar as malas, corri, corri com toda garra que havia dentro das minhas pernas.
O cheiro das brasas era real. Queimaram o vilarejo aonde nasci, arrancaram as plantações de muruci com chamas de ódio. Dentro de casa, encontrei minha avó, sem abraços, agarrada nas sementes que plantava, as mãos velhas não conseguiam mais segurar algumas sementes que caíram no chão. Eu não suportei o silêncio da despedida e da solidão. Minha vó e suas histórias se despediam de mim sem abraços, sem beijos, sem nenhum último conselho. Chorei, gritei agarrada no corpo daquela mulher tão sensível e amorosa, tão viva e tão morta. Ela estava morta, seu corpo, suas plantações e suas histórias iam com ela, apenas as sementes se salvaram. Entendi que meus sonhos não foram apenas sonhos, eram pedidos de socorro e de paz, paz para os povos originários desta terra amada e idolatra pelo capitalismo que mata.
RÁ
Hoje é um dia de sol, quero gritar para o sol que ele é um deus mentiroso. Quero gritar que o sol machuca meu rosto e faz as palavras suarem dentro de mim. O suor é externado pelo vento e pelo pavor.
O Suor de um trabalho composto de marcas tão profundas que nada pode sarar.
Uma lágrima de palavras frias a cada dia que pa ssa
Todos os dias iguais a um cartão de ônibus
Todos os dias o mesmo pa sso o mesmo esp aço o mesmo can saço O sol promete passagem que não chega
O sol prometeu chuva que não chove
O sol mentiu para governar
Sol é um Deus que mente sem fantasiar
Ele é puro e brilhante, puro e vivaz. Somente puro para suportar cada palavra de fúria vinda de trabalhadores que sofrem com o seu respingo.