Ainda em tempos de quarentena, na edição 35 da Mafuá trazemos uma conversa com Ana Cláudia de Souza, Doutora em Linguística (com foco em Psicolinguística) e professora do Departamento de Metodologia da UFSC. Ana desenvolve pesquisas sobre leitura, considerando aspectos de processamento, aprendizagem e ensino, inclusive no contexto de formação de professores.
Durante o ensino remoto emergencial ela tem orientado os estágios dos graduandos do curso de Letras – Língua Portuguesa e Literaturas na UFSC; nessa entrevista conversamos sobre as suas experiências e visões nesses diferentes ambientes.
Mafuá: Ana, com base no seu contato com o Ensino Básico e Superior durante a pandemia (mais especificamente, durante o ensino remoto emergencial), fale um pouco sobre as suas experiências.
Difícil separar o ensino de toda a situação a que, como nação e como cidadãos, estamos submetidos. Não nos bastasse um vírus suficientemente oportunista, nossos governos são tão ou mais oportunistas que o vírus. São violentos, omissos e negligentes. Se a educação formal e a escola não estão entre os serviços essenciais (e de fato não estão!), devem ser prioridade em uma sociedade que se quer inclusiva, democrática, humana e desenvolvida. Não há que se falar em justiça social, se não se investe em educação, se não se garante inclusão, acesso e permanência. O ensino remoto, neste contexto e diante de uma crise sanitária que nos obriga ao distanciamento físico (inquestionavelmente necessário), nos chegou como a única opção de manutenção ou retomada das interações com os pares e com os estudantes. Como uma medida temporária e emergencial, aceitar e assumir o ensino remoto como a possibilidade mais palpável se tornou uma necessidade. Entretanto, mais uma vez, observou-se o abismo entre a condição da universidade pública e da escola pública (salvo a federal). Se na universidade, o ensino foi suspenso por mais de 5 meses até que fosse possível analisar todo contexto, conhecer a comunidade interna e definir estratégias de modo a garantir o acesso e a segurança de todos inclusivamente, na escola pública estadual e municipal a condição foi bem diferente. Duas semanas depois da suspensão do calendário escolar, as aulas foram retomadas. Não houve estudo sobre a condição de professores, estudantes, famílias e demais profissionais. Houve a determinação do retorno. O Estado comprou a ferramenta do Google Educacional e a entregou à escola (mais adequado seria dizer que entregou a escola ao Google, o que é gravíssimo!). Para além disso, até hoje, mais de um ano e meio depois de a pandemia estar nos assolando, não se sabe onde estão os estudantes, como os professores seguem trabalhando, se há internet, se há equipamento, se há conhecimento para atuar no ensino remoto e para lidar com as ferramentas tecnológicas implicadas neste ensino. A escola tem funcionado com base na força do trabalho de equipes altamente engajadas e comprometidas, que já não sabem mais qual luta lutar, tamanhas as fragilidades, carências, riscos e ameaças que rondam todo o contexto escolar. Mas seguem lutando! No que diz respeito à minha experiência docente neste período, devo dizer que tenho aprendido muito e, a cada experiência, mais clara fica a percepção de que o ensino remoto tem seu lugar, contanto que temporariamente e somente na situação em que o ensino presencial é inviável. O ensino remoto nos trouxe ainda mais luz à importância da interação, do contato, da troca nos processos de ensino e aprendizagem, à importância do trabalho coletivo, das parcerias entre os docentes das mesmas e de distintas áreas e entre os docentes e demais profissionais da educação que atuam de modo a possibilitar o encontro dos estudantes entre si e com os demais participantes da comunidade escolar. Além disso, tornou ainda mais evidente a necessidade de se consolidarem e estreitarem as parcerias entre a universidade e a escola de educação básica pública. É importante ressaltar um importante ganho que tivemos neste período: passamos a trabalhar mais conjuntamente; passamos a conhecer melhor o trabalho do outro com quem possivelmente já trabalhávamos há anos, mas a escabrosidade de uma pandemia nos fez aproximar dos nossos pares. Se tem sido um período de muito aprendizado, tem sido um período de sobrecarga também. E não se trata de sobrecarga proveniente somente das esperadas demandas do trabalho docente. Trata-se de um excesso desmedido que envolve toda a pressão que vimos sofrendo na esfera educacional por uma volta inconsequente e mortal às salas de aula presenciais. Trata-se de ônus imputado às mulheres, que seguimos sendo as grandes responsáveis pelos lares e pela família, nos mesmos tempos e espaços em que somos solicitadas ao e pelo trabalho. Vivemos um momento em que se escancarou o total desrespeito ao trabalho docente como profissional e como prioritário na sociedade. Basta observar as exigências que nos vêm sendo imputadas para o uso do WhatsApp como uma ferramenta educacional. O mesmo WhatsApp que usamos em nossa vida íntima, para as interações pessoais, nos tempos e espaços que a nós cabe definir. Principalmente os professores da educação básica têm sido convocados a tornar público seu número de telefone pessoal, sem a menor restrição de horário, de dia da semana e de tipo de interação. Quisessem o estado e as prefeituras que essa fosse a principal ferramenta de interação entre a escola e a comunidade discente deveriam garantir um aparelho e um número para cada profissional, especificamente para uso no trabalho em horários previamente determinados. Qualquer situação diferente dessa viola normas trabalhistas, viola o direito à liberdade, desrespeita dignidade dos profissionais. Sobre a volta ao ensino presencial, desconheço professor que seja desfavorável. Queremos o ensino presencial e por ele vamos seguir lutando. Mas só aceitamos a volta ao presencial, se forem garantidas as condições de vida, segurança e trabalho, e se essas condições não forem garantidas apenas a nós, mas a todos os envolvidos com as atividades escolares, o que inclui, invariavelmente, as famílias.
Mafuá: O curso de Letras – Língua Portuguesa e Literaturas da UFSC foi afetado pelo ensino remoto emergencial assim como outros cursos; porém, na licenciatura, a experiência do estágio está tendo limitações muito mais severas do que as de outras disciplinas. Como orientadora de estágio, como você enxerga essas duas realidades?
Mesmo no ensino presencial, as disciplinas de estágio, embora constem dos projetos dos cursos de graduação como obrigatórias exatamente como as demais, têm particularidades que as colocam em um lugar muito próprio e bastante diferente do lugar de todas as demais disciplinas do currículo. É no estágio que o encontro com o campo de atuação profissional deve acontecer direta e necessariamente. No estágio, seguimos sendo UFSC, mas nos tornamos também escola. Sendo membros da UFSC, somos simultaneamente membros de um outro grupo, o que – a depender da natureza da parceria entre o docente orientador do estágio e a escola – pode significar ser considerado docente também da escola. Essa é uma das grandes riquezas e potências do estágio. Mas é também uma de suas maiores dificuldades, já que é preciso articular, planejar e executar todas as ações considerando concomitantemente os objetivos do estágio na formação docente inicial do professor e as normas de funcionamento desse estágio pela IES que o propõe, enquanto se consideram e se respeitam os objetivos da escola e dos professores (muito mais frequentemente professoras) que nos recebem e acolhem, além dos modos próprios de funcionamento e organização da escola. É uma relação complexa, que exige composição, integração, flexibilidade e parceria e um intenso e permanente diálogo sempre acompanhado de planejamento. No estágio remoto, todas essas características se mantêm. É algo de que não se pode abrir mão. Todavia, as tão necessárias interações ficam severamente prejudicadas. Há que se considerar ainda que o fato de as aulas nas escolas municipais e estaduais terem ficado suspensas por pouquíssimo tempo enquanto as nossas o ficaram por mais de cinco meses, gerou um enorme descompasso de calendário. Estava a escola no segundo semestre de 2020, quando nós retomamos o primeiro semestre de 2020 na UFSC. No início deste ano e até o mês de maio, enquanto a escola já estava no ano letivo de 2021, estávamos nós no segundo semestre de 2020. Não bastasse essa diferença, nossos semestres cruzam os recessos escolares. Tudo isso impacta diretamente as experiências de estágio. Por isso, insisto tanto na necessidade de diálogo, planejamento e sistematização. Só assim, é possível ter experiências de docência assistida no estágio que sejam significativas e relevantes tantos aos graduandos quanto aos docentes, discentes e toda a equipe escolar. Nestes três semestres de ensino remoto, minhas experiências de estágio foram muito diversas. Em 2020.1 (de setembro a dezembro), decidi permanecer na escola na qual o estágio havia sido iniciado presencialmente em março de 2020, a despeito de uma normativa da Secretaria Estadual de Educação que impedia a realização de estágios na rede enquanto perdurasse o ensino remoto. Atuamos, portanto, na EEB Professor Aníbal Nunes Pires. Essa decisão foi tomada em razão de um compromisso com a escola. Não se abandona um parceiro. Não se abandonam projetos. Não se larga a escola à sua própria sorte. Uma grande colega de trabalho e também amiga, Fabiana Giovani, veio comigo nesta proposta. Ela havia iniciado seu estágio presencial no Instituto Estadual de Educação e não encontrou condição para dar prosseguimento naquela instituição. Então, voltamos as duas à escola na qual eu havia iniciado o estágio com os meus estudantes, porque havia sido mantida interação com essa escola (professores e gestão) durante todo o período em que as aulas na universidade tinham estado suspensas e porque a escola estava solicitando que voltássemos, que participássemos das suas ações, que não os deixássemos sozinhos. O Estado abandonou as escolas. Ditou normas e ficou esperando pelo preenchimento de formulários e papel. Mas não ofereceu a menor condição e segue não oferecendo. Nossa retomada na escola de educação básica pública estadual foi possível, porque o argumento da pesquisa e da parceria prévia foi utilizado. Naquele momento, em nosso primeiro estágio remoto, tudo ainda era muito nebuloso. As inseguranças não eram apenas dos nossos estagiários. Eram também nossas. Nós tínhamos apenas algumas definições: permaneceríamos com a escola, mas não poderíamos propor regência de classe; tentaríamos atuar na potência máxima das possibilidades que nos ocorressem, num contexto para o qual tanto os nossos conhecimentos teóricos quanto os experienciais corpóreos e coletivos se mostravam lacunares e falhos. Uma outra definição que permeou previamente todo o nosso planejamento foi o propósito de acolhimento e de reconhecimento das aflições, frustrações e desejos que nossos estudantes, formandos, trariam. Nesse cenário e em acordo com a escola, definimos que trabalharíamos com produção de materiais para as disciplinas de Língua Portuguesa e Literatura do Ensino Médio e do Curso de Magistério. Assim o fizemos e, como resultado de um forte engajamento dos estagiários, conseguimos, eu com a minha turma e Fabiana com a dela, num trabalho conjunto, produzir materiais belíssimos, que extravasaram as fronteiras da escola com a qual estávamos atuando. Além disso, como uma possibilidade que surgiu justamente das faltas que compõem um estágio não presencial, pudemos explorar outros aspectos da formação dos estagiários. Mas ficou faltando a prática docente, o contato direto dos estagiários com os estudantes e com as professoras da escola. Por isso e também porque a escola já estava sob ameaça de ser forçada a retomar as atividades presenciais a despeito de nada ter sido feito para garantir o retorno com segurança, na segunda experiência de estágio não presencial (semestre 2020.2 da UFSC, que aconteceu de fevereiro a maio de 2021), decidimos todos os professores de estágio de Letras atuar colaborativamente no Colégio de Aplicação, garantindo-se aí aproximação de modos de funcionamento e possibilidade de contato direto dos estagiários com os discentes, com as professoras da escola e com a sala de aula, uma vez que estávamos todos abrigados pela mesma instituição. Foi mais uma experiência riquíssima, com intensa integração nossa às aulas na escola e com intensa integração da professora da escola, Cristiane Seimetz-Rodrigues, às nossas atividades de estágio. Novamente, os estagiários produziram materiais fantásticos e, desta vez, puderam ter alguma experiência mais direta de docência nas atividades extraclasse. Foi somente no extraclasse que eles atuaram mais diretamente, porque esbarramos na fronteira do turno do estágio. Nossas aulas eram pela manhã. As aulas da escola à tarde. Mesmo assim, foi possível acompanhar a regência da professora. Um outro ponto que inviabilizou a regência de classe foi o baixo número de aulas síncronas semanais que a professora tinha com suas turmas: apenas um encontro de uma hora por semana. Era possível mais? Na modalidade remota, não. Isso extrapolaria a condição de acompanhamento dos estudantes (pré-adolescentes, como eles preferem ser chamados) do 6º ano. Submeter os estudantes a muitas horas diárias de aulas por vídeo não é recomendado nem por questões de saúde nem pedagógicas. A terceira experiência com o estágio remoto nos chega revestida, mais uma vez, de um modo que não tínhamos antes experenciado. Algumas de nós, professoras de estágio, decidimos voltar para a escola estadual, mesmo tendo consciência de que teríamos um árduo trabalho a enfrentar fora da proteção institucional que a UFSC nos oferece. Eis que nos deparamos com um ensino remoto já assentado sobre bases ruídas. O abandono do Estado mostra a sua face mais severa. Ainda assim, a equipe de professores, gestores e demais profissionais criou condições, quase que tirando leite de pedra, para desenvolver projeto interdisciplinar, para criar parcerias internas que garantissem a sustentação da escola e das práticas docentes. Os problemas são muitos e eles não estão ligados à falta de empenho ou compromisso dos profissionais da educação. Estão, antes, ligados a um projeto de governos que não visam à justiça social, que não visam à acessibilidade e à garantia de direitos a todos os cidadãos. E aqui estamos nós, novamente, dialogando e buscando uma experiência que possa, em alguma medida, participar da formação profissional, ética e humana nossa e dos estudantes e professores com os quais trabalhamos.
Mafuá: Como pesquisadora, recentemente você tem se interessado muito na leitura, inclusive na formação do leitor, certo? Em linhas gerais, como você entende o impacto do ensino remoto nesses processos?
Venho estudando processos de leitura desde 2001, quando iniciei meu doutorado na área. Desde então, estou aprofundando e também alargando o campo de interesse e atuação em pesquisa que se constitui como multidisciplinar em sua base. Venho de uma formação linguística geral da graduação. Tive a felicidade de ter como meu grande professor um dos maiores linguistas do país, professor Eurico Back, e tive também a sorte de ter escolhido no mestrado a Fonologia como a área em que desenvolveria minha pesquisa (o que depois se mostrou de grande relevância aos estudos que segui desenvolvendo). Já atuando no ensino superior, quando iniciei o doutorado, optei pela Psicolinguística, porque encontrei neste campo os fundamentos e as ferramentas que, em minha avaliação, me possibilitariam desenvolver pesquisa com as tantas questões que me mobilizavam e seguem mobilizando: Como lemos? Como aprendemos a ler? Como processamos o estímulo textual de natureza escrita nas suas mais diversas facetas? Como reconhecemos um leitor e o que o caracteriza? Qual a relação entre processamento e desempenho em leitura? Qual o papel da leitura no desenvolvimento cognitivo? Como a leitura interage com os demais processos linguísticos, incluindo a aquisição da linguagem? Como se ensina a ler nos mais diversos níveis e contextos educacionais? Quais as implicações para a formação de leitores no contexto da surdez? Foi a vivência docente que me trouxe para a pesquisa sobre leitura (processamento, aprendizagem e ensino). Foi ter estado diante de estudantes que, já no ensino superior, me diziam que os textos nada falavam para eles. Foi também a ponderação sobre minha própria formação leitora que me mobilizou a estudar processos envolvendo o leitor e sua constituição. Entretanto, nesta longa trajetória, não lembro de ter me deparado com pesquisas e experiências de formação de leitores no ensino remoto. A ciência parece ter sido pega no encalço. Desenvolvemos teorias, métodos, modelos e perspectivas, mas não nos ocorreu que, na ausência da interação, possivelmente nada disso seria viável. Uma realidade é estar diante de um estudante, já leitor, num processo de ensino remoto. Outra realidade bastante distinta é estar diante de um estudante que se esperava que fosse leitor (embora nada se tivesse feito pra isso), tem anos de escolarização, mas não dispõe dos elementos para atuar sobre o texto e produzir os sentidos que lhe são requeridos. Ensinar a ler a distância é possível? Eu gostaria muito de responder que sim. Mas não há como escapar a uma resposta negativa, quando se levam em conta as condições. Para ensinar e aprender a ler é preciso alcançar o estudante. Onde está o estudante? Qual a condição objetiva para isso? Não há. Cabe ao Estado garantir essas condições. Isso é direito constitucional. Mas o Estado se ausenta. Os problemas que vimos enfrentando há muitas décadas no país acerca da formação de leitores não têm relação com o ensino remoto, posto serem bastante anteriores a ele. Mas o ensino remoto torna a situação ainda mais difícil, porque se perde o contato, o olho no olho, a interação, a condição de acompanhamento. Tudo isso é inegociável para ensinar e para aprender a ler. A leitura não nos é natural. Ela é fruto de tecnologia e de cultura. E é preciso a atuação da escola se se quer um país inclusivo, um país em que todos saibam ler. O ensino remoto torna tudo isso menos provável de ser implementado e garantido. Mas vê bem, com isso, não estou dizendo que é impossível. Digo que é muito difícil e que requer que as condições objetivas estejam garantidas. Quais seriam as condições objetivas? Saber onde está e quem é o estudante; conseguir chegar a ele e interagir com ele, acompanhando-o, orientando-o; possibilitar o acesso aos textos escritos, sejam livros ou outros veículos; saber ler (sim, o professor que ensina a ler deve também ser leitor); saber ensinar a ler. Vê só: se não há acesso a todos os estudantes, se não há acesso à internet, se não há equipamentos que permitam o estudo (celular não é equipamento para estudar), se não há um ambiente que permita concentração e foco de atenção, não se pode falar em ensino de leitura! Talvez consigamos atingir 5% (com sorte 10%) dos estudantes. Isso é muito pouco. Não podemos aceitar. Mas, a despeito de todas as dificuldades e da omissão do Estado, ainda acredito que é possível. Se não acreditasse, não estaria, neste momento, propondo aos meus estagiários que desenvolvessem seus projetos provocando os estudantes a lerem duas obras literárias completas! Vejo que há algumas possibilidades, mas elas requerem uma atuação cirúrgica, muitíssimo bem fundamentada, planejada e de altíssimo empenho de um grupo de profissionais (estejam eles em exercício: os professores, estejam em formação: os estagiários) para ter chance de atingir algum nível de sucesso. Digamos que o contexto de ensino remoto tem suas potências e possibilidades, mas sempre requer muito mais para resultar em bastante menos. O ensino remoto requer um leitor. Se este leitor não existe previamente, há muitas limitações a serem vencidas para participar de sua constituição. A maior parte das ferramentas de que dispomos para atuar no ensino remoto passam pela escrita. Essa experiência que estamos vivendo nos fez perceber questões que precisam ser revistas e mais detidamente tratadas no ensino presencial. Digamos que a experiência com o ensino remoto nos têm permitido avaliar nossas práticas no ensino presencial. Que utilizemos essas aprendizagens para aprimorar o ensino presencial. Dele não abrimos mão, porque uma sociedade democrática precisa disso, porque é direito, porque é fundamental. Tomando as palavras da Cristiane Seimetz-Rodrigues em uma das nossas incontáveis conversas, pode-se dizer que “a escola é muito competente em falar como as coisas devem ser (como se organizar para o estudo, como usar o Moodle, como usar o e-mail, como estudar), mas não parecer ter muita experiência em fazer junto com o estudante, mostrar na prática. Tomando a metáfora das escolas de habilitação, temos girado muito em torno da parte explicativa (teórica) da direção de um carro, e pouco na parte prática, que é de onde vêm as dúvidas, que é o que permite aprender efetivamente a dirigir.”
Mafuá: Considerando os cortes sofridos e a enorme sobrecarga de trabalho dos professores, principalmente no Ensino Básico, ficamos em alerta com a possibilidade de que o governo queira adotar alguma modalidade similar permanentemente. Na sua opinião, quais seriam os problemas atrelados a essa decisão?
Ficar em alerta não é suficiente. Transformar a educação básica em um monstrengo híbrido na direção do ensino não presencial é um projeto. Não vejo como conter este e outros projetos de aniquilamento mantendo o governo. Este tipo de projeto precisa ser arrancado com a raiz. Nada intermediário é aceitável. Felizmente, a LBD protege a educação básica presencial. É claro que é possível mudar a legislação, mas é um pouco mais difícil e não poderá ser feito tão rapidamente nem sem a compra de apoio do congresso. Os problemas atrelados a um projeto de educação básica remota seriam muitos, partindo da ameaça que isso representa à democracia. Ao contrário de atender a mais estudantes, atenderia a menos e de modo completamente precarizado. Educação básica presencial é um direito inegociável. Não podemos ceder um milímetro no que diz respeito a esse direito.
Mafuá: Por fim, você gostaria de fazer mais algum comentário, Ana?
Se me permitires, gostaria de falar de sonho, de sonho e de projeto. Espero que um dia possamos pensar os currículos dos cursos de licenciatura menos com base em interesses particulares de subáreas do conhecimento e grupos de pesquisadores e mais pensando no perfil de sujeitos que estamos formando. Definição de currículo é sempre briga política acirrada. Isso deve se manter. É importante. Mas o que mobiliza essa briga não pode seguir sendo interesses mesquinhos de poder de pequenos grupos que em nada contribuem à educação formal e profissional das pessoas a quem dizemos que dedicamos nossos tempos de trabalho. Considerando a potência do estágio das licenciaturas para a integração entre universidade e escola, trabalho para que um dia possamos ter um estágio mais incorporado à escola, assim como a escola mais incorporada à formação inicial nas licenciaturas. Isso não se alcança com estágios estanques, realizados apenas nos dois semestres finais da graduação, como é o caso da maciça maioria dos cursos de licenciatura da UFSC. Nossos estágios têm muitos pontos positivos. Um deles diz respeito à conquista da grande condição de acompanhamento e orientação que os professores e as professoras de estágio têm. Temos uma resolução que resguarda esse direito. Nossos estagiários são acompanhados de muito perto, são orientados dentro da universidade e no campo de estágio.Nós mantemos incessante interação com a escola. Isso é fundamental. Mas ainda é pouco, porque nossos estágios seguem sendo tarefeiros, excessivamente densos e curtos. Falta tempo para elaboração. Falta tempo para contemplação. Falta tempo para prática. Quanto ao ensino de modo mais amplo, espero que logo possamos voltar, com segurança, ao presencial. Precisamos disso. A educação precisa disso. E que não abramos mão de um segundo sequer do ensino presencial. Se as tecnologias estão aí ao nosso dispor, façamos uso delas, mas não nos permitamos ser usados por elas. Agradeço muitíssimo, Vinícius, por esta oportunidade de conversar contigo, por esta chance de elaborar um pouco mais esta experiência que estamos vivendo. Grande abraço, Ana Cláudia.