Espero tua (re)volta: os desafios de uma educação de resistência

Daniela Littig Endlich, Isadora Benicá Gomes

O documentário “Espero tua (re)volta”, dirigido por Eliza Capai e lançado em 2019, retrata protestos estudantis no estado de São Paulo sob a ótica de estudantes secundaristas, em especial Marcela Jesus, Lucas Penteado e Nayara Souza. Para tanto, o longa-metragem apresenta uma linha do tempo, desde 2013 a 2018, escancarando os ataques à educação e relatando as reivindicações dos movimentos estudantis frente a eles. Isso posto, à luz dos conceitos apresentados nos textos “Infancialização, ubuntu e teko porã: elementos gerais para educação e ética afroperspectivistas” (2018) e “Michel Foucault: corpos dóceis e disciplinados nas instituições escolares” (2010) será possível trazer a análise do filme “Espero tua (re)volta” (2019), entendendo esse como uma evidência viva do poder da educação e da força jovem-estudantil diante das problemáticas sócio-político educacionais e a necessidade de mudança desse cenário.

É possível afirmar que os estudantes secundaristas, mesmo que inconscientemente, têm se deixado infancializar (e não infantilizar), no sentido de que promovem sua criticidade, provocam e não admitem soluções simples e fáceis e, nesse caso, ardilosas – como fechar escolas e congelar gastos – para a instabilidade intrínseca à vida. A ética da infancialização, que pertence a filosofia do afroperspectivismo, como postulam Renato Noguera e Marcos Barreto (2018), tem como princípio incluir as crianças no debate político e realizar o convite aos adultos para que também compreendam o mundo de uma forma infancializada. Entretanto, tal ética admite que as relações não tendem ao equilíbrio. 

Em contrapartida à “infancialização”, os autores apresentam a prática da infantilização, afirmando que a pedagogia e a sociedade atual tendem a infantilizar as crianças e jovens, tornando-os e enxergando-os como seres incapazes, dependentes e, sobretudo, sem voz: 

Este conceito “infancialização” não pode ser confundido, em hipótese alguma, com infantilização. Em termos semânticos, o verbo infantilizar significa acriançar, “abebezar” e assume um sentido negativo, porque o discurso da modernidade coloca a criança como infante (NOGUERA e BARRETO, 2018, p.627, apud NARODOWSKY, 2001).

 Diariamente os jovens e as pautas defendidas por eles são infantilizados e, por conseguinte, deslegitimados. No longa-metragem, esse dilema fica ainda mais escancarado. Vê-se uma não infancialização quando os estudantes tentam dialogar com os governantes e não recebem o retorno que esperavam. O desprezo da sociedade ante os movimentos, retratado na produção, também pode ser lido como uma forma de vê-los como infantes. Em todos os momentos em que estão diante de membros da sociedade, buscando visibilidade e debate de igual para igual, são invalidados e silenciados, por exemplo quando os estudantes interrompem o trânsito e homens os agridem verbalmente alegando estarem pagando impostos muito altos, afirmando não terem relação com a situação e os mandando irem “fumar maconha”. O silenciamento também acontece de modo mais violento, como as incansáveis ameaças e truculência vindos da Polícia Militar.

No filme, observa-se a repressão forte por parte dos adultos em relação às novas ideias que as crianças/estudantes apresentam, descredibilizando e desacreditando no poder de mudança do mundo por parte delas. Percebe-se como exemplo quando os estudantes estão em uma avenida movimentada protestando por seus direitos e uma mulher, aparentemente de classe média alta, reclama por não conseguir atravessar e ir ao trabalho. Mesmo dizendo que concorda com o protesto, ela se contradiz ao pedir para não atrapalharem o trânsito. Dessa forma, ela está desvalorizando uma luta que deveria ter o apoio de toda a sociedade. Na filosofia Ubuntu, apresentada no texto “Infancialização, ubuntu e teko porã: elementos gerais para educação e ética afroperspectivistas”, o termo ubuntuwana aparece trazendo a ideia de que as crianças são inventoras de novos mundos. Renato Noguera e Marcos Barreto (2018, p.634) apresentam a citação de Maria Aparecida Bergamaschi onde ela elucida um pouco mais sobre esse ponto:

os adultos são muito atentos ao comportamento de cada criança, e esse comportamento não é questionado, mas aceito. Por isso, vê-se pouca repressão às crianças, mas um acompanhamento constante, sem julgamento moral”. Essa perspectiva de não criar determinadas expectativas no modo de agir das crianças marca a fluência das relações com os adultos. (BERGAMASCHI, 2008, p. 241). 

Dessa maneira, nota-se a nítida diferença entre a sociedade atual e a sociedade que vê as crianças como novas inventoras do mundo. Essa tem como cerne prestigiar a capacidade e o pensamento infantil e, ainda, motivá-los. Aquela, no entanto, caminha no sentido oposto, estando habituada a desvalorizar e subestimar as crianças. É essa entristecedora sociedade que retrata-se no filme, onde diversas vezes os jovens estudantes são silenciados e menosprezados pelo poder governamental e pelos próprios cidadãos. 

Como já defendido anteriormente, é evidente, na produção cinematográfica, a repressão dos órgãos estatais e da Polícia Militar frente aos atos realizados pelos estudantes e é imprescindível lançar um olhar tanto para os impactos, quanto para as razões dessa problemática. Brighente e Mesquida (2011) abordam a filosofia de Foucault para elucidar sobre essa hostil violência, afirmando que a sociedade tem como pilares sistemas cerceadores e baseados na normatização e punição dos indivíduos. Nessa perspectiva, a prática que os autores denominam como “sanção normalizadora” conduzirá o pensamento das pessoas designadas como autoridades à penalização de tudo aquilo que fugir ao padrão, fugir ao esperado e fugir ao controle. Por esse motivo, como bem retratado no longa, reivindicações radicais, tais como a dos movimentos secundaristas, suscitam os inadequados e agressivos açoites contra elas. 

Os autores ainda declaram que “a violência não precisa ser física, marcada no corpo, mas não deixa de ser uma violência psicológica em que o próprio indivíduo com receio de ser punido ou excluído, se  auto-vigia constantemente.” (BRIGHENTE e MESQUIDA, 2011, p.2393). Assim, nota-se que a opressão tem poder de abalar não só a saúde física do oprimido – nesse caso, estudantes -, mas também a mental, de modo duradouro ou permanente. Atestando isso, uma das protagonistas do filme, Marcela Jesus, relata como a violência da PM provocou ferimentos físicos, traumas e transtornos de ansiedade em sua vida.

Outra questão apresentada na obra exibe que, além de manifestarem a respeito de seus direitos educacionais, as manifestações e os congressos estudantis também eram espaços em que os jovens estudantes conseguiam se sentir livres para expressar e encontrar quem realmente são em relação a sua sexualidade. No texto de Brighente e Mesquida (2011), é apresentado que:

uma das maneiras de se interditar o corpo de um educando, é proibindo-o de expressar sua sexualidade, seu desejo de mostrar quem realmente ele é. Como se um indivíduo não pudesse saber se o que sente é realmente saudável, sendo preciso um laudo médico para apresentar um veredicto sobre sua sexualidade (BRIGHENTE e MESQUIDA, 2011, p. 2393).

Dessa forma, por conta da liberdade oferecida às pessoas, especialmente aos estudantes, muitas vezes as manifestações e encontros estudantis eram e são vistos como deturpados pela sociedade, que, há séculos, vem sendo doutrinada em fundamentos cristãos/religiosos, julgando essas ações de autoaceitação da sexualidade dos jovens estudantes como sendo ações pecaminosas e repudiadas, fomentando, então, o preconceito e a repressão agressiva motivada por ele.

Segundo Foucault (BRIGHENTE e MESQUIDA, 2011, apud FOUCAULT, 2009b), o objetivo de disciplinar as pessoas é produzir corpos úteis por meio de técnicas que distribuem os indivíduos, cada qual em seu espaço. Dessa maneira, as instituições de ensino protegem seus espaços físicos com muros e delimitam o local de educadores e educandos. Na questão das ocupações, meninos e meninas ocupavam diferentes espaços dentro dos ambientes internos da escola, integrando-se. Não havia o lugar dos educadores e nem dos educandos. Todos ali estavam em uma troca integrada de conhecimento e funções perante o contexto em que se encontravam. Assim, os meninos ocupavam lugares antes ocupados apenas por mulheres, como exemplo na cozinha e na faxina das escolas. Além disso, alunos de mesmos níveis ou níveis diferentes trocavam experiências e conhecimentos, estando todos no mesmo lugar de fala e escuta, resultando na interrelação entre todos os alunos ocupantes daquele espaço. Essa troca, por sua vez, oportunizou a intensificação de conhecimentos sociais, como feminismo e racismo, e estimulou a valorização dos seus próprios corpos, das suas próprias existências e ancestralidades.  

O filme de Eliza Capai é um aparato importantíssimo para a sociedade e, primordialmente, para graduandos e profissionais da educação, haja vista que documenta a realidade educacional brasileira e o percurso histórico dessa, marcado por diversos desafios, que corroboraram problemas que perduram até os dias atuais. Além disso, é um instrumento de extrema relevância para atestar conceitos teóricos que asseveram os impasses que perpassam a sociedade e a escola, e guia entender a educação como uma potência transformadora, como caminho de validar as propostas de intervenção e possíveis soluções para a estrutura preconceituosa da sociedade disciplinar. 

Referências

BRIGHENTE, Miriam Furlan. MESQUIDA, Peri. Michel Foucault: corpos dóceis e disciplinados nas instituições escolares. Curitiba, 2011.

ESPERO tua (re)volta. Direção de Eliza Capai. Brasil: produção de Mariana Genescá, 2019.

NOGUERA, Renato. BARRETO, Marcos. Infancialização, ubuntu e teko porã: elementos gerais para educação e ética afroperspectivistas. Rio de Janeiro, 2018.