“Não recebemos ainda, mas emprestou-nos um amigo, a fim de lermos, o poema Os Lázaros, do Sr. Dr. Generino dos Santos. Quem conhece de perto como nós esse simpático talento, não deixará por certo de alegrar-se com a notícia da publicação de um trabalho devido a pena de Generino. Infelizmente este é o primeiro trabalho seu que é impresso em livro; muitos tem ele publicado em diversos jornais, sendo o Trabalho, revista publicada há anos em Pernambuco, onde se acham reunidos maior numero. Os Lázaros mostra mais uma fase do brilhante talento que o produziu e queremos crer mesmo que hoje Generino dos Santos é um dos nossos primeiros poetas da escola realista. Artista e poeta ele sabe, como um mimo digno de Th. Gaultier, pintar as mais difíceis imagens. Nos sonetos é onde mais se revela o talento de Generino dos Santos.
Sente-se neles como que uma fina, elegante e delicada mão a esgaçar um botão de rosa sem machucar-lhe uma só de suas pétalas […]. Apareça o mais breve possível o volume que nos promete o distinto poeta, porque será um preciosíssimo presente que faz a nossa literatura, tão pobre de trabalhos dignos de apreço. Os Lázaros (poema) foi impresso na tipografia do Diário de Santos, cujo esmero no trabalho muitos elogios merece” (O Mequetrefe, 28 de agosto de 1877 – seção “Livros e Jornais”).
Muitas notas como essa, que destacavam a publicação d’”Os Lázaros”, foram publicadas nos periódicos brasileiros da época. Generino dos Santos (1848 – 1937), portanto, foi um poeta que se dizia positivista, nascido no Recife, dirigiu dois importantes periódicos pernambucanos, O Diabo-a-quatro: revista infernal (1875 a 1879) e O Trabalho (1873). Publicou em vida apenas o livro Poemas Modernos (1877), no qual está “Os Lázaros”, somando-se 11 páginas; todo o restante da sua obra, as Humaníadas, foi publicado postumamente, além de ampla publicação em periódicos brasileiros.
“Os Lázaros” é um grande poema composto por 154 versos alexandrinos que tem como temática, como o próprio título esclarece, a conhecida parábola bíblica; e foi comparado por Lopes Trovão com o Régio Saltimbanco, de Fontoura Xavier, no prefácio desse mesmo livro. O orador fluminense caracteriza o poeta “d’Os Lázaros” como alguém cuja impassibilidade seja suficiente para “cauterizar as pústulas sociais”:
Congratulo-te, pois, pelas tuas magníficas estrofes; e tanto mais porque n’elas vejo também a negação eloquente de certa poesia lareirinha e piegas, que avilta a poética nacional com umas sentimentalidades ridículas. […]. Não te acharás sozinho, porque a favor dos mesmos intuitos, labutam J. do Patrocínio, C. Ferreira, Marianno de Oliveira, G. dos Santos, Teixeira de Souza, e alguns outros bons espíritos da geração atual. Se não possuis a prodigiosa flexibilidade de inspiração do poeta das Lantejoulas; se careces do mimo que assinala o bardo d‘Os Calvários; se não conheces as sínteses deslumbrantes do cantor da Idade Acadêmica; se te falta a impassibilidade do autor dos Lázaros para cauterizar as pústulas sociais; se não manejas a arma da propaganda como o poeta positivista da Ideia […] (1877, p. VIII).
Que a ênfase colocada por Trovão na comparação entre os poetas citados gira em torno de uma poesia social, não há dúvida. Claro está que Generino faz essa crítica por meio de alegoria, melhor dizendo, ele utiliza a parábola bíblica do Lázaro leproso como representante da miséria humana para construir os seus Lázaros, que, por sua vez, adentram a cidade e são rejeitados pelo padre, pelo rei e pelos demais “lázaros irmãos sociais”. Ora, tais termos dirigem uma crítica evidente àquela sociedade em que o poeta vivia. Vejamos os versos:
Era a miséria imunda, a miséria sem nome,
Que floresce no lodo, &, à luz meridional,
Passeia a podridão, sifilítica & imoral,
Escandalosamente ao longo das estradas,
Como as fezes no esgoto & as grossas enxurradas.
Generino consegue colocar o seu leitor frente a uma miséria descrita de modo realista (coerente com o momento em que escrevia e contrário, portanto, ao Romantismo), causando-lhe alguma repulsa em maior ou menor grau. No entanto, é uma miséria que “floresce” e que “passeia” anonimamente, embora representada por pessoas. Através dessa oposição de campos semânticos, constatada por meio dos vocábulos “passeia” e “podridão” ou “floresce” e “lodo”, o poeta parece querer chamar a atenção para uma dolorosa realidade: o homem, deixando claro tanto a desumanidade dos que se afastam ou enxotam os representantes da miséria, como os próprios Lázaros que se admitem e se conformam com sua posição animalizada (são comparados a um cão).
Também em determinado momento, o eu-poético, que tudo observa e narra, evoca o “Grande-Ser” que deveria se revelar pelo altruísmo da caridade (“a mais bela expressão do social dever”) – preceitos defendidos pela filosofia positivista –, mas mesmo ela, essa caridade, parece não se importar com tal miséria. Esse é um ponto importante para Generino que, como forma de propagandear as ideias comtianas, aponta e critica a falta de altruísmo social.
Há ainda outros pontos a serem analisados nesse poema, que deixamos abertos para que o leitor o faça, toda a temática que o poeta utiliza converge para a crítica. Ademais, o que é inequívoco é o fato de Generino utilizar uma poética denunciativa com caráter prosaico bem aos moldes dos poetas “realistas”, ressaltando as ideias positivistas que já perpassam o poema como um todo. Vale sublinhar ainda a expressividade imagética criada por meio do uso dos termos científicos que ajudam a construir a atmosfera degradante e que evidencia sobremaneira uma ácida crítica social.
Voltando então à citação de Lopes Trovão, podemos afirmar que, até certo ponto, Generino dos Santos e Fontoura Xavier poderiam ser comparados quanto às críticas que faziam àquela sociedade. Entretanto, acreditamos que há características em Xavier bastante diferentes de Generino. Observemos aqui alguns fragmentos do Régio Saltimbanco, de Fontoura Xavier:
[…]
Silêncio! Fez-se ouvir o ultimo sinal!
« À cena, ergueu-se a claque, o artista imperial! »E o grande saltimbanco, entusiasmado, ufano,
Não quis que o esperasse o aplauso do romano…Oh quadro deslumbrante e digno do porvir!
Logo ao saltar em cena o artista a se esgrimir
Um pasmo convulsivo estremeceu as almas
E fê-las rebentar n’uma explosão de palmas.
O sábio, respirando indômito ovações,
Achava em si um que dos magros histriões,
Mas tanto lhe soara o grito do sucesso
Que ao cabo imaginou-se um Ursos-rei professo,
E a sede de mais gloria e a sôfrega ambição
Fizeram-lhe anunciar ao mundo outra função!
[…]
Mas hoje o imperador tem outras ambições.
Não desce a digladiar com tigres e leões,
Nem arroja o seu nome ao nada, ao vilipendio
Com Roma ao crepitar fantástico do incêndio…
P’ra dar o nome a um sec’lo, a um povo, a ua nação
Atira-se a uma praça e sagra-se histrião!
E’ outro o Coliseu: mais vasto e mais fecundo
Tem Roma por cenário e por plateia o mundo.
E’ mais variada a festa. A um tempo o imperador
E’ sábio, poliglota, artista e professor,
Acróbata, truão, frascário, rei e mestre,
D. Juan, Robert, Falstaff e Benoiton equestre.
(XAVIER, 1877, p. 2 -3).
Era 1877 e o Brasil estava em campanha republicana. O Régio Saltimbanco foi publicado apenas em opúsculo, por não haver, talvez, espaço para esse tipo de crítica nos periódicos, pois o poeta se refere ao imperador como “Don Juan”, “truão”, “frascário” e “saltimbanco”. Aos olhos de Lopes Trovão, a ausência do poema de Fontoura Xavier nos jornais da época é assim justificada: “Sobre esta razão acresce que um saltimbanco precisa de espaço vasto e desassombrado para se entregar às fluas habilidades do próprio ofício. […] Bem andou a imprensa, portanto, recusando publicidade a tua formosa e enérgica poesia” (1877, p. 3-4).
O Régio Saltimbanco é um poema satírico que alegoriza o Brasil e seu imperador (D. Pedro II) e que, também em alexandrinos, pode ser comparado com “Os Lázaros” de Generino em questões métricas e na temática da crítica social. Entretanto, no poema de Generino aparece um gérmen da tônica positivista e nenhuma sátira, ou seja, muito ao contrário, esses versos chamam a atenção para o drama como forma de exteriorizar as mazelas sociais. Contudo, Lopes Trovão coloca esses dois poetas (e também outros que aparecem em citação acima) no mesmo patamar, por crer numa poesia cuja caracterização se dá pela fusão do realismo e do romantismo, porque encerra a “fria observação de Baudelaire e as surpreendentes deduções do velho mestre V. Hugo” (1877, p. 8).
Boa leitura!
Referências bibliográficas
BORGES, Isabela Melim. Do positivismo ao esoterismo: uma outra leitura da poesia brasileira na virada do século. 2020. Tese de doutorado em Literatura pelo PPGLIT/UFSC. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/215815 Acesso em: 17/06/2021.
XAVIER, Fontoura. O régio saltimbanco. São Paulo: Casa Garraux, 1877. Disponível em: https://literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=43098 Acesso em: 17/06/2021.