RESUMO: Neste artigo, investiga-se A paixão segundo G.H. (1964), de Clarice Lispector, elaborando-se uma discussão sobre a criação como experimentação da corporalidade no mundo e as consequências sociopolíticas daí advindas, propondo uma contraposição às noções tradicionais de criatividade como sublimação espiritual em que a relação com o corpo e a concretude dá-se em termos de rebaixamento. Partimos da leitura crítica de alguns estudos de Antonio Candido sobre a intelectualidade da criação literária e sua capacidade humanizadora. O objetivo, perpassando teóricos como Jacques Derrida e Brian Massumi, é a proposição de outras possibilidades de funcionamento e recepção da literatura que valorizem a potência transformacional em lugar da “humanização”.
PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector; Antonio Candido; corporalidade; humanização; transindividualidade.
ABSTRACT: In this article, we investigate A paixão segundo G.H. (1964), by Clarice Lispector, elaborating a discussion on creation as an experimentation of corporeality in the world and its resulting sociopolitical consequences, proposing a contrast to traditional notions of creativity as a spiritual sublimation in which the relationship with the body and concreteness happens in terms of relegation. We start from the critical reading of some studies by Antonio Candido on the intellectuality of literary creation and its humanizing capacity. The objective, passing through theorists such as Jacques Derrida and Brian Massumi, is to propose other possibilities of functioning and reception of literature that value the transformational potency instead of “humanization”.
KEYWORDS: Clarice Lispector; Antonio Candido; corporeality; humanization; transindividuality.
Em Estímulos da criação literária (1965) e Os parceiros do Rio Bonito (1964), trabalhos cuja publicação é coetânea a Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector (1964), Antonio Candido relaciona o grau de elaboração da literatura às necessidades e emoções que cada ser humano experimenta ou deixa de experimentar dependendo de seu meio social. A sustentação de seus argumentos se dá na suposição de que se uma sociedade tem pouco desenvolvimento tecnológico, a comida será escassa e a fome será fonte de permanente angústia, de modo que essa fome é o sentimento que estará mais presente na mente de todos e, portanto, aparecerá manifestada diretamente na literatura (ou seja, na literatura primitiva e rústica, segundo os termos do autor). Como vemos especialmente n’Os parceiros do Rio Bonito, pelo fato de as sociedades caipiras e indígenas não serem industrializadas, as pessoas têm mais contato direto com a produção do alimento e, assim, com toda a natureza. Essa proximidade entre ser humano e natureza causaria uma dependência do intelecto em relação à concretude e ao meio físico, o que acabaria comprometendo a universalidade da literatura, restringindo as produções do espírito, ou seja, impedindo a plena humanização do ser (que viria a ser tão defendida por Candido em A literatura e a formação do homem (1972) e O direito à literatura (1988)). O considerado civilizado, por sua vez, produziria uma literatura mais refinada, pois já teria aprendido a dominar a natureza; “distanciando-se” dela, seu pensamento não estaria mais preso à fome, às florestas, ao gado e aos rios; poderia flutuar para longe do meio material e alcançar maior espaço para a subjetividade, as coisas abstratas, a transcendência estética.[1]
Para Candido, tal literatura de qualidade elevada, própria do meio urbano, da cultura letrada, é produzida e consumida por uma classe extremamente restrita e privilegiada da sociedade, que não está ligada ao trabalho braçal e não tem contato com a pobreza e com a fome. Estariam então todas as produções artísticas das periferias e de todos brasileiros que têm seus direitos negados rebaixadas à condição de pouca qualidade, de “nível inferior”? O que define esta qualidade da literatura buscada incessantemente? Será o antigo conceito de ócio produtivo? Mas, se pensarmos os estímulos da criação literária para além do binarismo entre realidade corporal e realidade espiritual, que embasa a dinâmica proposta por Candido, qual seria, afinal, a fonte da criatividade?
Em O que os animais nos ensinam sobre política (2017), Brian Massumi propõe que, para infortúnio de nosso narcisismo, a criatividade pode não ser uma característica propriamente humana, mas de toda a natureza. Esta funcionaria justamente a partir do desvio da universalidade em busca de sua antagonista: a imprevisibilidade da diferença. Pois se a própria evolução das espécies de Darwin se dá através de mutações da norma padrão que acontecem ao acaso, a própria literatura seria uma potencialização do movimento constante e intrínseco da natureza de sair da forma através da exploração das possibilidades da corporalidade.
A força do gesto lúdico é uma força de passagem que induz uma mudança qualitativa na natureza da situação. Dois indivíduos são arrebatados de uma só vez, mas sem mudar de local, por uma força instantânea de transformação. São absorvidos por uma transformação-in-loco que não afeta um sem afetar o outro. O gesto lúdico libera uma força de transformação transindividual. (MASSUMI, 2017, p. 17)
O gesto lúdico que representa a corporalidade como transgressão e semente da criatividade teria como componente, além da criação de novas formas, a quebra das barreiras individuais. A transgressão das formas dadas acontece também no âmbito da vivência em sociedade: as barreiras do indivíduo se quebram e agora há fluidez entre eles. A criatividade instintiva colocada em prática, segundo Massumi, acarreta necessariamente numa capacidade dos indivíduos de transitar entre diferentes pontos de vista. Deste modo, é apresentada uma contrapartida em relação à concepção de Antonio Candido da criatividade das “altas civilizações” e dos seres humanos “cultos” que surge da individualidade e do desprendimento (ou elevação) em relação ao meio imediato. Agora temos a quebra da individualidade, não só como participante, mas como constituinte indispensável da capacidade criativa, além da participação do corpo e da exploração das sensações e do mundo material nesse processo, desmontando o argumento da capacidade criativa como aspecto essencialmente espiritual que evolui através do rebaixamento do corpo e da matéria. Essas características da criatividade do que é vivo podem ser encontradas amplamente na obra de Clarice Lispector, como sugere Marília Librandi-Rocha em Escritas de ouvido na literatura brasileira (2015), o texto de Clarice “busca imprimir rítmica e onomato-poeticamente o que está atrás do pensamento (título anterior do livro Água-viva), ou o que está aquém ou além da linguagem, como as sensações, pulsações, reverberações e timbres” (LIBRANDI-ROCHA, 2015, p. 137).
Aqui, considero que a expressão “escrita de ouvido”, que Librandi-Rocha remete principalmente a Clarice Lispector e Guimarães Rosa pode ser ampliada, sendo esse “de ouvido” algo além do sentido da audição, um estado peculiar de recepção do escritor em relação ao mundo e aos outros seres, humanos e não humanos – lembrando aqui, principalmente, do conto de Rosa, “Meu tio o Iauaretê”. Como um processo de desprendimento, abertura de si para a captação da experiência alheia, da vida outra. Analisando algumas expressões da nossa língua, Librandi-Rocha esclarece que “aprender língua ou música ‘de ouvido’ é um processo de imersão mais do que de leitura e estudos prévios, é sobre ‘acerto e erro’” (LIBRANDI-ROCHA, 2015, p. 138). Esse “de ouvido” seria então o ato de desapego do pensamento já determinado, uma entrega de si mesmo à intuição, à procura do erro – como também defende Massumi – para que se criem novos caminhos. Encontramos esse aproveitamento do erro na intuição e na criação em A paixão segundo G.H.:
E não me esquecer, ao começar o trabalho, de me preparar para errar. Não esquecer que o erro muitas vezes se havia tornado o meu caminho. Todas as vezes em que não dava certo o que eu pensava ou sentia – é que se fazia enfim uma brecha, e, se antes eu tivesse tido coragem, já teria entrado por ela.Mas eu sempre tivera medo de delírio e erro. Meu erro, no entanto, devia ser o caminho de uma verdade: pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo. Se a “verdade” fosse aquilo que posso entender – terminaria sendo apenas uma verdade pequena, do meu tamanho. (LISPECTOR, 1988, p. 109-110)
Percebemos que esse erro, desvio das verdades estabelecidas, do confortável campo de tudo o que já é conhecido e das definições estáticas, é o que permite ao escritor, ao artista, alcançar a intuição que capta os sentidos dos outros seres – vemos que a palavra “sentido” aqui assume simultaneamente seus dois significados: tanto sentido do corpo percebendo outro corpo (sensação) quanto o sentido abstrato, o que se encontra por trás das palavras (significado). Segundo Hampâté Bâ,
a fala é, portanto, considerada como a materialização, ou a exteriorização, das vibrações das forças. Assinalemos, entretanto, que, neste nível, os termos “falar” e “escutar” referem-se a realidades muito mais amplas do que as que normalmente lhes atribuímos. De fato, diz-se que: “Quando Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala”. Trata -se de uma percepção total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na totalidade. (…)Do mesmo modo, sendo a fala a exteriorização das vibrações das forças, toda manifestação de uma só força, seja qual for a forma que assuma, deve ser considerada como sua fala. É por isso que no universo tudo fala: tudo é fala que ganhou corpo e forma. (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 172)
Podemos pensar aqui, junto às ideias de Hampâté Bâ e de Librandi-Rocha, aquelas estudadas por Eduardo Viveiros de Castro (2017) e defendidas por Davi Kopenawa Yanomami (2015) sobre diversos coletivos indígenas da América Latina que têm em comum o reconhecimento dos outros seres como sujeitos – tão sujeitos quanto os humanos – numa ontologia na qual tudo o que existe exala, de seu lugar, um tipo de força e de pulsação que merece ser ouvida, entendida, experimentada. Em A paixão segundo G.H., a personagem passa por uma experiência involuntária que a leva a entender esse tipo diferente de conhecimento que ouve e experimenta os seres não-humanos, que dá importância ao que estes comunicam através do corpo e ao que têm a dizer sobre sua própria perspectiva, sobre as experiências que advêm do lugar que ocupam e que os humanos jamais poderiam entender através da razão logocentrista tradicional[2]: “O mundo se me olha. Tudo olha para tudo, tudo vive o outro; neste deserto as coisas sabem as coisas.” (LISPECTOR, 1988, p. 66).
O conceito de “intuição” que Bergson apresenta em Introdução à Metafísica (1903), desenvolvido posteriormente por Eduardo Soares Ribeiro, em Bergson e a intuição como método na filosofia (2013), mantém afinidade com a “escrita de ouvido” de Librandi-Rocha:
A intuição, para Bergson, é a coincidência com o objeto estudado, o simpatizar-se com as coisas, é o abster-se por um momento da separação entre sujeito e objeto para apreender o que é o objeto, nele mesmo, sem intervenção da linguagem, dos conceitos ou dos símbolos, imergindo, assim, na duração real. (RIBEIRO, 2013, p. 102)
Aí podem se interseccionar as ideias de Librandi-Rocha, Brian Massumi e Hampâté Bâ, na medida em que a experimentação do lugar do outro se faz presente com a quebra das barreiras do indivíduo por meio da intuição que, em A paixão segundo G.H., liga-se à criatividade:
Era isso era isso então. É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda. Em derrocada difícil, abriam-se dentro de mim passagens duras e estreitas. Olhei-a, à barata: eu a odiava tanto que passava para o seu lado, solidária com ela, pois não suportaria ficar sozinha com minha agressão. (LISPECTOR, 1988, p. 57)
No entanto, existe um empecilho encontrado entre a intuição – o estado ímpar de receptividade em relação ao mundo, abertura de passagens entre individualidade e alteridade – e a criatividade literária. Esse empecilho seria a própria natureza da linguagem humana, uma vez que esta carrega o aspecto da imobilização, do encarceramento dos seres dentro de conceitos que são, por essência, generalizantes e mutiladores das particularidades de cada ser e de cada sensação. A solução que Bergson propõe para o problema da comunicação da intuição seria, então, justamente uma quebra da linguagem: a metáfora, levando em conta que esta acontece através do desordenamento das formas e conteúdos, pelo desvio dos sentidos originais, assim subvertendo o aspecto mutilador da linguagem denotativa:
No entanto, será necessário criar uma nova linguagem, imbuída o máximo possível de aspectos da própria duração, qual sejam, o movimento e o fluxo. Os conceitos advindos dessa proposta não serão aqueles mesmos que seriam elaborados a partir de noções unívocas, espaciais e matemáticas, mas serão criados imageticamente, direcionados metaforicamente. (RIBEIRO, 2013. p. 106)
Esse problema da violência da linguagem humana e sua impossibilidade de comunicar as sensações e emoções únicas de cada ser é explorado de forma recorrente na obra de Lispector. Jacques Derrida, tanto em O animal que logo sou (2002) quanto em Gramatologia (2011), explora a relação entre o ato de nomear os seres e o impulso de dominação sobre estes: nomear é colocar sob controle, submeter a natureza ao controle do humano. Lembremos que Candido, em O direito à literatura, considera a palavra um elemento “ordenador” do mundo, sendo o humano “culto” aquele que detém o poder de ordená-lo. A literatura, por sua vez, será valorizada pelo estudioso por sua suposta capacidade de promover ordenação mental[3]. Considerando, porém, os comentários de Soares Ribeiro sobre a noção bergsoniana de “intuição”, a exasperação da linguagem que acontece na literatura trabalharia então a favor de uma desorganização da ordem habitual mantida pelas próprias palavras e classificações humanas; daí a importância da metáfora e dos jogos de linguagem, como se a linguagem na literatura se voltasse contra si mesma, ou desse a volta sobre si mesma, desafiando suas próprias formas.
Com essa exasperação da linguagem, flerte com seu abismo, alcança-se o que a intuição capta do mundo e quer expressar: a vida do outro, o movimento e o choque entre os seres da natureza, o trânsito entre as perspectivas, a imprevisibilidade, o ato de se aventurar nos limites entre a individualidade e a alteridade. Como discorre Luiz Costa Lima em Dispersa demanda (1981),
O próprio da mímesis consiste em, através de um uso especial da linguagem, fingir-se outro, experimentar-se como outro ou ainda usar a linguagem, não como meio de informação, mas como espaço de transformações, cumpridas não em função de um referente a que descreveria, mas possibilitadas pela própria ideação verbalmente formulada […] Este abrir-se para a alteridade, pelo eu fingido do personagem e/ou pela transformação da linguagem, exige, por parte do receptor, uma transposição de molduras a que está habituado[…]. (COSTA LIMA, 1981, p. 230)
Podemos traçar uma relação entre a criatividade e a curiosidade, na medida em que esta impulsiona o ser numa busca pelo diferente, o desconhecido, os diferentes mundos escondidos que se encontram na perspectiva do outro – como diz G.H., “toda vida é uma missão secreta” (LISPECTOR, 1988, p. 49). Segundo Viveiros de Castro (A inconstância da alma selvagem, 2017), essa seria a principal diferença entre o perspectivismo e o relativismo: em certos coletivos indígenas da América não haveria mais apenas um mundo, visto de várias perspectivas diferentes (relativismo), mas as perspectivas criam cada uma o seu próprio mundo ao redor, formando um multinaturalismo, um caleidoscópio cosmológico. Dessa forma, a literatura que vislumbramos aqui seria justamente uma ferramenta de trânsito entre os diferentes mundos, criados a partir de diferentes perspectivas; daí a relação entre a criatividade e a curiosidade: entregar-se à missão secreta de descobrir novos mundos, que se encontram acobertados pelo misterioso véu da alteridade.[4]
Derrida, em O animal que logo sou (2002), reflete sobre uma passagem da Bíblia que mantém a mesma expressão em diferentes traduções:
Tradução de Chouraqui: “Ele os faz vir até o homem da gleba para ver o que este lhes apregoará”.
Tradução de Dhormes: “Ele os leva até o homem para ver como ele os chamará”
Esse “para ver”, que acabo de sublinhar duas vezes, parece prodigioso. É a mesma expressão nas duas traduções. Deus deixa Isch completamente só, seguramente, e isso é ao mesmo tempo sua soberania e sua solidão, a liberdade de nomear os animais. Todavia, tudo parece se passar como se ele, Deus, quisesse ao mesmo tempo vigiar, velar, guardar seu direito de olhar sobre os nomes que iriam ressoar – mas também abandonar-se à curiosidade, e mesmo deixar-se surpreender e ultrapassar pela novidade radical do que iria acontecer, pelo evento irreversível, bem-vindo ou não, de uma nominação – pela qual aliás Isch, Isch completamente só, Isch ainda sem mulher, ia ganhar ascendência sobre os animais. (DERRIDA, 2002. p. 38)
É interessante a análise que o autor faz sobre essa pequena expressão “para ver”, que acaba sendo muito reveladora. De fato, há uma lacuna na onisciência de Deus. Há algo ainda para ver, para descobrir, e esse algo tem a ver com o que a linguagem pode vir a criar. Deus escolhe conceder o poder de criação ao humano – de criação de nomes e, portanto, de criação de seres, de classificações e de tudo o que pode devir a palavra. Deus divide seu poder, sacrifica sua onisciência em nome da curiosidade. O que pode o ser humano criar? Como seria uma criação que não viesse de mim mesmo? Pode pensar Deus nesta passagem da Bíblia. Percebemos aqui a íntima ligação entre curiosidade e criatividade. Talvez a maior curiosidade não diga respeito àquilo que existe escondido de nós e nem àquilo que nos é exterior; mas ao que ainda não existe, ao que ainda podemos criar em conjunto com o outro. Essa curiosidade se dá numa instância transindividual, na medida em que nos impulsiona aos limites do “eu” para que possamos surpreender a nós mesmos com o que criamos quando postos em contato com o desconhecido.
Interligada à corporalidade, à curiosidade e à transindividualidade, há importante presença da memória na obra estudada. Além de causar em G.H. a provocação em relação a um novo modo de perceber o mundo e a natureza, o encontro com a barata leva a personagem a uma viagem temporal, a um momento pré-histórico, pré-cultural. Como discorre Silviano Santiago em Bestiário: “No ‘destino’ de mão dupla percorrido pelas formas de metamorfose do humano em animal e do animal em humano – os seres caminham em direção ao futuro, remontando ao passado mais remoto” (SANTIAGO, 2004, p. 195). Essa aventura da viagem no tempo ao momento da gênese através dos animais é também sugerida por Derrida, em O animal que logo sou (2002), quando discorre sobre a experiência de olhar nos olhos de um gato – olhar com uma sensibilidade outra – que traz um conhecimento ímpar por meio da desumanização:
Há muito tempo, é como se o gato se lembrasse, como se ele me lembrasse, sem dizer uma só palavra, o relato terrível da Gênese. Quem nasceu primeiro, antes dos nomes? Quem viu chegar o outro em seu território, há muito tempo? Quem terá sido o primeiro ocupante, e, portanto, o senhor? O sujeito? Quem continua, há muito tempo, sendo o déspota? (DERRIDA, 2002, p. 39)
A sugestão é que os animais nos falam – tomando aqui o verbo “falar” pela concepção mais ampla trazida por Hampâté Bâ (2013) – sobre a memória. Tanto a memória da gênese quanto a memória da opressão. Derrida nos propõe que os olhos silenciosos dos animais nos perguntam, ou nos fazem perguntar a nós mesmos: quem foi o primeiro ocupante, que colocou os outros seres no lugar de “outros”? Como surgiu a ideia de sujeito, em detrimento dos não-sujeitos, aqueles que devem ser dominados? Qual foi o parâmetro usado para definir a subjetividade dos seres e por que ele é tido como verdade absoluta? Além disso, os olhos silenciosos – da gata de Derrida, da barata no quarto de G.H. – nos falam sobre o passado nu da natureza, seu estado de fluidez e o abismo nos limites do humano que não pode ser descrito por palavras e, entretanto, pelo que estamos propondo aqui, faz parte das origens da ficção.
Desse modo, reconhecemos também a literatura aqui investigada como uma manifestação da nostalgia em relação a esse tempo longínquo, inumano, livre das classificações e hierarquias; numa subversão da linguagem denotativa, a escritora busca, ironicamente, uma instância silenciosa do mundo, como se tentasse libertar os significados dos significantes que, ao longo dos séculos, passaram a funcionar como grades. Em Água-viva (1980), tanto quanto em A paixão segundo G.H., faz-se muito presente essa nostalgia: “Não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia. Eles às vezes clamam do longe muitas gerações e eu não posso responder senão ficando inquieta. É o chamado” (LISPECTOR, 1998, p. 49). Esse chamado é como uma presentificação do passado e da memória na literatura através da intuição e da percepção dos outros seres pelo corpo e pela sensação – lembrando da relação traçada por Bergson (1896) entre a memória e a percepção –, tão explorados em A paixão segundo G.H.:
O quarto me incomodava fisicamente como se no ar ainda tivesse até agora permanecido o som do riscar do carvão seco na cal seca. O som inaudível do quarto era como o de uma agulha rodando no disco quando a faixa de música já acabou. Um chiado neutro de coisa, era o que fazia a matéria de seu silêncio. Carvão e unha se juntando, carvão e unha, tranquila e compacta raiva daquela mulher que era a representante de um silêncio como se representasse um país estrangeiro, a rainha africana. E que ali dentro de minha casa se alojara, a estrangeira, a inimiga indiferente. (LISPECTOR, 1988, p. 43)
A secura, a aspereza e o chiado surdo que parece entrar não só pelos ouvidos, mas pelo corpo inteiro, a sensação do carvão incrustando-se nas unhas; tudo isso atinge fisicamente tanto a personagem quanto o leitor; como se G.H. tivesse agora não só um novo olhar sobre sua identidade e a do outro, mas também uma nova vivência sobre o próprio corpo. Janair, agora uma rainha africana, instaura algo estranho, poderoso e divino que causa novas sensações no corpo de G.H., como se, dessa vez, a escultora G.H. se tornasse o objeto a ser esculpido, a ter sua forma mudada pelo outro. Deste modo, a presença-ausência de Janair revela o aspecto de insubmissão trazido tanto pela memória do momento anterior à hierarquização dos seres quanto pela exasperação da linguagem na literatura que desobedece suas formas tradicionais, reesculpindo a linguagem, as imagens, a ex-patroa e seu apartamento – sua propriedade privada.
Já estava havendo então, e eu ainda não sabia, os primeiros sinais em mim do desabamento de cavernas calcáreas subterrâneas, que ruíam sob o peso de camadas arqueológicas estratificadas – e o peso do primeiro desabamento abaixava os cantos de minha boca, me deixava de braços caídos. O que me acontecia? (…) De início eu fora rejeitada pela visão de uma nudez tão forte como a de uma miragem; pois não fora a miragem de um oásis que eu tivera, mas a miragem de um deserto. Depois eu fora imobilizada pela mensagem dura na parede: as figuras de mão espalmada haviam sido um dos sucessivos vigias à entrada do sarcófago. E agora eu entendia que a barata e Janair eram os verdadeiros habitantes do quarto. (LISPECTOR, 1988, p. 45-49)
G.H. evoca ao longo de todo o livro diversos termos arqueológicos e que remontam à antiguidade pré-histórica. A sensação é a de todo um mundo silencioso e inexpressivo de fósseis soterrados que de repente irrompe vivo em meio à modernidade, enquanto esta é soterrada em seu lugar. A eclosão desse antigo mundo que volta à vida traz consigo a insurreição dos seres oprimidos no mundo moderno, que agora está sendo demolido. Lembrando da relação que Luiz Costa Lima traça entre mímesis e miragem em Representação social e mímesis (1981), ou seja, da literatura como desordenadora das representações sociais, impulsionando-nos para fora do sistema hierarquizante e nos colocando numa perspectiva de estranhamento; podemos construir uma teia que liga essa miragem-impulso para fora de nosso lugar, a memória ressuscitada dos seres que viviam antes da estratificação social antropocêntrica e sua nominação – representados pela barata –, e a insurreição de grupos e individualidades oprimidas no presente – representados por Janair. Todo esse conjunto de ideias-sensações interligadas: miragem, memória, insurreição; culmina na tomada de poder do lugar – o substantivo “lugar”, aqui, tendo forte significado, carregando consigo a perspectiva e a expressão – pelos seres antes oprimidos e rebaixados, que agora são os verdadeiros habitantes do quarto, o que se supõe que coloque G.H. na posição de falsa habitante ou, no mínimo, “habitante” entre aspas. Essa miragem, inclusive, é representada pela metamorfose do quarto da empregada num minarete, ou seja, há uma desorganização das estratificações sociais na qual o lugar da empregada torna-se o mais alto, o lugar de onde tudo é visto, como um lugar de onisciência:
Ali, pelo oco criado, concentrava-se agora a reverberação das telhas, dos terraços de cimento, das antenas eretas de todos os edifícios vizinhos, e do reflexo de mil vidraças de prédios. O quarto parecia estar em nível incomparavelmente acima do próprio apartamento. Como um minarete. Começara então a minha primeira impressão de minarete, solto acima de uma extensão ilimitada. Dessa impressão eu só percebia por enquanto meu desagrado físico. (LISPECTOR, 1988, p. 38)
Surge aqui a evocação de uma instância mística da experiência de G.H., sendo o minarete no islamismo a alta torre de onde o almuadem convoca os fiéis muçulmanos para as cinco preces diárias. Quem fica no minarete é um encarregado e também a pessoa que serve de conexão entre todas as outras no momento das preces, é quem fica em cima e no meio, é a amálgama dos fiéis. G.H. não gosta desta percepção do quarto da empregada como o lugar mais destacado e à parte em relação ao apartamento e a todo o prédio. O desconforto de assistir a ordem social sendo subvertida se faz presente durante a maior parte do livro. E, principalmente, além de lugar superior e destacado, o minarete é o lugar de convocação, como se algo ou alguém ali chamasse a protagonista para a experiência mística de desmonte e exploração da vida livre de representações. Percebemos que, por essa perspectiva, misticismo e política podem compor juntos uma só ideia. A narrativa toda depende desta convocação que surge do lugar da empregada, também trazida através dos desenhos de Janair na parede do quarto: um homem, uma mulher e um cão; todos nus. Numa nudez sem erotismo, nudez feita de ausência (LISPECTOR, 1988, p. 38-39). Essa nudez vazia e não erótica nos relembra a palestra O animal que logo sou, de Derrida (2002). Fazendo parte da convocação místicopolítica à G.H., os desenhos de Janair representam a nudez como ausência das representações que cobrem a vida neutra, em seu estado indomável e insubmisso às palavras e às ordens humanas. Assim, por meio de um simples desenho e de uma simples arrumação de cômodo, Janair perturba também a ordem patroa/empregada, subvertendo-a e assumindo o papel ativo de uma espécie de “professora” em relação a G.H., levando-a a mudar de lugar, de perspectiva, a perceber a realidade de uma forma radicalmente outra.
Mas seu nome – é claro, é claro, lembrei-me finalmente: Janair. E, olhando o desenho hierático, de repente me ocorria que Janair me odiara. (…) Meu mal-estar era de algum modo divertido: é que nunca antes me ocorrera que, na mudez de Janair, pudesse ter havido uma censura à minha vida, que devia ter sido chamada pelo seu silêncio de “uma vida de homens”? como me julgara ela? (…) Havia anos que eu só tinha sido julgada pelos meus pares e pelo meu próprio ambiente que eram, em suma, feitos de mim mesma e para mim mesma. Janair era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu tomava consciência. De súbito, dessa vez com mal-estar real, deixei finalmente vir a mim uma sensação que durante seis meses, por negligência e desinteresse, eu não me deixara ter: a do silencioso ódio daquela mulher. O que me surpreendia é que era uma espécie de ódio isento, o pior ódio: o indiferente. Não um ódio que me individualizasse mas apenas a falta de misericórdia. Não, nem ao menos ódio. (LISPECTOR, 1988, p. 40-41)
Ao adotar essa nova perspectiva oferecida por Janair através dos desenhos e do minarete, G.H. finalmente, com mal-estar, passa a perceber de forma mais sensível não só a existência do outro, mas também o fato de que o outro a vê e a julga; a imagem que G.H. tinha de si mesma até ali era apenas isso: uma imagem. Ver a si mesma pela perspectiva do outro talvez a tenha feito perceber a fragilidade da própria individualidade diante deste novo mundo nu e silencioso onde todos os seres transitam entre diferentes pontos de vista. No fim do parágrafo vemos que o que mais causa o mal-estar da personagem é o fato de perceber que durante seis meses Janair fora silenciosamente insubmissa, ou talvez insubmissa através de seu próprio silêncio. A interpretação do livro feita por Gabriel Giorgi em Formas comunes (2014) traz um olhar político muito importante sobre essa desordenação dos papéis sociais através da corporalidade:
¿Qué es, pues, un cuerpo, cómo se hace visible, cómo se inscribe la singularidad de su tener lugar y sobre todo el horizonte de percepción y de exposición ante otro cuerpo? ¿Por qué ese horizonte de visibilidad y de sensibilidad del cuerpo es inseparable de un ordenamiento político? ¿Cómo se hace, cómo se produce un “individuo”, un cuerpo individuado, a qué precio, y sobre qué gramática de dominación? (GIORGI, 2014, p. 99)
É irônico notar que, apesar de o pensamento dominante no Ocidente fundar-se na crença de uma evolução do humano pautada num desprendimento do corpo, este mesmo corpo é tido como instrumento base das hierarquizações etnocidas e das classificações dos seres mais ou menos subjetivados, valorizados. Contraditoriamente, só aqueles com o corpo ideal, padronizado, seguidor da “ordem”, é que detém a possibilidade de sublimar-se em relação ao mesmo, de “evoluir”.
Silvia Federici, em Calibã e a bruxa, esclarece que a hierarquia dos corpos começa com a demonização dos mesmos construída pela igreja no feudalismo e se fortalece durante capitalismo:
Na tentativa de formar um novo tipo de indivíduo, a burguesia estabeleceu esta batalha contra o corpo que se converteu em sua marca histórica. À serviço da submissão da força de trabalho, teria sido elaborado um sentido de dissociação em relação ao corpo, que vem redefinido e reduzido a um objeto com o qual a pessoa deixa de estar imediatamente identificada. (FEDERICI, 2017, p. 240).
Mais à frente, a autora sugere: “A consciência dos colonizados, a bruxaria, a continuidade das tradições ancestrais e a resistência política consciente passaram a estar cada vez mais entrelaçadas” (FEDERICI, 2017, p. 420). Percebe-se aqui que desde o feudalismo a luta de classes, a luta das mulheres e as correntes de pensamentos místicos alternativos em contraposição à Igreja estiveram interligados, trabalhando a favor de uma melhor conexão entre o humano e a natureza e da subversão da hierarquia dos corpos.
Daí podemos desenvolver a proposição sobre essa misticopolítica, na medida em que a corporalidade, a mística e a política encontram-se interligadas em diversas instâncias ao longo da História, ligação que se reflete em A paixão segundo G.H.. Portanto, a reinterpretação corpo e do lugar por ele ocupado na literatura investigada desemboca necessariamente numa transformação da ordem política habitual. Consideramos o livro de Lispector uma literatura deformadora em diversos aspectos, na medida em que deforma o corpo, o lugar, a língua, a estrutura de vida moderna e as formas socioeconômicas. Janair se deforma através da insubmissão e, interligada à patroa, deforma a visão de G.H. sobre si própria e sobre os sentidos e valores do mundo em que vive. Por último, deforma-se o leitor, que tem as estruturas ontológicas abaladas, a perda das divisões entre eu e outro, corpo e mente, natureza e cultura, imanência e transcendência.
Bruno Latour sugere, em Jamais fomos modernos (1991), uma tentativa dos “modernos” (jamais bem-sucedida) de dissociação da realidade em natureza e cultura. Para ele, as sociedades modernas ocidentais dominantes tentam ordenar a realidade de modo que não haja conexão entre os sujeitos humanos e não-humanos, recalcando-se a formação dos híbridos. Pode-se enxergar um contraponto no pensamento de Davi Kopenawa, sua atenção à relação dos Yanomami com as palavras, carregadas da confluência das entidades que os modernos buscam separar: sagrado, natural, cultural, discursivo. Esta confluência para os Yanomami não parece ser um híbrido inconveniente que precisa ser recalcado, mas a riqueza de realidades que torna a palavra tão valiosa e profunda. Podemos ver o reconhecimento da indistinção entre natureza e cultura quando Davi Kopenawa reflete sobre a expressão “meio-ambiente” (2015):
Não gosto dessa palavra “meio”. A terra não deve ser recortada pelo meio. Somos habitantes da floresta, e se a dividirmos assim, sabemos que morreremos com ela. Prefiro que os brancos falem de natureza ou de ecologia inteira. (…) os xapiri não querem nos ver vivendo em cacos de floresta, e sim numa grande floresta inteira. Não quero que os meus morem num resto de floresta, nem que nos tornemos restos de seres humanos. (KOPENAWA; ALBERT, 2013, p. 485)
Vemos que, conforme sugere Kopenawa, na cosmologia Yanomami, por uma parte de si estar sempre ligada ao outro e uma parte do outro ligada a si – como se a realidade fosse uma costura altamente complexa e os seres fossem os fios que se transpassam – qualquer recorte, cerceamento ou imposição de hierarquia sobre a realidade pode mutilar a todos, transformando-os em restos.
Essa valorização do híbrido pode ser notada, em A paixão segundo G.H., além da identificação com a barata, na recorrência do “neutro”, encontrado pela personagem em sua experiência ao longo de toda a narrativa. Neutro: do latim ne uter, “nem um nem outro”. Esse neutro seria tanto a vida livre de caracterizações, classificações e oposições, quanto aquilo que existe entre os seres. Neutro: nem eu, nem o outro; nem o indivíduo, nem a alteridade; mas a amálgama, a confluência: “entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, (…) existe um sentir que é entre o sentir” (LISPECTOR, 1988, p. 98) Encontro aqui essa ontologia em forma de rede, de costura indivisível; que aparece em forma de um milagre que, segundo G.H., acontece continuamente, a todo instante e em todos os lugares, em todos os entres, como um “mistério que é a respiração do mundo”. (LISPECTOR, 1988, p. 98). Segundo Benedito Nunes, a experiência mística de G.H. representa: “Deus como união de todos os contrastes, superação das contradições da existência” (NUNES, 2009, p. 111).
E via, com fascínio e horror, os pedaços de minhas podres roupas de múmia caírem secas no chão, eu assistia à minha transformação de crisálida em larva úmida, as asas aos poucos encolhiam-se crestadas. E um ventre todo novo e feito para o chão, um ventre novo renascia. (…) Não sei se ela me via, não sei o que uma barata vê. Mas ela e eu nos olhávamos, e também não sei o que uma mulher vê. Mas se seus olhos não me viam, a existência dela me existia – no mundo primário onde eu entrara, os seres existem os outros como modo de se verem. E nesse mundo que eu estava conhecendo, há vários modos que significam ver: um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro, um apenas estar num canto e o outro estar ali também: tudo isso também significa ver. A barata não me via diretamente, ela estava comigo. A barata não me via com os olhos mas com o corpo. (LISPECTOR, 1988, p. 75-76)
Novamente se faz presente a importância da corporalidade na experiência mística, corporalidade que não é inferior ao racional e ao intelectual, mas vai além destes. O corpo é importante aqui não só por sua forma, mas por sua capacidade de brincar com ela, transgredi-la, contorcê-la: isso que a metamorfose de G.H. em larva representa, além da identificação profunda do humano com a natureza. A metamorfose em um ser que logo mais sofrerá outra metamorfose, a mudança constante como próprio modo de vida e a impossibilidade de se permanecer estático sobre um conjunto de representações sociais com fundações “falsas”.
Essa brincadeira com a forma – da palavra, do corpo, do “eu” –, além da metamorfose e da metáfora, também tem a ver com a exploração dos sentidos. Quando cheira, tateia, prova, vê, ouve outro ser, é como se G.H. expandisse seu eu para além de sua forma e adentrasse a forma da barata; como se os sentidos fossem canais que rompem os contornos entre um ser e outro, permitindo a fluidez da massa amorfa, da vida pura, do neutro. Percebemos uma semelhança entre a experiência mística interna à narrativa e o processo alternativo de criação artística encontrado na obra de Clarice Lispector; em que a criação se dá no impulso dessa exploração da própria forma e das barragens com o outro, se aventurando nos limites impostos, por meio da exploração do corpo na linguagem, de sua errância:
Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço da voz. (…) Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu. (LISPECTOR, 1988, p. 178)
Completa-se aqui a ideia de ciclo, seguida tanto pela arte quanto pela experiência mística: partimos de um passado vazio e silencioso da vida crua, inumana, fluida e selvagem; construímos sobre ele representações sociais, humanismos, hierarquias, oposições e “mentiras”, mutilamos a massa amorfa do passado para que caiba em formas estáticas e opressoras sobre as quais viviam G.H. e Janair, nomeamos os seres do mundo todo para que estejam sob nosso controle. Depois disso, de dentro de todas essas construções humanas violentas, a arte e o misticismo, através da memória, dão vida ao passado imemorial que existia antes destas e as deformam de dentro para fora, forçando os limites por meio dos sentidos e cavando túneis que ligam os pedaços de vida presos dentro das construções. Esses túneis são feitos pelos furos e exasperações na linguagem causados pelos erros e desvios que abrem novos caminhos para o desconhecido, pela exploração do corpo e dos sentidos, pela deformação das identidades e contornos do “eu”, pela coragem silenciosa de pessoas como Janair.
A brincadeira animal cria as condições para a linguagem. Sua ação metacomunicativa constrói a base evolutiva para as funções metalinguísticas que serão a marca registrada da linguagem humana, e o que a distingue de um mero código. A lógica corporificada da brincadeira animal, pré-humana e pré-verbal, já é essencialmente análoga à linguagem. É efetiva e enativamente linguística avant la lettre, como dizem os humanos em francês. Por que então o oposto também não seria verdadeiro: a linguagem humana ser essencialmente animal, do ponto de vista das capacidades lúdicas que carrega, tão intimamente vinculada aos poderes metalinguísticos? Pensemos no humor. Por que não considerar a linguagem humana uma reprise da brincadeira animal, elevada a uma potência mais alta? Ou dizer que, na realidade, é na linguagem que o humano atinge o mais alto grau de animalidade? Deleuze e Guatarri não insistiram que é na escrita que o humano ‘devém-animal’ mais intensamente; isto é, que entra mais intensamente numa zona de indiscernibilidade com a própria animalidade? (MASSUMI, 2017, p. 22)
A linguagem humana é pensada por Massumi como uma potencialização do princípio de transgressão próprio da natureza. O filósofo fala da corporalidade animal como pré-verbal e, ao mesmo tempo, precursora, de vanguarda, simultaneamente anterior e transgressora. Potencializando a si mesmas e se recriando a todo momento, podemos fazer uma relação entre a linguagem e a corporalidade como aspectos ou atualizações diferentes de um mesmo conceito. Ao refletir sobre Kafka: por uma literatura menor (1975) de Deleuze e Guatarri, Massumi fecha o ciclo: por meio da linguagem consequente de uma potencialização da corporalidade do animal, o ser humano volta a sê-lo.
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Notas:
[1] Sobre “Estímulos da criação literária” e Os parceiros do Rio Bonito, ler Moraes (2015, p. 77-118). Sobre o problema das relações entre diferença cultural e desigualdade social em Candido, conferir Moraes (2017).
[2] Sugere-se a leitura de Gramatologia (1967), de Jacques Derrida, para pensar o referido logocentrismo dominante no Ocidente.
[3] Conferir Moraes (2019).
[4] Para pensar a relação entre a teoria do perspectivismo ameríndio e os estudos de literatura, ler “Escutar a escrita: Por uma teoria literária ameríndia”, de Marília Librandi-Rocha (2012).