A figura paterna e a construção do patriarcado na poética de Carlos Drummond de Andrade: análise dos poemas “Viagem na família”, “Como um presente” e “Encontro”

Katielle Barbosa dos Santos

RESUMO: O presente artigo objetiva analisar a figura paterna nos poemas “Viagem na família” (1942), “Como um presente” (1945) e “Encontro” (1951), mais especificamente, a construção do patriarcado na formação conflituosa do eu lírico com seu pai. Como aporte teórico, valemo-nos de Freud (1990, 2016), no tocante aos conceitos de luto e melancolia, e Candido (1995, 2006), no que se refere às inquietudes da voz poética na obra de Drummond. A metodologia da pesquisa é de cunho bibliográfico e analítico. Procura-se compreender o patriarcado nos poemas em estudo, focados na relação entre pai e filho, na obsessão com os mortos e na busca recorrente ao passado por parte do eu lírico drummondiano.

PALAVRAS-CHAVE: Carlos Drummond de Andrade; Figura paterna; Patriarcado; Melancolia.

 ABSTRACT: The present article aims to analyze the father figure in the poems “Viagem na família” (1942), “Como um presente” (1945) and “Encontro” (1951), more specifically, the construction of patriarchy in the conflicting formation of the lyric self with his father. As theoretical support, we make use of Freud (1990, 2016), regarding the concepts of mourning and melancholy, and Candido (1995, 2006), regarding the restlessness of the poetic voice in Drummond’s work. The research methodology is bibliographical and analytical in nature. We seek to understand the patriarchy in the poems under study, focusing on the relationship between father and son, the obsession with the dead, and the recurrent search for the past by the Drummond lyric self.

KEY-WORDS: Carlos Drummond de Andrade; Father figure; Patriarchy; Melancholy.

“Viagem na família”, José (1942)

Na obra poética de Drummond, são recorrentes as referências que tematizam a lembrança de seus familiares e, em especial, o cotidiano rural permeado pela tradição patriarcal e a relação conflituosa com a figura paterna. Desde Alguma poesia (1930) até Sentimento do mundo (1951), encontra-se pontualmente esse tema, o qual implica, necessariamente, a questão da memória ligada ao seu passado em Itabira, sobretudo, dos sentimentos que se relacionam a tal fato.

Nessa fase, o poeta desenvolve em sua obra uma obsessão com os mortos, de modo que, simultaneamente, trata da figura paterna. De acordo com Candido (1995, p. 83):

Este poema abre um ciclo anunciado por alguns poemas anteriores e desenvolvidos paralelamente à poesia social, prolongando-se, todavia depois dela, num ritmo de obsessão crescente. E é sem dúvida curioso que o maior poeta social da nossa literatura contemporânea seja, ao mesmo tempo, o grande cantor da família como grupo e tradição. Isto nos leva a pensar que talvez este ciclo represente na sua obra um encontro entre suas inquietudes, a pessoal e a social, pois a família pode ser explicação do indivíduo por alguma coisa que o supera e contém.

Dessa forma, com o objetivo de analisar a relação do eu poético com as memórias ligadas ao seu pai, utiliza-se como ponto de partida o poema “Viagem na família”, do livro José, publicado em (1942):

No deserto de Itabira

a sombra de meu pai tomou-me pela mão.

Tanto tempo perdido

Porém nada dizia.

Não era dia nem noite.

Suspiro? Vôo de pássaro?

Porém nada dizia.

 

Longamente caminhamos

Aqui havia uma casa.

A montanha era maior.

Tantos mortos amontoados,

o tempo roendo os mortos.

E nas casas em ruína,

desprezo frio, umidade.

Porém nada dizia.

 

A rua que atravessava

a cavalo, de galope.

Seu relógio. Sua roupa.

Seus papéis de circunstância.

Suas histórias de amor.

Há um abrir de baús

e de lembranças violentas.

Porém nada dizia.

 

No deserto de Itabira

as coisas voltam a existir,

irrespiráveis e súbitas.

O mercado de desejos

expõe seus tristes tesouros;

meu anseio de fugir;

mulheres nuas; remorso.

Porém nada dizia.

 

Pisando livros e cartas,

viajamos na família.

Casamentos; hipotecas;

os primos tuberculosos;

a tia louca; minha avó

traída com as escravas,

rangendo sedas na alcova.

Porém nada dizia.

 

Que cruel, obscuro instinto

movia sua mão pálida

sutilmente nos empurrando

pelo tempo e pelos lugares

defendidos?

 

Olhei-o nos olhos brancos.

Gritei-lhe: fala! Minha voz

vibrou no ar um momento,

bateu nas pedras. A sombra

prosseguia devagar

aquela viagem patética

através do reino perdido.

Porém nada dizia.

 

Vi mágoa, incompreensão

e mais de uma velha revolta

a dividir-nos no escuro.

A mão que eu não quis beijar,

o prato que me negaram,

recusa em pedir perdão.

Orgulho. Terror noturno.

Porém nada dizia.

 

Fala fala fala fala.

Puxava pelo casaco

que se desfazia em barro.

pelas mãos, pelas botinas

prendia a sombra severa

e a sombra se desprendia

sem fuga nem reação.

Porém ficava calada.

 

E eram distintos silêncios

que se entranhavam no seu.

Era meu avô já surdo

querendo escutar as aves da igreja;

a minha falta de amigos;

a sua falta de beijos;

eram nossas difíceis vidas

e uma grande separação

na pequena área do quarto.

 

A pequena área da vida

me aperta contra o seu vulto,

e nesse abraço diáfano

é como se eu me queimasse

todo, de pungente amor.

Só hoje nos conhecermos!

Óculos, memórias, retratos

fluem no rio do sangue.

As águas já não permitem

Distinguir seu rosto longe,

para lá de setenta anos…

 

Senti que me perdoava

porém nada dizia.

 

As águas cobrem o bigode,

a família, Itabira, tudo.

O poema é construído com doze estrofes de versos livres e brancos que sustentam uma inquietude centrada na subjetividade e na culpa profunda que desperta no eu lírico sentimentos de melancolia, mediante o tempo perdido na convivência familiar e na tentativa frustrada de diálogo com o seu pai na viagem de retorno às origens de suas aflições.

“Viagem na família” apresenta uma situação onírica e póstuma, de modo que o eu lírico que possui uma consciência da morte do pai o busca no passado através do sonho. Na primeira estrofe, é apresentada sua terra natal, local que ocorre a tentativa de diálogo com a figura paterna, lugar denominado como “deserto de Itabira”, a cidade descrita em “Confidência do itabirano”, poema do livro Sentimento do mundo (1940), constituinte na formação do eu lírico, mas que agora passa a ser um local de inquietudes em decorrência do relacionamento de ambos.

Nesse cenário, o filho se permite conduzir pela mão do pai, uma figura insondável que aparece como uma sombra fantasmagórica e que o guia pelo tempo perdido no reino das memórias. O silêncio do pai, que ao longo das estrofes causa angústias no eu lírico, será marcado pelo último verso “porém nada dizia”:

No deserto de Itabira

a sombra de meu pai tomou-me pela mão.

Tanto tempo perdido

Porém nada dizia.

Não era dia nem noite.

Suspiro? Vôo de pássaro?

Porém nada dizia.

 

Longamente caminhamos

Aqui havia uma casa.

A montanha era maior.

Tantos mortos amontoados,

o tempo roendo os mortos.

E nas casas em ruína,

desprezo frio, umidade.

Porém nada dizia.

A segunda estrofe é construída a partir das lembranças locais: “Aqui havia uma casa/A montanha era maior”. Nota-se, ainda, a palavra “morte” mencionada em dois versos, enfatizando o início da obsessão. Além disso, o tempo é um fator preponderante, pois contribui para a deterioração de seus mortos e os sentimentos consequentes do seu conflituoso passado, que estão relacionados, sobretudo, ao seu contexto familiar.

Na terceira estrofe, o eu lírico passa a mencionar características pessoais da figura paterna, da mesma forma que apresenta elementos de contexto rural e referências do campo: “A rua que atravessava/a cavalo, de galope/Seu relógio. Sua roupa/Seus papéis de circunstância”. A repetição dos pronomes possessivos na terceira pessoa (seu/sua/seus/suas) endossa a constatação do eu lírico na construção da imagem do pai como uma figura detentora de poder econômico e social:

A rua que atravessava

a cavalo, de galope.

Seu relógio. Sua roupa.

Seus papéis de circunstância.

Suas histórias de amor.

Há um abrir de baús

e de lembranças violentas.

Porém nada dizia.

Ao mencionar no quinto verso da terceira estrofe “Suas histórias de amor” e no sétimo verso da quarta estrofe “mulheres nuas; remorso”, o eu lírico exprime, ainda que de forma sutil, um traço do plano social nos valores patriarcais da época:  as relações extraconjugais reconhecidas na sociedade como uma maneira de performar a masculinidade. Nesse sentido, percebe-se que, após recordar as características do pai, o eu poético nos versos “Há um abrir de baús/e de lembranças violentas” e “meu anseio de fugir;/mulheres nuas; remorso” sente-se melancólico mediante o descontentamento de presenciar, no passado, a conduta e atitudes da figura paterna, além do contínuo silêncio que predomina após as confissões “Porém nada dizia”:

No deserto de Itabira

as coisas voltam a existir,

irrespiráveis e súbitas.

O mercado de desejos

expõe seus tristes tesouros;

meu anseio de fugir;

mulheres nuas; remorso.

Porém nada dizia.

A relação da família com a escravidão aponta para outra conjuntura patriarcal no poema. O eu poético retrata a infidelidade do seu avô para com a avó “minha avó/traída com as escravas/rangendo sedas na alcova”, de forma que tal conduta masculina endossa a inserção da família nos valores patriarcais e do imaginário social deste dado período:

Pisando livros e cartas,

viajamos na família.

Casamentos; hipotecas;

os primos tuberculosos;

a tia louca; minha avó

traída com as escravas,

rangendo sedas na alcova.

Porém nada dizia.

 

Que cruel, obscuro instinto

movia sua mão pálida

sutilmente nos empurrando

pelo tempo e pelos lugares

defendidos?

A sombra agora inclina-se impiedosa, de modo que o poema apresenta um conflito mais intenso entre o eu lírico e a sombra paterna. “A sombra/prosseguia devagar”, e desperta sentimentos de ira no eu poético “aquela viagem patética/através do reino perdido”:

Olhei-o nos olhos brancos.

Gritei-lhe: fala! Minha voz

vibrou no ar um momento,

bateu nas pedras. A sombra

prosseguia devagar

aquela viagem patética

através do reino perdido.

Porém nada dizia.

No entanto, a voz que ecoa nas pedras indica que, para ele, juntamente com a culpa de ser conduzido pelo tempo e pelos lugares antes habitados, o silêncio contínuo também age como uma forma de reprovação e castigo.

Ao lançar seu olhar para o passado, o eu lírico descreve os sentimentos da conflituosa convivência na casa paterna:

Vi mágoa, incompreensão

e mais de uma velha revolta

a dividir-nos no escuro.

A mão que eu não quis beijar,

o prato que me negaram,

recusa em pedir perdão.

Orgulho. Terror noturno.

Porém nada dizia.

A “velha revolta” prevalece além do tempo, causando marcas irreparáveis no relacionamento de ambos; além disso, atua como insubmissão e rebeldia contra a autoridade do pai, pois recusa beijar sua mão e a pedir perdão por seu ato de objeção. No “Terror noturno” subjazem a melancolia, sofrimento e angústias em decorrência dos acontecimentos que cercam o relacionamento entre pai e filho.

Na décima estrofe, o eu lírico exibe seu ato máximo de desespero pela resposta do pai:

Fala fala fala fala.

Puxava pelo casaco

que se desfazia em barro.

pelas mãos, pelas botinas

prendia a sombra severa

e a sombra se desprendia

sem fuga nem reação.

Porém ficava calada.

A aflição e o anseio de ouvi-lo falar o leva a tomar atitudes como a sequência de gritos: “Fala fala fala fala”, mas nada se ouve. A sombra continua indiferente, não demonstra atitudes, não foge, permanece sem reação.  A falta de vírgulas neste verso também pode ser lida como uma estratégia formal que dialoga com o sentimento de desespero, de inquietude e de dramaticidade.

Os versos “puxava pelo casaco/ que se desfazia em barro”, traz essa tentativa ilusória de fazer as pazes, de obter respostas de alguém que não está mais fisicamente vivo. Assim, as projeções do eu lírico post mortem estão diretamente ligadas a experiências de ambos na convivência familiar, de modo que um pai severo se torna uma “sombra severa”. Na décima estrofe, notamos a solidão e as lacunas emocionais do sujeito lírico:

E eram distintos silêncios

que se entranhavam no seu.

Era meu avô já surdo

querendo escutar as aves da igreja;

a minha falta de amigos;

a sua falta de beijos;

eram nossas difíceis vidas

e uma grande separação

na pequena área do quarto.

Ao expressar a força, o amor jamais demonstrado, o constante silêncio, a falta de sorrisos, e a “falta de beijos”, o eu lírico ressalta a expressão de um pai severo, dominador e distante, sob um viés de representação do homem de seu tempo, que faz parte de uma sociedade autoritária e machista, na qual, no modelo tradicional de masculinidade, a demonstração de afeto se torna um ato de fraqueza. Dessa forma, a distância era mantida, de modo que ocorre “uma grande separação/na pequena área do quarto”.

Apesar de toda dor e melancolia como consequência da conflituosa relação familiar, as duas últimas estrofes de “Viagem na família” revelam todo o amor existente pelo eu poético a seu pai:

A pequena área da vida

me aperta contra o seu vulto,

e nesse abraço diáfano

é como se eu me queimasse

todo, de pungente amor.

Só hoje nos conhecermos!

Óculos, memórias, retratos

fluem no rio do sangue.

As águas já não permitem

Distinguir seu rosto longe,

para lá de setenta anos…

 

Senti que me perdoava

porém nada dizia.

 

As águas cobrem o bigode,

a família, Itabira, tudo.

E assim, finda a viagem de retorno às ações do passado “e nesse abraço diáfano/é como se eu queimasse todo, de pungente amor”. No entanto, esse amor só lhe é revelado na situação post mortem, de modo que a personalidade autoritária do pai não lhe permitira aproximação durante a vida, logo, afirma: “Só hoje nos conhecermos!”. Em consonância, Schmidtke (2009, p. 15) enfatiza:

No fim do poema, o perdão do pai é sentido pelo eu poético, mas essa é uma reconciliação que continua sem resposta.  Perdão do quê?  Este parece ser mais um traço melancólico presente no poema.  O sentimento de baixa autoestima é uma marca da poesia sobre a família em Drummond.  O maior exemplo é sua própria gaucherie.  O pedido de perdão talvez seja pelo pouco convívio, pela distância na pequena área da vida.  É o filho quem assume a culpa, mesmo sendo a dificuldade de relação tanto sua como do pai.

Dessa forma, Drummond dá continuidade ao ciclo de poemas que tratam da figura paterna, sobretudo, ainda em A rosa do povo (1945), ao publicar “Como um presente” e “Rua da madrugada” e em seguida “Encontro” (1951), pois o “rio do sangue” marca seu fluxo contínuo que permanece além do tempo. Assim, Itabira é inundada nos últimos versos pelas águas desse rio: “As águas cobrem o bigode/a família, Itabira, tudo”, o que simboliza um certo desfecho dessa viagem por memórias dolorosas, uma autoindulgência pela culpa e pelo ressentimento sustentados por tanto tempo.

 “Como um presente”, A rosa do povo“ (1945)

 Assim como ocorre em “Viagem na família” (1942), em “Como um presente” (1945) o eu lírico exprime de forma mais explícita a relação conflituosa com a figura paterna. Em comparação ao conjunto de poemas que tratam dessa mesma temática, “Como um presente” é o mais longo, escrito com dezessete estrofes e noventa e sete versos. O poema demonstra que quanto mais ele se aprofunda na questão do pai, mais ele escreve, de modo que as memórias conturbadas necessitassem de mais espaço para a expressividade de seu conteúdo dramático e intenso:

Teu aniversário, no escuro

Já não se comemora.

 

Escusa de levar-te esta gravata.

Já não tens roupa, nem precisas.

 

Numa toalha no espaço há o jantar

Mas teu jantar é silencio, tua fome não come.

Não mais te peço a mão enrugada

para beijar-lhes as veias grossas.

Nem procuro nos olhos estriados

Aquela interrogação: está chegando?

 

Em verdade parastes de fazer anos.

Não envelheces. O último retrato

Vale para sempre. És um homem cansado

Mas fiel: carteira de identidade.

 

Sua imobilidade é perfeita. Embora a chuva,

E o desconforto deste chão. Mas sempre amastes

O duro, o relento, a falta. O frio sente-se

Em mim, que te visito. Em ti, a calma.

Como compraste calma? Não a tinhas.

Como aceitastes a noite? Madrugavas.

Teu cavalo corta o ar, guardo uma espora

de tua bota, um grito de teus lábios,

sinto em mim teu corpo cheio, tua faca,

tua pressa, teu estrondo… encadeados.

 

Mas teu segredo não descubro.

Não está nos papéis

do cofre. Nem nas casas que habitastes.

No casarão azul

vejo a fieira de quartos sem chave, ouço teu passo

noturno, teu pigarro, e sinto os bois

e sinto as tropas que levavas pela Mata

e passos na escada, que sobem,

e soldados que sobem, vermelhos,

e armas que te vão talvez matar,

mas que não ousam.

Vejo, no rio, uma canoa,

nela três homens.

“Inda que mal me pergunte, o Coronel sabe nadar?

Porque esta canoa, louvado Deus, pode virar,

e sua criação nunca mais que o senhor há de encontrar”.

Tua mão saca no bolso uma coisa. Tua voz vai a frente.

“Coronel, me desculpe, não se pode caçoar?”

 

Vejo-te mais longe. Ficastes pequeno.

Impossível reconhecer teu rosto, mas sei que és tu.

Vem da névoa, das memórias, dos baús atulhados,

da monarquia, da escravidão, da tirania familiar.

És bem frágil e a escola te engole.

Faria de ti talvez um farmacêutico ranzinza, um doutor confuso.

Para começar: uma dúzia de bolos!

Quem disse?

Entrastes pela porta, saístes pela janela

– conheceu, seu mestre? – quem quiser que conte outra,

mas tu ganhavas o mundo e nele aprenderias tua sucinta gramática

a mão do mundo pegaria de tua mão e desenharia tua letra firme,

o livro do mundo te entraria pelos olhos e te imprimiria sua completa e clara ciência, mas não descubro teu segredo.

 

É talvez um erro amarmos assim nossos parentes.

A identidade do sangue age como cadeia,

fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,

onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar.

 

Por que ficar neste município, neste sobrenome?

Taras, doenças, dívidas; mal se respira no sótão.

Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra,

Passando por baixo de seus problemas e lavouras, de

eterna agência do correio,

e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade.

Quisera abandonar-te, negar-te, fugir-te,

Mas curioso:

já não estás, e te sinto,

não me falas, e te converso.

E tanto nos entendemos, no escuro,

no pó, no sono.

 

E pergunto teu segredo.

Não respondes. Não o tinhas.

Realmente não o tinhas, me enganavas?

Então aquele poderoso poder de abrir garrafas sem saca-rolha,

de desatar nós, atravessar rios a cavalo, assistir, sem

chorar, morte de filho,

expulsar assombrações apenas com teu passo duro,

o gado que sumia e voltava, embora a peste varresse as

fazendas,

o domínio total sobre irmãos, tios, primos, camaradas,

caixeiros, fiscais do governo, beatas, padres,

médicos, mendigos, loucos mansos, loucos

agitados, animais, coisas:

então não era segredo?

 

E tu que me dizes tanto

disso não me contas nada.

 

Perdoa a longa conversa.

Palavras tão poucas, antes!

É certo que intimidavas.

 

Guardavas talvez o amor

Em tripla cerca de espinhos.

 

Já não precisas guardá-lo.

No escuro em que fazes anos,

No escuro,

É permitido sorrir.

As primeiras três estrofes, com seus versos dísticos, desenvolvem a situação onírica do poema. Ao visitar o túmulo de seu pai que estaria fazendo aniversário, o eu lírico busca respostas acerca do passado de ambos, embora o poema aponte para um monólogo por parte do filho:

Teu aniversário, no escuro

Já não se comemora.

A característica do silêncio, tão presente em “Viagem na família”, retorna como um aspecto marcante da personalidade do pai, e, apesar de estarem fisicamente no mesmo espaço, prevalece e permanece a dura distância interpessoal que tanto o incomoda também:

Numa toalha no espaço há o jantar

Mas teu jantar é silencio, tua fome não come.

Na quarta estrofe, o eu poético descreve a tradição que marca o sinal de respeito entre pai e filho – pedir as mãos para beijar. No entanto, nos versos seguintes, a procura pelos olhos estriados de seu pai já idoso demonstra a atmosfera de medo marcado pela pergunta: “está chegando?”:

Não mais te peço a mão enrugada

para beijar-lhes as veias grossas.

Nem procuro nos olhos estriados

Aquela interrogação: está chegando?

A partir daí, o poema ganha uma dimensão mais densa. Diante de perguntas retóricas, o eu poético expõe características da insensível personalidade do pai e as compara com as circunstâncias do seu estado de morte: “e o desconforto deste chão. Mas sempre amastes/ O duro, o relento, a falta”. Na visita ao túmulo, a frieza de sentimentos é apresentada, e o pai continua a ser o patriarca enigmático que o eu lírico tenta compreender:

Sua imobilidade é perfeita. Embora a chuva,

E o desconforto deste chão. Mas sempre amastes

O duro, o relento, a falta. O frio sente-se

Em mim, que te visito. Em ti, a calma.

 

Como compraste calma? Não a tinhas.

Como aceitastes a noite? Madrugavas.

Teu cavalo corta o ar, guardo uma espora

de tua bota, um grito de teus lábios,

sinto em mim teu corpo cheio, tua faca,

tua pressa, teu estrondo… encadeados.

O pai que aparece montado em seu cavalo revela mais um traço de sua dura personalidade: a violência, de modo que o filho é agredido “guardo uma espora/ de tua bota”, e a figura que conserva tanto silêncio o quebra com a dureza das palavras. E assim, “tua faca, tua pressa, teu estrondo… encadeados” marcam a firme presença do pai nas memórias do eu lírico.

A oitava estrofe, e a mais longa do poema, é permeada por imagens que remetem à tradição patriarcal rural, a qual se manteve ativa no contexto político brasileiro pelo coronelismo ao longo do século XX:

Mas teu segredo não descubro.

Não está nos papéis

do cofre. Nem nas casas que habitastes.

No casarão azul

vejo a fieira de quartos sem chave, ouço teu passo

noturno, teu pigarro, e sinto os bois

e sinto as tropas que levavas pela Mata

e passos na escada, que sobem,

e soldados que sobem, vermelhos,

e armas que te vão talvez matar,

mas que não ousam.

Vejo, no rio, uma canoa,

nela três homens.

“Inda que mal me pergunte, o Coronel sabe nadar?

Porque esta canoa, louvado Deus, pode virar,

e sua criação nunca mais que o senhor há de encontrar”.

Tua mão saca no bolso uma coisa. Tua voz vai a frente.

“Coronel, me desculpe, não se pode caçoar?”

Os papéis, o cofre, o casarão azul, os vários quartos e os bois expressam a condição econômica de fartura que a família mantinha no passado. O coronelismo também é bastante marcante, na medida em que a figura paterna comanda tropas de soldados e os mantém à sua disposição.

No nono verso da oitava estrofe, é possível compreender de que forma a autoridade da figura paterna é exercida. Os mesmos soldados subservientes o odiavam e pensavam em matá-lo, mas como dito: “e armas que te vão talvez matar/mas não ousam”. Tentam de outro modo: com a possibilidade de afogá-lo no rio em que todos estão na canoa. Decidem sondá-lo para que sua morte seja bem-sucedida. No entanto, o medo os paralisa pelo seu domínio e pelo saque do que talvez seja a sua arma.

Na estrofe seguinte, fica evidente que é possível reconhecer o pai apenas pela impetuosidade que ele transmite e por ser um homem arcaico advindo “das memórias, dos baús atulhados”:

Vejo-te mais longe. Ficastes pequeno.

Impossível reconhecer teu rosto, mas sei que és tu.

Vem da névoa, das memórias, dos baús atulhados,

da monarquia, da escravidão, da tirania familiar.

És bem frágil e a escola te engole.

Faria de ti talvez um farmacêutico ranzinza, um doutor confuso.

A partir do quarto verso da mesma estrofe, notamos a tentativa de compreensão por parte do filho para com o pai, pois o mesmo tem suas raízes “da monarquia, da escravidão, da tirania familiar”, o que justificaria o seu comportamento autoritário. De todo modo, o sujeito lírico encontra-se em um tempo e lugar social que carrega temores e inquietações acerca das marcas e traumas sofridos por um pai severo e dominador. No entanto, reconhece que o pai é um homem frágil.

Nas páginas do diário de Drummond, no livro Uma forma de saudade (2017, p. 31), o poeta escreve acerca do pai:

Meu bisavô morreu três anos antes da esposa (1870). Meu pai tinha então 10 anos e era uma criança doente e enfezada. Ninguém adivinharia nele o homem aprumado, saudável e poderoso que chegou a ser. Na dor de ver morrer o velho Paula Andrade, meu avô Elias lamentava-se: ‘Por que, em vez de meu pai, não morreu esse menino magricela, que tanto trabalho dá para criar?’. Meu pai escutou essas palavras e guardou aberta a ferida. É admirável como conseguiu reagir e logrou ser o homem duro que meu próprio avô Elias chegou a estimar e respeitar.

Assim, no excerto acima, observamos que o pai de Drummond utiliza a violência para se posicionar ao carregar consigo as exigências do próprio pai. Com isso, a representação do eu lírico para com a figura paterna denota um homem retraído que se vale da força para esconder suas inseguranças e espelha seus próprios traumas na relação com os filhos.

Deste modo, o eu lírico fala do amor que transcende para além das angústias vividas, de forma que sente a necessidade de se desprender e se afastar da figura paterna que o causa inquietações. Porém, fica impossibilitado por conta do afeto que sente:

É talvez um erro amarmos assim nossos parentes.

A identidade do sangue age como cadeia,

fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,

onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar.

 

Por que ficar neste município, neste sobrenome?

Taras, doenças, dívidas; mal se respira no sótão.

Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra,

Passando por baixo de seus problemas e lavouras, de

eterna agência do correio,

e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade.

Quisera abandonar-te, negar-te, fugir-te,

Mas curioso:

já não estás, e te sinto,

não me falas, e te converso.

E tanto nos entendemos, no escuro,

no pó, no sono.

Tal afeto ultrapassa até mesmo os limites da sua realidade, pois sua presença continua a ser sentida, como notamos nos versos “já não estás, e te sinto/não me falas, e te converso” não consegue superar a sua morte, visto que busca formas de mantê-lo dentro de seu presente através dos sonhos, na medida em que conseguem se entender apenas na morte: “E tanto nos entendemos, no escuro/no pó, no sono.”.

Notamos o fator preponderante da hereditariedade e patriarcado. Cabe ao filho homem ser sucessor dos negócios do pai. No entanto, o eu poético sente a necessidade de ir para um outro lugar (“Procurar meus parentes na Ásia/onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar”) para que não caiba a ele a obrigação e responsabilidade de dar continuidade aos negócios da família e os problemas oriundos de tais fatores.

Na estrofe seguinte, na tentativa de desvendar o segredo do patriarca enigmático, o eu lírico menciona diversas características da personalidade da figura paterna:

E pergunto teu segredo.

Não respondes. Não o tinhas.

Realmente não o tinhas, me enganavas?

Então aquele poderoso poder de abrir garrafas sem saca-rolha,

de desatar nós, atravessar rios a cavalo, assistir, sem

chorar, morte de filho,

expulsar assombrações apenas com teu passo duro,

o gado que sumia e voltava, embora a peste varresse as

fazendas,

o domínio total sobre irmãos, tios, primos, camaradas,

caixeiros, fiscais do governo, beatas, padres,

médicos, mendigos, loucos mansos, loucos

agitados, animais, coisas:

então não era segredo?

Os versos acima demonstram sua força e insensibilidade mediante fatos como “assistir, sem/chorar, morte de filho”.  Segundo Pinheiro (2010, p. 76):

Pode-se considerar o modelo tradicional de masculinidade seguindo alguns preceitos básicos: ser ambicioso, racional, analítico, individualista, competitivo, dominante, agressivo, viril, corajoso, pouco falante, o que não demonstra emoções, que corre riscos, que provê a família e que atua como líder, além da constante necessidade de provar que é homem.

Outro fator interessante citado nos versos finais da mesma estrofe é o domínio total sobre a comunidade de que a figura paterna faz parte, que vai além da autoridade exercida na própria casa para com os membros familiares. De acordo com Pinheiro (2010, p. 60), é possível notar nos estudos sobre famílias inseridas no modelo patriarcal a predominância da autoridade do patriarca e as relações de submissão do mesmo, ultrapassando a extensão dessa autoridade para o domínio público.

Novamente, o eu lírico pede perdão ao pai, de modo que exprime sentimentos de baixa autoestima como uma característica melancólica:

E tu que me dizes tanto

disso não me contas nada.

 

Perdoa a longa conversa.

Palavras tão poucas, antes!

É certo que intimidavas.

 

Guardavas talvez o amor

Em tripla cerca de espinhos.

 

Já não precisas guardá-lo.

No escuro em que fazes anos,

No escuro,

É permitido sorrir.

A melancolia, traço psicológico presente no poema, surge, sobretudo, com o pedido de perdão ao prolongar a conversa, pois no relacionamento de ambos a comunicação não é algo comum e o filho se sente culpado pela tentativa de diálogo e ao presumir o constrangimento do pai sobre a ação: “É certo que intimidavas”.

Em sua obra Luto e melancolia (2016, p. 209), Freud a caracteriza a partir da seguinte forma:

A melancolia caracteriza-se psiquicamente por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, o que se expressa em autorrecriminações e auto insultos, chegando até à expectativa delirante de punição.

Diante disto, o eu lírico não anula o possível amor que o pai sente, mas retrata a sua dificuldade em demonstrar afeto “Guardavas talvez o amor/Em tripla cerca de espinhos”. A expressão de sentimentos por um patriarca por muito tempo fora considerada como um sinal de fraqueza e fragilidade no imaginário social da época.

Na última estrofe, reconhece que, com o fato de estar morto, seus sentimentos não precisam mais ser ocultos (“Já não precisas guardá-lo”), não mais está sendo observado pela sociedade. E assim, na morte, “é permitido sorrir”, de modo que para o eu lírico, na ausência física do pai, este revelará ser verdadeiramente quem é e, assim, o amor e os sentimentos poderão ser demonstrados.

“Encontro”, Claro Enigma (1951)

 Em Claro enigma (1951), o eu lírico finda o ciclo de poemas em que expõe a relação conflituosa com a figura paterna através do poema “Encontro”:

Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.

Se a noite me atribui poder de fuga,

sinto logo meu pai e nele ponho

o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga.

 

Está morto, que importa? Inda madruga

e seu rosto, nem triste nem risonho,

é o rosto antigo, o mesmo. E não enxuga

suor algum, na calma de meu sonho.

 

Oh meu pai arquiteto e fazendeiro!

Faz casas de silêncio, e suas roças

de cinza estão maduras, orvalhadas

 

por um rio que corre o tempo inteiro

e corre além do tempo, enquanto as nossas

murcham num sopro fontes represadas.

Dos poemas que retratam a temática do pai, “Encontro” é o mais curto, um soneto, no qual, como explícito no título, trata do encontro post mortem com o seu pai através de sonhos. Percebe-se o anseio do eu lírico em reparar o tempo perdido na densa convivência familiar:

Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.

Se a noite me atribui poder de fuga,

sinto logo meu pai e nele ponho

o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga.

Nos versos acima, é possível notar o paralelo entre passado e presente, além do dualismo em que o eu lírico se contrasta: perdi – ganho. Segundo Candido (1995, p. 112), “é destes e de outros paradoxos que se nutre a sua obra: a obsessão simultânea de passado e presente, individual e coletivo”.

Dessa forma, em seu tempo presente, o eu poético alimenta sua obsessão para com o pai morto: “Se a noite me atribui poder de fuga/sinto logo meu pai”. E assim almeja sonhar para encontrá-lo de imediato:

Está morto, que importa? Inda madruga

e seu rosto, nem triste nem risonho,

é o rosto antigo, o mesmo. E não enxuga

suor algum, na calma de meu sonho.

Mesmo consciente do estado de idealização em que se encontra (“Está morto, que importa”), o eu lírico afirma que as expressões do pai ainda são as mesmas, porém, ao contrário da conflituosa convivência entre ambos, nos seus sonhos há uma calmaria significativa, o pai agora se encontra tranquilo, pois “não enxuga/suor algum”, não é mais o homem ocupado e de passos firmes como descrito em “Como um presente” (1945).

Para Freud, em sua obra A interpretação dos sonhos (1900, p. 39), estes representam “uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)”. Neste sentido, a figura paterna manifesta-se de acordo com o desejo do eu lírico, o qual se mostra um homem sereno e sem muitas tensões aparentes, revelando o caráter melancólico do poema.

No entanto, apesar da expressão calma, o silêncio da figura paterna, característica presente em todos os poemas que envolvem a mesma temática, é algo que persiste em “Encontro”:

Oh meu pai arquiteto e fazendeiro!

Faz casas de silêncio, e suas roças

de cinza estão maduras, orvalhadas

 

por um rio que corre o tempo inteiro

e corre além do tempo, enquanto as nossas

murcham num sopro fontes represadas.

Na terceira estrofe, a interjeição exclamativa “Oh” pode ser entendida como a dor e a admiração por parte do eu lírico para com a figura paterna, pois a analogia que faz ao citar as profissões deste “arquiteto e fazendeiro” indica metaforicamente o resultado do seu trabalho nos sentimentos do eu poético. O silêncio foi construído sob a fortaleza das “casas”, ou seja, foram tão bem edificadas que prevalecem apesar dos anos.

Assim como em “Viagem na família” (1942), a imagem do rio também aparece em “Encontro”, de modo que conclui o poema simbolizando os inquebráveis laços familiares e sanguíneos que prevalecem com toda a força além do tempo, os quais provocam marcas no eu lírico que se espalham em seu passado e presente.

O eu lírico expressa um desejo imenso de voltar ao passado, em conviver novamente com a figura paterna, de conhecê-lo melhor e receber do pai o amor que permaneceu reprimido ao longo dos anos por conta da barreira imposta pela tradição patriarcal, repressão esta que, conforme aponta a análise dos poemas, advém da incapacidade de demonstração de afetos na relação familiar e do homem duro, impetuoso e silencioso diante do filho, da família e da sociedade.

Em suma, a partir de “Viagem na família” (1942) e encerrando com “Encontro” (1951), todos os poemas apresentam um núcleo em comum: uma lírica onírica e póstuma. Por conseguinte, desenvolve-se na poética drummondiana uma nítida melancolia, importante traço psicanalítico, que se mostra recorrente nos sonhos como forma de continuar sentindo a presença do pai em sua vida.

 Referências

 ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião: 10 livros de poesia. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 1973.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Uma forma de saudade: páginas de diário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos.  3. ed. São Paulo: Duas cidades, 1995.

CARONE, Marilene; FREUD, Sigmund. 1985: Luto e melancolia. Jornal de psicanálise, São Paulo, v. 49, n. 90, p. 207-224, jun.  2016.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. 4 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1900.

PINHEIRO, Leonardo José Cavalcanti. A autoridade do pai frente ao declínio do patriarcado: um estudo teórico. 2010. 93 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Católica do Salvador, Salvador, 2010.