O desenlace do amor feminino: entre aprisionamentos e pulsões de liberdade

Alice Brandão Azevedo Alves, Ana Beatriz Alves Cucaroli

RESUMO: Dentre as autoras de maior renome na história de literatura portuguesa, encontra-se Florbela Espanca. Unindo idealidade à physis, a autora cria uma poética que dialoga diretamente com a condição feminina da época. Vinte anos se passam e, em meados do século XX, tem-se a cantora Maysa fazendo sucesso no cenário musical brasileiro. Assim como a autora portuguesa, em suas músicas, ela expõe algo particular sobre a experiência feminina nos anos 50. Neste artigo, o que une as duas artistas aparentemente distintas é o amor. Mais especificamente, o desenlace amoroso presente nas duas obras. Tal fato é revelador da experiência das mulheres em meio a um ambiente de repressão e violência, sendo tais obras ícones de transgressão e liberdade em seu tempo.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura portuguesa; Florbela Espanca; Maysa; canção; amor; feminino.

ABSTRACT: Among the most renowned authors in the history of Portuguese literature, there is Florbela Espanca. Uniting ideality with physis, the author creates a poetics that dialogues directly with the feminine condition of the time. Twenty years after, in the mid-twentieth century, the singer Maysa has been successful in the Brazilian music scene. Like the Portuguese author, in her songs, she exposes something particular about the female experience in the 1950s. In this article, what unites the two seemingly distinct artists is love. More specifically, the love break-up present in the two works. This fact is revealing of the experience of women inserted in an environment of repression and violence, being such works icons of transgression and freedom in their time.

KEYWORDS: Portuguese literature; Florbela Espanca; Maysa; canção; love; feminine.

INTRODUÇÃO

De todas as questões da vida humana, o amor permanece sendo um dos sentimentos mais representados e discutidos no meio literário. E a ele diversas questões se entrelaçam, criando um emaranhado de sensações, as quais, muitas vezes, não conseguimos compreender racionalmente. Em seu livro Fragmentos de um Discurso Amoroso, Roland Barthes demonstra como é possível depreender diversos elementos relacionados a um único sentimento, o amor. Todavia, o clássico “felizes-para-sempre” com frequência não se concretiza e, a partir disso, é desencadeado um processo de desenlace com o ser amado que, muitas vezes, é doloroso e conflituoso. Com base nisso, o presente trabalho intenta discorrer, a partir de duas obras artísticas, sobre as formas do desenlace do amor, pensando sobre quais caminhos são tomados nessa situação específica e sobre porque se escolhe determinada forma de superação do amor frustrado.

Para realizar tal reflexão, foram escolhidas duas obras: o poema “Supremo Enleio”, de Florbela Espanca, e a música “Ouça”, da cantora Maysa. A princípio, foram escolhidos trabalhos artísticos perpassados pelo mesmo tema do rompimento amoroso. Todavia, ao longo do processo de pesquisa, nossos olhares se voltaram, inevitavelmente, para outras questões muito latentes nessas duas obras. Pode-se aventar, para início de conversa, o que há de comum entre Maysa e Florbela, duas mulheres nascidas e criadas em sociedades cristãs conservadoras, as quais limitavam a mulher e, consequentemente, seu papel na relação amorosa. Dessa maneira, fez-se necessário considerar a questão do amor feminino, que, se dando em um meio social tão desigual, delega à mulher um papel passivo e doloroso no amor. As consequências disso no desenlace amoroso, historicamente, resultam “no discurso da ausência [do ser amado] ser sustentado pela Mulher” (BARTHES, 1981, p. 27).  Em outras palavras, é possível perceber que, no término do amor, quem carrega a saudade e as lamentações são as mulheres, uma vez que a elas é permitido apenas ocuparem papéis passivos, enquanto a figura masculina se aventura pelo mundo.

Vale ressaltar que tal disparidade remonta a tempos muitos mais antigos do que o da poesia florbeliana ou da música de Maysa. Encontramos tal noção já na Idade Média, com a poesia trovadoresca, a qual partia de ideais do amor cortês para definir o que eram as relações amorosas. Nesse mesmo período, encontramos as chamadas cantigas de amigo medievais, nas quais é possível perceber esse papel passivo da mulher em esperar o ser amado, e, também, através da voz feminina, serem entoadas questões como a saudade e a angústia pela ausência do sujeito masculino. Dessa maneira, essa forma de amor foi tão difundida e aclamada que passou a alimentar construções posteriores de tal conceito, o que, porém, resulta em uma perpetuação de determinadas características trovadorescas, as quais possuem uma “mistura dramática que faz com que este ‘amor sutil’ tanto enobreça e eduque aquele que ama, como o empurre tragicamente em direção ao sofrimento e até à morte” (BARROS, 2008, p. 6).

Pensando nisso, fez-se importante, também, considerar a respeito das duas artistas em específico. Quem elas foram e como viveram diante de uma sociedade tão opressora? Dessa maneira, por ordem de nascimento, temos Florbela Espanca (1894-1930). Nascida em Portugal, Florbela escreveu diversos poemas relacionados à temática do amor, os quais refletem sua dor e sensibilidade para com a vida. Presa em um eterno conflito repressivo com a sociedade machista da época, a obra de Florbela dialoga com essa necessidade de libertação do feminino, inclusive do amor feminino. Dessa forma, é possível reconhecer, no conjunto de sonetos irreverentes da autora, publicados sob o título Charneca em Flor (1931) e, em especial, no poema escolhido para compor a análise em questão, traços de uma Florbela comunicativa, aquela que visava manifestar poeticamente suas dores, saudades e sensualidade, como também ter sua voz feminina ouvida.

Tal volume, sendo o último livro da autora, traz uma característica marcante para o conjunto de sua obra: o amadurecimento. Isso é decorrente desse movimento de querer se libertar, o qual atinge a fase de maturação nesse último livro. Contudo, a autora tira a própria vida aos 36 anos, de modo que não vê a repercussão que seus escritos receberiam e a influência exercida por sua poesia sobre artistas e estudantes na posteridade. Faltou-lhe, portanto, a oportunidade de presenciar a importância que passou a ter o seu contundente e sensual retrato do amor feminino, não só na literatura, como também na sociedade. Afinal, no âmbito das artes, foi por meio de movimentos como este de Florbela que foi possível vermos o outro lado da relação que sempre foi apagado da história, o feminino.

Sobre Maysa, nascida Maysa Figueira Monjardim (1936-1977), foi uma das artistas que tiveram um grande destaque no cenário da música popular brasileira (MPB), gênero surgido em meados da década de 50 e que consolidou vários artistas na cultura do país. Reconhecida por abordar temas como a sensibilidade feminina e o amor doloroso, a cantora se destacou no meio musical por ter um estilo único de voz ao retratar angústia, dor, amor e, também, por ser uma grande compositora em um espaço majoritariamente masculino. A vida particular da artista sempre foi conturbada, desde sua infância até o seu casamento com André Matarazzo, envolvendo-se em escândalos de traição. A partir de sua vida singular, ela performa músicas especulativas sobre o relacionamento, o qual coloca em cena as dores amorosas às quais as mulheres eram submetidas em sua época.

Tendo em vista todas essas questões, Maysa e Florbela se apresentam, neste trabalho, como duas mulheres que transgrediram as imposições de sua época e ousaram falar sobre o desenlace amoroso e suas dores. Porém, diferentemente do que vemos no amor cortês da poesia trovadoresca, encontramos formas notadamente femininas de se reconciliar com a perda do objeto amado.  Além disso, em razão de a experiência amorosa ser tratada a partir da perspectiva da mulher, determinadas características que ainda não tinham sido retratadas antes agora são elaboradas tanto na poesia de Florbela quando na canção de Maysa. Portanto, em ambas as obras, podemos identificar a ausência da figura masculina que, nesse caso, é o ser amado.

Contudo, para sair desse sofrimento amoroso, há a presença de duas propostas que retiram dos ombros das mulheres o peso de sofrer eternamente com o fim do amor. Dessa forma, de um lado, temos Florbela, a qual atinge, pelas vias da natureza, a conciliação necessária, ou seja, encontra, nos ciclos da natureza e no tempo desta, uma forma de entender os processos de idas e vindas do amor, de forma a perceber que este, assim como as estações do ano, vem, se finda, mas também retorna em um ciclo interminável. Veremos adiante como isso se relaciona com a figura da mulher, constantemente relacionada à natureza (pensando no termo Mãe-Natureza), e quais possibilidades isso permite à poeta. Por outro lado, temos o retrato de Maysa. Na canção, Maysa dá voz às vontades de diversas mulheres que eram impedidas de elas mesmas darem um fim a seu relacionamento. Dessa forma, em sua música, é possível perceber como há outro caminho, por vezes mais conflituoso, para o fim do relacionamento, mas que, da mesma forma de Florbela, permite à mulher dar um fim ao eterno sofrimento amoroso.

A DIALÉTICA ENTRE IDEALIDADE E PHYSIS EM FLORBELA ESPANCA

Em seu texto “A Condição Feminina na obra de Florbela Espanca”, Maria Lúcia Dal Farra ressalta aspectos importantes da obra da autora portuguesa, a qual é representada pelo “emblema [d]a condição feminina” (DAL FARRA, 1985, p. 111). E não só isso coloca Dal Farra, mas ela afirma também o local social instável ao qual a mulher estava sujeita, uma vez que não podia ser expressiva demais. Caso fosse, lhe seriam atribuídos laudos médicos atestando algum desvio histérico de comportamento, o qual se resolveria, na concepção da época, com a presença do “homem certo”.  Nesse contexto, surgem as obras de Florbela, as quais trazem, aos poucos, em si, por meio da dialética entre o idealismo e a physis, a ruptura com o sufocamento da expressividade feminina. Em Charneca em Flor, livro publicado postumamente, vemos o amadurecimento do eu-lírico, o que pode ser abordado como os primeiros indícios de uma voz que se permite sentir e, acima de tudo, falar de tais sentimentos. Mais especificamente, podemos ver, no último livro da autora, uma mudança em relação à abordagem do amor, pois, enquanto nos seus primeiros livros é possível perceber um eu-lírico que tende ao idealismo amoroso, fazendo com que este transcenda ao aspecto físico, em Charneca em Flor, vemos poesias voltadas para o amor sentido pelas vias do corpo e da sensualidade.

Por conta dos elementos que rompem com a opressão de uma sociedade machista, detemo-nos sobre o poema “Supremo Enleio”. Composto como soneto, em dois quartetos e dois tercetos, esse texto traz a história de um desenlace amoroso. Porém, o que chama a atenção na obra em questão é como Florbela constrói uma nova percepção do que é esse rompimento por meio da abordagem de questões como o idealismo amoroso, sendo este superado através de um segundo elemento, a physis. Também é perceptível o uso de elementos panteístas, que beiram o paganismo. Iniciando-se com um lamento: “Quanta mulher em teu passado, quanta!”, já é notório que não será uma história de “felizes-para-sempre”. Porém, contrariamente a essa típica percepção do relacionamento, ao longo dos versos, a poeta reinventa a separação amorosa ao colocar um eu-lírico que profetiza uma união perene, de forma que, por meio da renovação dos ciclos da natureza, o amor tornará a existir infinitas vezes:

Quanta mulher no teu passado, quanta!

Tanta sombra em redor! Mas que me importa?

Se delas veio o sonho que conforta,

A sua vinda foi três vezes santa!

 

Erva do chão que a mão de Deus levanta,

Folhas murchas de rojo à tua porta…

Quando eu for uma pobre coisa morta,

Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!

 

Mas eu sou a manhã: apago estrelas!

Hás de ver-me, beijar-me em todas elas,

Mesmo na boca da que for mais linda!

 

E quando a derradeira, enfim, vier,

Nesse corpo vibrante de mulher

Será o meu que hás de encontrar ainda…

(ESPANCA, 2015, p.110) [1]

Se se pretende analisar a questão do relacionamento entre um homem e uma mulher no início do século XX em Portugal, será necessário discutir diversas questões a respeito do imaginário cristão tradicional da época, o qual delimitava fortemente o papel de cada um na relação. Nesse cenário, uma das questões que mais se destacam diz respeito à idealização do amor, o que será subvertido pela autora no poema em questão. Entretanto, antes de nos atermos a essa questão, faz-se importante entender como ocorreu a construção do idealismo amoroso por meio da literatura.

Pensando nisso, não se pode deixar de falar sobre tal idealização, descrita primeiramente pelo filósofo Platão. Em O Banquete, o filósofo descreve, o que depois viria a ser definido como amor platônico, como uma espécie de “entusiasmo”, que significa “endeusamento”, pois esse delírio procede da divindade e nos impulsiona para Deus (ROUGEMONT, 1988, p. 50). Percebe-se aí a semente do que se tornará uma das bases da concepção de amor na Idade Média[2], de forma que a figura do objeto amado passa a ser associada às figuras sublimes ao longo de vários séculos.

Seguindo essa mesma linha de idealização, temos o exemplo do amor cortês. Tendo sido iniciado na região da Provença, na França, o amor cortês é uma das características mais marcantes da poética trovadoresca. Tal corrente foi muito forte também na península ibérica, na qual houve diversas formas de expressões literárias trovadorescas, das mais satíricas às mais amorosas, sendo que essas últimas tratavam, principalmente, da relação entre um homem e uma mulher, considerando tanto os aspectos negativos quanto positivos de tal experiência amorosa. Dessa maneira, considerando as trovas amorosas, temos, como artefato artístico que registrou a expressividade dessa época, as cantigas de amigo e as cantigas de amor. Em ambas, podemos encontrar, de alguma forma, a idealização do relacionamento. Porém, no caso da cantiga de amor, há um especial destaque para o idealismo amoroso, pois, nesse tipo de poesia, temos, de forma exacerbada, a idealização da figura feminina: essa é tão perfeita ao ponto de ser inatingível. Dessa maneira, nessas cantigas, o eu-lírico deseja fortemente estar reunido com seu ser amado, pois, desse momento em diante, tudo estaria resolvido e em paz.

Esse conjunto de características do idealismo presente no trovadorismo, mais tarde, também estará presente no romantismo europeu como um todo. Como exemplo dessa persistência, tomemos aqui a obra icônica de Goethe, representante do romantismo alemão, A paixão do Jovem Werther (1774). Em tal obra, a personagem principal, Werther, leva ao extremo a idealização de sua amada, Charlotte, o que o induz a passar por diversos períodos de sofrimento, já que ele não pode tê-la para si devido ao casamento socialmente arranjado que a delega a outro homem. Na literatura romântica portuguesa, tem-se a presença do idealismo fortemente marcada nas obras de Camilo Castelo Branco. Tal escritor foi uma das figuras expoentes nesse período, sendo suas obras Amor de Perdição (1862) e Amor de Salvação (1864), símbolos de uma escrita marcada pelo idealismo. A título de exemplo, pode-se ressaltar o enredo de Amor de Salvação, o qual é marcado pela idealização das personagens femininas, primeiramente de Teodora, e, por fim, de Mafalda.

Já no fim do século XIX e início do século XX, é possível perceber, na produção literária portuguesa, a perpetuação de tal idealismo que está presente no romantismo europeu. Entretanto, a presença de tal idealidade na escrita portuguesa nesse período diverge da proposta romântica, definindo-se, assim, como característica principal do movimento saudosista, o qual, nesse momento, surgiu com aspectos bem específicos ligados às mudanças históricas pelo qual o país passava. É também por volta desse período que Florbela vive em Portugal, sendo assim é notória a influência que sua escrita sofrerá por tal corrente.

Para entendermos melhor tal relação entre o saudosismo e a escrita de Florbela Espanca, é necessário considerarmos o que coloca Priscilla Freitas de Farias, no artigo A construção de uma “rostidade” da subjetividade saudosista na poética de Florbela Espanca (1894 – 1930) (2013). Em tal texto, a autora faz uma contextualização importante para o entendimento dessa marca idealista na escrita portuguesa. Como é colocado, no fim do século XIX e início do XX, a sociedade portuguesa passa por uma instabilidade sociopolítica que se agrava com a queda do Império e o estabelecimento da República. Nesse processo extremamente rápido de mudanças estruturais, a sociedade se depara com situações desumanas devido à crise econômica a qual o país enfrentava. Face à fome e pobreza extremas, os poetas desse período, então, desenvolveram sua poética saudosista, que buscou rememorar um passado glorioso distante, por isso, como aponta a autora, os escritores portugueses de tal período visavam:

     (re)encaminhar Portugal aos tempos áureos de um passado glamoroso de muita pujança, fundamentando numa filosofia mitológica genuinamente portuguesa, em que a saudade e o neo-sebastianismo era a principal linha de conduta dos poetas (FARIAS, 2013, p. 5).

No caso da poética de Espanca, nota-se, principalmente em seus primeiros livros, como o conjunto de textos publicados entre 1915 e 1917, posteriormente intitulado Trocando Olhares, e no Livro de Mágoas (1919), a presença dessa perspectiva saudosista. Porém, no Livro de Mágoas e no Livro de Sóror Saudade (1923), o que Florbela coloca é um saudosismo inserido em um contexto de impossibilidade de concretização do que se deseja, pois tudo está perdido. Entretanto, na poética de tal livro, ainda se vê uma idealização do objeto de desejo. É diante da presença dessa figura idealizada, mas, ao mesmo tempo, da impossibilidade de realização que se instaura uma atmosfera de sofrimento. Nesse contexto, no Livro de Sóror Saudade, há a marca do claustro da sóror como símbolo desse aprisionamento causado por essa impossibilidade. Como exemplo, tem-se o poema “Prince Charmant…”[3], publicado em 1923, presente no livro anteriormente citado. Nele, como já anuncia o título, é evocada uma das figuras mais emblemáticas da idealização amorosa, o príncipe encantado. Tal “audaz cavaleiro”, como assim é descrito no poema, não se encontra presente e, então, o sofrimento se instaura pela não realização amorosa com o objeto idealizado. Então, a sóror permanece em seu claustro sonhando com um objeto idealizado que nunca teve.

No que diz respeito aos poemas presentes em Charneca em Flor, é possível notar o ponto inovador em sua obra, pois, nela, e, mais especificamente, no poema     “Supremo Enleio”, foco da presente análise, a poeta desbanca essa construção do idealismo amoroso sucessivamente repetida na literatura e até mesmo em seus livros anteriores. Além disso, ela traz outra resposta a esse sofrimento presente em suas obras poéticas anteriores. Isso fica claro logo no início do poema em “Quanta mulher no teu passado, quanta!”, pois, ao indiciar essa pré-existência de outros relacionamentos amorosos, o eu-lírico quebra com o ideal de singularidade do amor presente na história e, a partir da multiplicidade subjetiva, também subverte a busca idealista pela identidade. Nesse sentido, a idealização amorosa se constrói a partir desse amor incorruptível e etéreo, o qual não se vê presente em Supremo Enleio. O eu-lírico em Florbela encontra artimanhas que quebram com o ciclo do idealismo amoroso e, por consequência, rompem com o sofrimento recorrente quando tal idealismo não é alcançado, o que foi frequentemente estabelecido na história do Amor.

A partir disso, nota-se, nos poemas de Charneca em Flor, a presença da physis, termo grego utilizado para definir a natureza. Entendendo que tal termo remota à filosofia clássica, é preciso entender como tal concepção foi formulada para, então, analisarmos tal ponto no poema de Florbela. Na Grécia Antiga, dentre as inúmeras correntes filosóficas existentes, localiza-se o período dos pré-socráticos, no qual existiram várias definições divergentes com relação ao termo “physis”. Nesse artigo, vamos nos deter na perspectiva de Heráclito, pois sua filosofia será importante para entender outros pontos que discutiremos mais adiante. Tendo ficado reconhecido por sua famosa colocação sobre a impossibilidade de atravessar o mesmo rio duas vezes, já podemos ter uma vaga ideia de como Heráclito entende a natureza. Dessa forma, como coloca Iber:

Sob a physis não deve ser compreendido a natureza em contraste com o nomos (o feito pelos homens), mas sim com a estrutura da essência crescida das coisas, que cada vez mais aponte para uma essência escondida ou uma origem da qual ela deriva. (IBER, 2013, p.77)

Em outras palavras, para Heráclito, a physis deveria ser entendida entre esse jogo de (des)velamento das coisas (entre a essência crescida, desvelada, e a essência escondida, velada). Nesse ponto, ele apreende uma das características principais da natureza: a eterna mutabilidade dos seres. Dessa forma, nessa troca estabelecida por Heráclito entre o escondido e o desvelado, a natureza revela sua essência e determina a existência dos seres.

Tal abordagem, na poesia, faz com que o caminho percorrido pelo eu-lírico, para escapar à angústia da separação amorosa, seja pela compreensão da efemeridade da relação – assim como se compreende a passagem das estações do ano, fugindo, assim, do sofrimento da ausência. Na poesia, é perceptível a compreensão do eu-lírico no que diz respeito ao crescimento e morte dos elementos da natureza, incluindo a própria relação amorosa, o que dialogia com a perspectiva heraclitiana de physis. Apesar das lamentações no início, como em “Quanta mulher no teu passado, quanta! Tanta sombra em redor! Mas que me importa?”, o eu-lírico entra em acordo com a realidade assim que a natureza aparece como conciliadora da situação[4]. A partir dessa questão, surgem os elementos do tempo e o panteísmo, características marcantes do poema. Vejamos primeiro como se estabelece a relação entre a physis e o tempo.

A presença do tempo como ferramenta da natureza será responsável pela reestruturação do Todo. Percebe-se, nesse ponto, que a ideia de um tempo reconstrutor se alia novamente com ideais pré-socráticos, mais especificamente com a filosofia de Heráclito. Sabendo que era comum, nesse período da Antiguidade Clássica, a busca de explicações para a vida na natureza e para seus fenômenos, é possível encontrar na filosofia heraclitiana uma ponte que liga a passagem do tempo às questões da physis. Em sua filosofia, Heráclito entendia que a passagem do tempo, por mais que, a nível individual, causasse a deterioração do ser, em uma macroperspectiva, era o que reconstruía as coisas:

O Tempo, considerado como o infindável processo de reconstituição dos caracteres do mundo, garante a continuidade da vida, pois que, mesmo com o iminente perecimento das formas individuadas do existir, o nascimento de novos seres é garantido pela poderosa ação criativa da natureza. (BITTENCOURT, 2011, p. 145)

Tal aspecto é crucial para a realização do que promete o título do poema “Supremo Enleio”, pois é por meio dessa relação que o eu-lírico estabelece com o tempo da natureza que o “enleio” se torna “supremo”. Nesse ponto, ainda sobre a relação estabelecida com a natureza no poema, podemos depreender mais uma questão. Vemos, na poesia, uma perspectiva panteísta[5] bem definida, que liga todos esses elementos da natureza (tempo e physis) ao eu-lírico. Sobre esse termo, assim como o termo physis, muito pode ser dito. No ensaio “Deus e Natureza, o panteísmo em Florbela Espanca e em Alberto Caeiro” (2012), Delmiro, Forconi e Do Vale apontam para diversas noções de panteísmo existentes no mundo.

Em princípio, como colocam as autoras do ensaio, o panteísmo pode ser identificado como uma concepção que une a divindade com o universo (FERREIRA, 2002 apud DELMIRO, FORCONI, DO VALE, 2012, p. 33).Contudo, para analisar “Supremo Enleio”, faz-se necessário nos atentarmos para outra interpretação sobre o panteísmo presente na obra de Florbela Espanca. Ao analisarem o poema “Exaltação”, publicado no Livro de Sóror Saudade (1923), as autoras colocam que é possível “identificar outro tipo de panteísmo”, “o pansensualismo, no qual a natureza se funde ao corpo, evidenciando o desejo, o erotismo” (DELMIRO, FORCONI, DOVALE, 2012, p. 33). Tendo em vista o poema analisado neste artigo, essa mesma percepção parece ser empregada.

No poema, tal fato se dá na comunhão do eu-lírico com os elementos da natureza. Dessa maneira, nota-se que, pelo fato de o eu-lírico considerar a relação amorosa componente de algo maior, ou seja, de um Todo, ele se entrega a essa grandiosidade da Natureza, o que também é responsável pela sua conciliação com a ausência amorosa. Em vários versos, o eu-lírico se coloca como, ao mesmo tempo, pertencendo e sendo a Natureza, como pode ser visto no início da segunda estrofe:

Erva do chão que a mão de Deus levanta

Folhas murchas de rojo à tua porta[…]

Quando eu for uma pobre coisa morta

(ESPANCA, 2015, p.110)

Podemos ver esse aspecto sendo repetido no primeiro terceto do poema, no qual o eu-lírico se eleva ao nível das estrelas e dos períodos do dia para explicar ao seu amor como tudo tornará a acontecer entre eles, assim como esses elementos da natureza também terão seu ciclo. Nessa parte, especificamente, nota-se com mais destaque o pensamento panteísta na obra de Florbela, ao vermos a imagem construída pela poeta no verso “Hás de ver-me, beijar-me em todas elas”. Nele, temos o encontro do eu-lírico com a physis, o que, sendo marcado pelo pronome indefinido “todas”, confere às figuras femininas uma diversidade, adquire o caráter panteísta.

Por fim, o que chama a atenção nesse poema de Florbela Espanca é a superação do idealismo pela multiplicidade e a perene transitoriedade da physis, como forma de subverter o sofrimento, a “saudade”. É interessante notar os pontos transgressores de tais abordagens levando em consideração o contexto social em que se insere a produção dessa obra. Primeiramente, a abordagem do amor de Florbela pelo viés panteísta beira o paganismo, por ressaltar um indivíduo pertencente ao Todo, mas também participante de todo esse ciclo eterno da natureza, elementos tais que fogem da perspectiva cristã.

No que diz respeito à passagem do tempo, o que é colocado em questão é o correr natural do tempo, a temporalidade da natureza. Então, o olhar para uma percepção linear dos acontecimentos é deslocado para uma proposição cíclica. Dessa forma, a relação estabelecida entre as duas pessoas no poema é de um ciclo natural da vida, em que o amante ficou com outras e ficará com mais algumas, mas em todas será o eu-lírico feminino, identificado com a multiplicidade dos seres semelhantes (as figuras de mulheres), quem permanecerá com ele. Tal característica também foge da perspectiva cristã, que prega uma ordem linear para os acontecimentos da vida, os quais terão um fim no paraíso (o descanso final). Em “Supremo Enleio”, o início e o fim de tudo é a fisicidade do corpo feminino.

A MELANCOLIA NARCISISTA EM MAYSA

Um dos maiores sucessos da carreira de Maysa Matarazzo foi a canção “Ouça”, que retrata o ponto de vista do sujeito lírico feminino ao descrever o relacionamento com seu amado, que se coloca indiferente em relação aos sentimentos da mulher, enquanto esta sofre por uma desilusão amorosa, mas prefere se impor sobre suas angústias e tentativas falhadas para reconquistar a relação. Dessa forma, esse sujeito poético feminino resolve encerrar de vez o relacionamento, mesmo que esteja com as emoções abaladas e ambíguas sobre o término. É possível perceber a dualidade do eu-lírico: a figura de uma mulher frágil, abandonada e carente — muito semelhante àquela submetida ao modelo patriarcal da época —, mas também a imagem de uma mulher que se liberta de um relacionamento falido e infeliz. Assim, durante a canção, os sentimentos de frustração, confusão, decepção e libertação são perceptíveis ao ouvinte, no que diz respeito ao relacionamento:

Ouça, vá viver

Sua vida com outro bem

Hoje eu já cansei

De pra você não ser ninguém

 

O passado não foi o bastante

Pra lhe convencer

Que o futuro seria bem grande

Só eu e você

 

Quando a lembrança

Com você for morar

E bem baixinho

De saudade você chorar

 

Vai lembrar que um dia existiu

Um alguém que só carinho pediu

E você fez questão de não dar

Fez questão de negar

Quando a lembrança

Com você for morar

E bem baixinho

De saudade você chorar

 

Vai lembrar que um dia existiu

Um alguém que só carinho pediu

E você fez questão de não dar

Fez questão de negar

(MAYSA, 1957).[6]

A partir de Luto e Melancolia, de Sigmund Freud, é possível entender que o eu-lírico em “Ouça” passa por um processo de melancolia e luto acerca dos seus sentimentos e da separação amorosa. Para entender esses conceitos, faz-se necessário entender o conceito de libido, definido, pela análise freudiana, como a energia dirigida ao objeto do desejo. Como consequência da perda do objeto de desejo, figurado pela libido, são desencadeados os dois sentimentos citados anteriormente, luto e melancolia.

A priori, por um lado, o luto é entendido como a perda de tal objeto que acarreta a dedicação excessiva. Assim, o trabalho de luto, que não é natural, ocorre por meio da retirada do investimento libidinal sobre o objeto perdido. Então, no trabalho de luto, o sujeito renuncia à relação amorosa, de forma resistente ao abandono, que pode ser inesquecível e interminável, a fim de parar de investir na permanência deste objeto. Já a melancolia, manifestada por um luto que não consegue se fazer, ocorre como uma acusação sobre alguém ou algo, que não é identificado pelo sujeito, ou seja, não se sabe diferenciar “o que perdeu” de “quem perdeu”, por exemplo. Entende-se que há uma perda idealizada, porque o objeto de amor não morreu, mas foi perdido como objeto de amor.

Ao trabalhar a melancolia, é importante entender outros conceitos freudianos, os quais são igualmente evidentes na canção, como o narcisismo e a identificação. Segundo Freud, o amor e a relação libidinal ocorrem por meio da identificação do sujeito com o objeto, de tal forma que é possível inferir que há uma eloquência do melancólico, ou seja, que se expressa de maneira eufórica e excessiva, de tal modo que as queixas deste são reclamações. Assim, as reclamações e recriminações dirigidas a um objeto amado são retiradas do objeto e dirigidas para o eu, de tal forma que o sujeito se recrimina para recriminar o outro. Tal fato pode ser visto no início da canção de Maysa: Hoje eu já cansei / De pra você não ser ninguém”, em que se percebe que, ao realizar essa comparação e afirmar que é “ninguém”, a figura feminina direciona uma reclamação ao amado, pois este não reconhece o valor dela.

Concomitantemente, Freud infere, em sua análise, que “a sombra do objeto cai sobre o eu” (FREUD, 1917, p. 108), o investimento da carga do objeto é recolhido para o eu, produzindo a identificação do eu para com o objeto que foi abandonado. Consequentemente, a identificação julga o eu como julgava o objeto, assim a perda do objeto transformou-se em uma perda de aspectos do eu e, inconscientemente, a identificação modifica o eu, pois é este que recebe a crítica. Nesse ponto, é importante entender que há, na canção de Maysa, uma ligação direta com o conceito de narcisismo freudiano, no qual o sujeito trata a si mesmo como objeto, um objeto de amor para si mesmo e ocorre um redirecionamento de libido. Assim, ao citar que ““Vai lembrar que um dia existiu / Um alguém que só carinho pediu” (MAYSA, 1956), é interessante observar como o eu lírico se coloca como objeto da ação, de forma a realizar a crítica de si por suas atitudes não bastarem para a sustentação do relacionamento amoroso. De tal forma que pode-se perceber a perda da identidade que era encontrada no antigo relacionamento, que se ausentou durante o processo de separação. É visto, então, a apresentação de uma autoimagem ao estar com o seu amado e, quando ocorre o desenlace amoroso, a identidade é como um espelho que se quebra com a partida do amante.

Uma perda de reconhecimento pode ser observada na primeira estrofe: “Hoje eu já cansei / De pra você não ser ninguém” e em “O passado não foi o bastante / Pra lhe convencer”. Assim, o eu-lírico, ao ter o “choque de realidade” em relação à perda do seu amado e ao fim do relacionamento, desenvolve um sentimento de tomada de consciência por parte da figura, visto que há a percepção de que o investimento afetivo na relação aconteceu somente por parte dela.  É possível realizar uma análise pelo viés de Pedro de Souza, em sua obra A propósito do corpo feminino na voz: a dor que se transmuta nas cantoras do rádio, que afirma que, devido ao tom de voz, arranjos sintáticos da canção e até mesmo na respiração da cantora, ocorre o tom melancólico citado anteriormente: “Já em Maysa a afecção corporal é matéria-prima do canto. Nela, o corpo afetado de paixão ancora uma voz solta no limiar das frases melódicas que entoa” (SOUZA, 2009, p. 143).

Ao realizar a queixa da situação ocorrida, o “eu” também realiza uma queixa de si mesmo, o que faz com que ele se torne o próprio motivo de críticas e degradação, porque, assim como na canção, o sujeito reflete e se queixa de não ser ninguém. Pode-se citar a partir do trabalho freudiano que “no luto, porque o objeto desapareceu, o mundo se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu” (FREUD, 1917, p. 251), pois ocorre essa identificação do eu e dos sentimentos de ausência a serem trabalhados, que se manifesta não pela falta ou vazio, mas sim por esta presença maciça do objeto. Maysa rompe com as expectativas de sua época ao negar a melancolia eterna, a qual relega à mulher o papel de espera do retorno do objeto amado. Assim como pode-se perceber que existe um tom melancólico na canção, é também na melodia e voz de Maysa que ecoam os sentimentos amorosos e a intenção de uma mudança de rumos no relacionamento, como apresentado por Souza,

Antes de apontar para um estado de coisas sugeridos pelas letras, muitas vezes compostas especialmente para a voz feminina, proponho que a performance vocal não remete nem para o conteúdo, nem para a pessoa que canta, mas para o sujeito que se faz enquanto canta. (SOUZA, 2009, p. 140)

A partir do estudo acerca da melancolia do sujeito, vemos dois conceitos importantes para a análise da psique humana: o sadismo, que se caracteriza pelo prazer em ver o sofrimento do outro e, consequentemente, a ambivalência, que se dá pela dualidade das pulsões de morte e de vida, e, no processo de luto, é percebido pela dualidade de sentimentos direcionado ao objeto. Seguindo essa análise, a partir do direcionamento de amor para o objeto perdido, que não pode ser abandonado, há também uma identificação narcisista, que acredita no ódio, possibilitando o sujeito de insultar, humilhar e fazer sofrer como maneira de autopunição, vingança e tormento[7]. Na canção de Maysa, vemos a questão da dualidade de emoções amorosas e da ambivalência com o sentimento melancólico, como se pode observar em: “E bem baixinho / De saudade você chorar”, quando, mesmo ao sofrer com o término do relacionamento, ela deseja que, no futuro, o seu amado seja atormentado pelas mesmas sensações, pelo arrependimento, e que sinta saudade da relação, da mesma forma que ela se sente no momento.

Dessa maneira, consoante os estudos freudianos em torno da melancolia, o sujeito desenvolve uma identificação narcísica com o objeto, pois, a partir do momento em que o sujeito “dá queixa” que houve uma perda deste objeto, ele se põe como objeto da ação, ou seja, a partir do questionamento de si mesmo, há uma idealização do “eu” e é nesse momento que o sujeito se desprende da melancolia e do trabalho de luto, porque ocorre uma perda de libido — não há mais energia dirigida para o amado, assim como se pode notar no final da letra de Maysa: “Vai lembrar que um dia existiu / Um alguém que só carinho pediu”, que representa a decisão do eu-lírico de colocar um “ponto final” em seu relacionamento.

De tal forma, a partir da análise de Roland Barthes, em seu livro Fragmentos de um discurso amoroso, em um primeiro momento da música, é possível perceber o que o autor nomeia o estado de insuportável, sendo esse descrito da seguinte forma: “O sentimento de um acúmulo de sofrimentos amorosos explode neste grito: “isso não pode continuar!” (BARTHES, 1981, p.132). Tal estado se faz evidente nos primeiros versos da canção: “Hoje eu já cansei / De pra você não ser ninguém” e “O passado não foi o bastante / Pra lhe convencer”, em que se pode constatar que o eu-lírico feminino possui uma visão diferente do relacionamento em oposição ao seu amante, porque percebe o estado de exaustão na relação e, a partir dessa perspectiva, não é possível que o relacionamento tenha continuidade. Na tradição, do ponto de vista social, existe uma visão comum de que as mulheres tendem a suportar o “insuportável”, mas não é isso que encontramos na canção de Maysa, em que a figura feminina toma a iniciativa de dar um ponto final à relação.

Ainda pensando na obra de Barthes, é possível depreender outra relação entre um termo cunhado por este autor e a canção de Maysa. Quando Barthes fala sobre os “importunos”, ele diz o seguinte: “Pequenos ciúmes que tomam conta do sujeito apaixonado quando ele vê o interesse do ser amado captado e desviado por outras pessoas […]” (BARTHES, 1981, p.126). Na música, nota-se uma suposta infidelidade por parte do objeto amado, o que, em um relacionamento aos moldes tradicionais da época, quebra com o pacto de confiança entre os amantes, gerando, assim, o seguinte conflito: “Ouça, vá viver/ Sua vida com outro bem […] “Que o futuro seria bem grande/ Só eu e você”. Assim, é possível observar que o eu-lírico da canção de Maysa possui um posicionamento diferente com relação ao sentimento de insuficiência e à presença de um relacionamento extraconjugal.

Nesse caso, fugindo dos “importunos” retratados por Barthes, o eu-lírico inicia o desenlace do objeto amoroso, desvinculando-se, assim, de mais um papel formulado para a mulher, da qual é esperada que sofra de tais importunos, sendo até esperado que ela entre em disputa com outra mulher envolvida na possível relação de infidelidade pelo objeto amado. Uma das principais características da artista Maysa Matarazzo[8] é a referência a elementos de sua vida pessoal e amorosa por meio da música.  Entre as canções que remetem a esses traços autobiográficos, está “Ouça, cujo lançamento ocorreu em 1958 e que foi escrita a partir do divórcio da cantora com André Matarazzo, como ela própria declarou em sua entrevista concedida à Rádio Ouro Verde, em 1976:

– O [samba-canção] “Ouça” foi durante [risos]. O “Ouça” foi justamente durante [a separação de André Matarazzo]. Eu estava sentada, chateada, esmorecida, doente, chateada, em cima da cama quando o André chegou e eu disse “ouça isso aqui”. O “Ouça” saiu assim como sai uma carta. Da primeira frase à última, ela saiu com um recado. Ele olhou aquilo e disse: “mas isso o que é?”. Eu disse: “isso é quase um bilhete pra você”. (MAYSA, 1976)

A música explora o ponto de vista feminino sobre uma separação e foi muito bem correspondida pelas mulheres da época, como dito por Ronaldo Aguiar, em sua obra As divas da Rádio Nacional:

As donas de casa morriam de dó ao ouvi-la – e especulavam sobre a vida da moça narrada naquela letra repleta de tristeza e sofrimento. (AGUIAR, 2010, p. 41)

Tal situação de ausência de representação se dá, principalmente, por um impedimento de que as mulheres expusessem seus pensamentos, o que, consequentemente, levou a um impedimento sistemático de acesso aos meios de comunicação, dentre eles a música.  É a partir da oportunidade de se usar a voz e ecoar os sentimentos para todos, que Maysa desempenha um papel muito importante para a história da música brasileira, pois enxerga-se a ocupação em um espaço predominantemente masculino. Como vemos em:

Não interessa saber se a faculdade de entoar a voz no canto é um dom de poucas, embora esse imaginário acerca do talento para o canto fosse dominante na era do rádio. Trata-se tão somente do espaço que o dizer cantando abre para dar existência a mulheres que não podem falar, justamente porque reduzidas à condição de lugar vazio numa ordem discursiva em que, para todos os efeitos, apenas os homens detêm direito e voz. Em outros termos, trata-se de pensar a cantora do rádio em uma modalidade de enunciação no interior da qual importa mostrar esse si sobre o qual a voz exerce uma dobra exterior, ponto preciso em que se representa a mulher por vir no ato mesmo de cantar. (SOUZA, 2009, p. 141)

Em Minha História das Mulheres, Michelle Perrot retoma o caso de Manon Roland, a fim de exemplificar qual foi o papel das mulheres, principalmente, durante o século XVIII, este que inicia um olhar mais humanizado para a participação feminina no cenário social e político, o qual foi progressivamente construído ao longo de séculos de silenciamento. No livro em questão, Perrot aborda o conflito entre o ideal de mulher que havia por parte da família de Mme. Roland e o interesse desta pelos estudos e pelas ciências humanas. Em sua época, Madame Roland, figura importante durante o período da Revolução Francesa, contrariando as expectativas familiares, aprofunda-se em seus estudos e escreve, principalmente, sobre como a educação da mulher é subestimada e desvalorizada dentro da academia. Dessa forma, Michelle Perrot observa:

Escrever foi difícil. Pintar, esculpir, compor música, criar arte foi ainda mais difícil. Isso por questões de princípio: a imagem e a música são formas de criação do mundo. Principalmente a música, linguagem dos deuses. As mulheres são impróprias para isso. Como poderiam participar dessa colocação em forma, dessa orquestração do universo? As mulheres podem apenas copiar, traduzir, interpretar. (PERROT, 2007, p. 101)

Ao colocar seus problemas pessoais em suas canções, Maysa permite que outras mulheres comecem a ouvir diferentes formas de se retratar um relacionamento, repercutindo, assim, todos os ideais inovadores da canção já mencionados no presente trabalho. Assim como a canção ao retratar sentimentos reais e de conhecimento de uma parte da população, percebe-se que:

Parto então do universo discursivo no qual as cantoras emergem, isto é, no contexto em que tudo o que uma mulher pode dizer publicamente de si vem como já dito, já inscrito em domínios de memória que o ato de cantar leva instantaneamente ao esquecimento. Refiro-me aos elementos biográficos que, no mundo do show business, precedem e são contemporâneos à exposição do artista e sua arte. Assim como entre as estrelas hollywoodianas, também entre as cantoras brasileiras do rádio o que se escrevia e dizia de sua vida pessoal era constitutivo do seu modo de ser, o mesmo que determinava seu destino de artista. (SOUZA, 2009, p. 140)

Além do lirismo literário presente na letra de “Ouça”, é importante, também, refletir acerca da musicalidade da canção. De acordo com a análise de Roland Barthes, em O Grão da Voz[9], a voz serve como ato de enunciação e não somente como ordem discursiva. Pode-se perceber que, por meio desses fatos, tais elementos, a voz e enunciação, abordados acima, podem ser entendidos a partir de outra análise, para além da composição, centrada em como a voz da cantora ecoa de uma maneira íntima e sublime.

Trata-se de algo que pode ser concebido também a partir da análise de Pedro de Souza (2014), que diz o seguinte sobre a interpretação cancional de Maysa: “Nela o ato de cantar apareceu como efeito do desmoronamento subjetivo que detinha em si o ponto central de sua enunciação” (SOUZA, 2014, p. 16). Portanto, pela música, Maysa pode ser ouvida e escutada, não somente por seu marido, André Matarazzo, interlocutor direto do texto, mas, principalmente, por toda uma comunidade feminina e brasileira e, dessa maneira, o cansaço do eu-lírico em insistir no relacionamento e a sublimidade na música fazem ecoar no plano coletivo o sentimento do sujeito lírico feminino e, também, o seu desejo de estar presente no cenário musical. É por meio do lirismo, da voz e de sua articulação com a melodia que a artista expressa a sua perspectiva pessoal sobre a experiência amorosa, com a qual tantas pessoas se associam por meio da identificação.

PULSÕES DE LIBERDADE

Tendo analisado as duas formas de desenlace apresentadas, é possível notar como ambas as artistas são transgressoras em seu tempo e cada uma a seu modo, ao percebermos que o poema e a letra foram lançados em períodos anteriores aos grandes movimentos da luta feminista do fim dos anos 60, ocorridos na Europa e nos Estados Unidos. Dessa forma, Maysa e Florbela, ambas ao século XX (Maysa nasceu na década em que Florbela deixou este plano), encontram-se em sociedades extremamente religiosas e patriarcais, as quais impingiam um papel angelical e recatado às mulheres.

Contraditoriamente ao esperado de seu papel como mulher, Florbela Espanca promove uma quebra com o ideário romântico milenar e traz o seu corpo para cena. Em “Supremo Enleio, assim como em boa parte de Charneca em Flor, livro em que tal poema é publicado, a autora concede ao eu-lírico a possibilidade de sentir e de expressar sensualmente seu amor ao trazer o corpo numa perspectiva panteísta. Estabelecendo uma poética do amadurecimento pelas vias da natureza, a autora rompe com as barreiras do amor feminino restrito em sua época, quebrando, assim, com questões como a busca pelo happy-end. Ao realizar tal rompimento, Florbela provoca uma rachadura de igual forma no papel de “princesa” comumente presente nas fábulas de amor e recorrentemente imposto sobre as mulheres, na medida em que renuncia a qualquer pedestal socialmente convencionado para reconhecer-se como parte de uma (comum)idade pautada pela multiplicidade dos corpos femininos no fluxo temporal cíclico da physis. Essa cisão, ocorrida no âmbito da poesia, abre brecha para o florescimento de uma outra relação com o amor e consigo mesma, permitindo à mulher um novo papel na relação, muito mais ativo.

Já Maysa, também a seu modo, rompe com a idealização amorosa. Em sua canção, a cantora dá voz ao lado feminino do amor. Não sendo tal fato suficiente, Maysa quebra ainda mais a idealização ao abandonar o papel da mulher que espera a volta do amado, como foi bem colocado por Barthes, e assume, assim como Florbela, um papel proativo no relacionamento amoroso. Nesse momento, ela assume suas vontades e as vocaliza, cantando para o mundo ouvir, passando, assim, a determinar seus limites na relação, que antes eram controlados exclusivamente pela figura masculina. Além disso, Maysa, ao entoar seu descontentamento com o relacionamento falido, expressa sua opinião com relação ao papel do homem, ao qual ela deveria se submeter passivamente.

Portanto, vemos em Maysa e em Florbela pulsões de liberdade. Liberdade em relação ao aprisionamento do papel e das vontades femininas. E, apesar de ter havido muitas mudanças sociais, políticas e culturais desde a composição dessas duas obras, vê-se, em mulheres das épocas vividas pelas duas artistas, respectivamente, um princípio de independência que foi crucial para as reivindicações feministas da segunda metade do século XX. Ao dar voz aos anseios femininos sobre o amor, sem que haja necessidade de passar por algum tipo de juízo masculino, Florbela Espanca e Maysa Monjardim quebram com o dualismo escandalosa-piedosa descrito por Michele Perrot na epígrafe deste artigo, possibilitando ao eu-lírico feminino não apenas se expressar, mas também se reinventar em suas relações, ocupando, assim, um papel ativo nesse âmbito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BITTENCOURT, Renato Nunes. Um dilema pré-socrático. A natureza do tempo em Anaximandro e Heráclito. Nearco: revista eletrônica de antiguidade. v. 1, n. 7, 2011. Rio de Janeiro: UERJ/NEA, 2011.

BARTHES, Roland.  Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortênsia dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981.

BARROS, José D’Assunção. Os trovadores e o amor cortês – Reflexões historiográficas. Aletheia – Revista da Universidade Federal de Goiás (UFG). ISSN: 9999-9999. Ano 1, v. 1, n. 1, abril/maio de 2008.

DAL FARRA, Maria Lúcia. A condição feminina na obra de Florbela Espanca. Revista EPA, [s.l.], n. 5, p. 111-112, 1985.

DELMIRO, Ísis; FORCONI, Daniela, DO VALE, Fernanda.  Deus e Natureza: O panteísmo em Florbela Espanca e em Alberto Caeiro. Revista Ao Pé da Letra, [s.l.], v. 14.1, p. 25-39, 2012.

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FREUD, SIGMUND. Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileiras das Obras Completas de Sigmund Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1917 [1915]/1974.

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IBER, Christian. Logos, Physis E Dialética Em Heráclito De Éfeso. Revista Philia&Filia, Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 72-88, jan./jul. 2013. ISSN 2178-1737.

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PERROT, Michelle. Minha História Das Mulheres. Tradução: Angel M. S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2007.

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SOUZA, Pedro de. A voz em desatino. Dizer a si na palavra cantada. In: BALDINI, Lauro José Siqueira; SOUSA, Lucilia Maria Abrahão e. (Org.). Discurso e sujeito- trama de significantes. 1. ed. São Carlos: EDUFSCAR, 2014. v. 1. p. 99-120.

SOUZA, Pedro de. A propósito do corpo feminino na voz a dor que se transmuta nas cantoras do rádio. LEITURAS DE RESISTÊNCIA. In: TORNQUIST, Carmen Susana et al. Leituras de resistência: corpo, violência e poder. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2009. p. 528.

 


 

Notas:

[1] Poema Supremo Enleio, de Florbela Espanca declamado por Mundo dos Poemas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AU5Yrwxt2Bg. Último acesso em: 30 de novembro de 2022.

[2] “As origens iranianas e órficas do platonismo são ainda mal conhecidas, mas indubitáveis. E, por intermédio de Plotino e do Areopagita, essa doutrina foi transmitida ao mundo medieval. Assim, o Oriente veio povoar nossos sonhos, despertando lembranças muito antigas.” (ROUGEMONT, 1988, p.50).

[3] ESPANCA, Florbela. Prince Charmant. Antologia poética de Florbela Espanca. São Paulo: Martin Claret, 2015, p. 68.

[4] Destaca-se nesse ponto o terceiro e o quarto verso do poema, pois ao ter se fundido com a natureza, pois se transforma em manhã, entende que seu amor tornará a ocorrer.

[5] Termo panteísta: “identifica Deus com tudo o que existe, assumindo, em última análise, um conjunto de suas revelações e realizações” (DICIONÁRIO MICHAELIS).

[6] Música Ouça de Maysa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gsXrCB5fx2k. Último acesso em: 30 de novembro de 2022.

[7] “Se o amor pelo objeto – um amor que não pode ser renunciado, embora o próprio objeto o seja – se refugiar na identificação narcisista, então o ódio entra em ação nesse objeto substitutivo, dele abusando, degradando-o, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento.” (FREUD, 1917, p. 256-257).

[8] Nome de casada da artista.

[9] BARTHES, Roland. O grão da voz. 1. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2004.