Manifesto Antropófago: o nacionalismo como movimento dialógico da diferença

Aline Milena Borges da Silva Dias, Thalyta Reis de Souza

RESUMO

O modernismo, especialmente em sua primeira fase, foi um movimento cultural, artístico e literário de reformulação da identidade nacional brasileira. Na literatura, o conceito de antropofagia, utilizado por Oswald de Andrade, demonstrou ser a assimilação da diferença um caminho adequado para revelar o potencial poético da nossa história e imagem, fora dos limites do nacionalismo ontológico, isto é, do retorno à origem e busca por um elemento idealizado que resguarde a verdadeira essência nativa. Assim, este ensaio analisa as principais contribuições do pensamento antropofágico para a formação literária nacional, a partir das ideias oswaldianas presentes no Manifesto Antropofágico (1983). Nesse contexto, o trabalho realizará um paralelo entre o conceito de antropofagia e as visões particularista e universalista propostas por Rouanet (1993).

PALAVRAS-CHAVE: modernismo; antropofagia; identidade.

ABSTRACT

Modernism, especially in its first phase, was a cultural, artistic and literary movement of reformulation of the Brazilian national identity. In the literature, the concept of anthropophagy, used by Oswald de Andrade, has shown that the assimilation of difference is an appropriate way to reveal the poetic potential of our history and image, outside the limits of ontological nationalism, that is, the return to origin and the search for an idealized element that protects the true native essence. Thus, this essay analyzes the main contributions of anthropophagic thought to the national literary formation, from the Oswaldian ideas present in the Anthropophagic Manifest (1983). In this context, the work will draw a parallel between the concept of anthropophagy and the particularist and universalist views proposed by Rouanet (1993).

KEYWORDS: modernism; anthropophagy; identity.

Em 1873, no ensaio Instinto de Nacionalidade, Machado de Assis tece um breve diagnóstico da literatura brasileira em seu processo de fundação, apontando como a busca dos autores por produzir matéria nacional limitou o tema das poucas obras aqui produzidas à representação do índio e da terra. A partir disso, sem adentrar no problema da idealização dos símbolos pátrios, o crítico desenvolve a tese de que ao escritor cabe – não apenas é possível – considerar as muitas possibilidades de assuntos de que dispõe o universo cultural da humanidade, para, mediante o “sentimento íntimo” (ASSIS, p.3), extrair algo que, não obstante o aspecto não local, o torne “homem de seu tempo e de seu país” (ASSIS, p.3). Assim, Machado brilhantemente antecipa o início da resolução de um aparente paradoxo, fomentado pelas sensíveis mudanças na conjuntura social, política e econômica do país, da literatura brasileira a partir do século XX.

Tal observação é importante porque, com a tomada progressiva pelos modernistas da consciência do servilismo literário, do qual o romantismo é um claro exemplo, surge o ímpeto de rejeição ao externo, isto é, dos temas, formas e estilos dos centros desenvolvidos, ao mesmo tempo que uma percepção amadurecida desses recursos, que leva a sua inclusão no conjunto literário nacional pelo entendimento da relação natural de diálogo entre os saberes e bens culturais produzidos ao longo do tempo. Desse modo, a tensão entre essas duas  perspectivas, uma particularista e outra universalista, mostra-se aqui condicionante de um processo de revisão literária que adquire força com o modernismo e  se estende até os finais da década de 60 com a Tropicália.

A seu tempo, o Modernismo surge como a manifestação coletiva da postura teórica individual machadiana de desnacionalização da literatura brasileira. Neste momento, a preocupação com o critério formal e estético cresce, em detrimento da busca por ver refletida nas obras a imagem da nação. Em especial, a primeira fase do movimento foi a mais revolucionária no tangente à crítica ao processo de entificação, uma vez que, nela, Oswald de Andrade, baseando-se no simbolismo dos rituais observados em tribos ameríndias, publica o segundo grande projeto libertador da literatura brasileira, o Manifesto Antropófago.

Por meio do signo da devoração, Oswald propõe em sua obra uma nova maneira de tratar a figura do estrangeiro, a qual compreende enxergá-lo como parte do eu nacional ao invés de um obstáculo à sua existência, pois não há mais o interesse de definir, mas sim de expandir o olhar sobre a própria identidade através da assimilação criativa do outro. Nesse sentido, o pensamento antropofágico possibilita a inversão da ordem de apropriação cultural, tendo em vista que, por meio da paródia ao símbolo romântico, cria a figura do “mau selvagem”, sujeito que, despido de docilidade e inocência, se “alimenta” do homem branco e dele extrai valores. Por conseguinte, a fusão material-simbólica das duas culturas acarreta a pulverização da hierarquia anteriormente existente entre colonizador e colonizado (CAMPOS, 2010).

Quanto a esse aspecto, Macunaíma, de Mário de Andrade, é reconhecidamente o retrato mais fiel da antropofagia oswaldiana, por demonstrar a condição precária, imponderável e heterogênea da identidade brasileira, agora autocomplexificada como resultado de uma observação crítica, sem a mediação de critérios preestabelecidos, que os modernistas lançam sobre a história do Brasil. A rapsódia conta a vida do “herói sem nenhum caráter”, a qual é marcada tanto por elementos da tradição folclórica nacional quanto do ambiente cosmopolita urbano, o que torna o eu macunaímico um ser ambivalente, resultante de uma espécie de “colagem” das diversas influências reunidas, ou, ainda, uma “identidade à deriva” (ROCHA, 2011).

A propósito, a presença do elemento urbano como símbolo de modernização é recorrente na produção modernista. Em Oswald, temos um exemplo no micropoema Oferta, no qual vê-se a apropriação explícita de um produto tecnológico (o elevador chegando ao Brasil no início do século XX) a instaurar profundas mudanças nas relações humanas, a partir de então mediadas pela velocidade e automatização de processos. Caso semelhante pode ser visto no conto Marabá, de Monteiro Lobato, desta vez sendo o cinema a criação estrangeira assimilada. Na obra de Lobato, há uma implicação formal, pois o roteiro cinematográfico é assimilado como estrutura narrativa. Já em Oswald, a inovação é explorada no plano do conteúdo, com o elevador sendo o elemento central a ressignificar a distância entre os amantes.

Para além disso, conforme Andrade (2022), o espaço urbano traz consigo a experiência multitudinária, marcada pela variedade de vida urbana e pelas diferentes relações que a constitui, “entre o individual e o coletivo, o micro e macro, o molecular e o molar, o subjetivo e o objetivo, o imaterial e o material, o efêmero e o permanente, o processual e o estrutural” (p. 12). Mais adiante, o autor coloca que a multidão representa uma presença caleidoscópica na cidade, “que envolve ações transitórias apreendidas parcial e momentaneamente em experiências fragmentárias e passageiras” (p. 12). Nesse sentido, é possível ver o reflexo dessa tendência coletiva na caracterização individual do anti-herói Macunaímico, metonímia do Brasil efervescente do início do século XX. O personagem tem como uma de suas características marcantes a instabilidade, na medida em que está sempre em passagem por diferentes espaços e em reformulação de sua natureza pela mistura de diferentes modos de ser, sendo já a própria forma de narrativa desses acontecimentos descontínua.

Paralelamente, a prosa antropofágica utiliza-se da cáustica ironia – afinal, conforme posto por Horácio, o que impede quem ri de dizer a verdade? – para ressaltar o fato de que “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses” (ANDRADE, 1928, p. 2). Desse modo, Macunaíma demonstra o importante papel da antropofagia no estabelecimento de “uma nova ideia de tradição (antitradição), a operar como contravolução, como contracorrente oposta ao cânon prestigiado e glorioso” (CAMPOS, 2010, p. 237). Num movimento dialógico, a obra liberta a identidade brasileira das amarras de um passado de imposição cultural e religiosa, cuja narrativa mitológica caricaturiza o nativo e o concebe como figura submissa e moldável ante o contato com o estrangeiro, incapaz de lidar ativamente com a influência externa.

Nesse contexto, a magnitude do feito de Mário está em não ter privilegiado a construção de um “rosto nacional” fixo enquanto dava forma a seu personagem, que é brasileiro. Desta forma, o autor promove um equilíbrio entre a particularidade da nação e o conceito de homem universal (ROUANET, 1993), quando, situando Macunaíma em território e grupo social específicos, não formula para ele uma verdadeira essência, ou seja, algo que, ao fim, feita a depuração em relação ao diferente, concederia-lhe a unidade, tão cara aos românticos.

Do mesmo modo, Oswald corrobora o desencontro com a herança romântica e submete o projeto essencialista a um estado de crise. Para tanto, vale-se também do humor com o intuito de desenvolver uma importante crítica e revelar o que até então estava sendo reprimido quanto à identidade do indivíduo brasileiro, a saber, a possibilidade de este não ser uma reprodução abrupta da catequese do colonizador, bem como a de ser nacional sem vestir a cor local, objetivando  refletir a própria nação. Dessa maneira, no aforismo “Tupi, or not tupi that is the question” (ANDRADE, 1928, p.1), o escritor, homologando seu próprio projeto antropofágico por meio da referência a Hamlet,  “ri das certezas”, ao propor, sob a fórmula de questionamento, a perturbação da ilusória segurança advinda da significação que recai sobre o eu nacional, com o fim de, desta forma, reaver à identidade brasileira elementos que foram significativamente desprezados ao longo da vigência da tradição particularista romântica.

Portanto, o Manifesto Antropófago lança as bases para uma  nova compreensão do Brasil, tendo em vista que a tácita aceitação de um estagnado e restrito modelo identitário nacional é compreensível apenas no contexto de uma “episteme ultrapassada” (ROUANET, 1993, p.54), da qual o paradigma romântico é tributária, combatida efusivamente no Manifesto no trecho “contra todos os importadores de consciência enlatada” (ANDRADE, 1928, p 1). Para Oswald, o problema da literatura nacional não consistia na importação dos recursos artísticos, mas no não reconhecimento dela, o que perpetuava o atraso brasileiro em relação à metrópole pela recorrência nas obras de suspeitosos regionalismos, como os de José de Alencar, que pouco acrescentaram ao projeto de construção da identidade brasileira. (CÂNDIDO, 2011)

Portanto, com o manifesto, Oswald inaugura uma nova fase na literatura brasileira, que passa, então, a ter a cara do século XX, período em que as cidades assistem ao despontar da urbanização. Em alusão a esta, o autor anuncia a chegada da “idade de ouro” e “todas as girls” (ANDRADE, 1928, p. 1), indicando, pela menção ao tempo e à cultura norte americana, seu desejo de promover uma “horizontalização”, ou seja, a colocação da literatura brasileira em pé de igualdade com a literatura ocidental, bem como de acompanhar a modernização e o progresso da indústria e tecnologia, já tematizados nas produções das escolas de vanguarda.

Logo, ao contrário do Romantismo, que pretendia incluir a literatura brasileira na ordem universal através da admissão de traços particulares os quais remontam à origem da nação, o Manifesto Antropófago torna a literatura brasileira ocidental quando a desnacionaliza, desvinculando-a da necessidade de se diferenciar, e de, portanto, aniquilar a marca de alteridade nas obras a fim de encontrar a si mesma em estado puro. Pensando estar descobrindo a identidade nacional, o Romantismo “morde a isca” do português ao reproduzir nos textos nacionais imagens que atendem a sua demanda de exotismo, o que reforça o estado ainda provinciano da literatura no Brasil. Nas palavras de Cândido (2011, p. 189), “[…] forma aguda de dependência na independência”. Em contrapartida, a antropofagia, tomada como “única lei do mundo” e  “expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz” (ANDRADE, O., 1928, p. 1), abarca em si a comunhão com o elemento externo, por entender ser a identidade nacional, a partir dele, transformada e enriquecida em  possibilidades de significação.

Consequentemente, a literatura produzida segundo estes moldes ganha em originalidade e potencial inventivo, pois materializa a comunicação constante e ininterrupta com o outro através do processo de releitura das obras, orientado em função da história negativa, a qual tira de foco o parâmetro cronológico e teleológico para dar vez à produtividade da influência. Seguindo esse raciocínio, Andrade (2022) traça um percurso de reflexão sobre como a pluralidade do próprio movimento Modernista só foi possível pela ausência absoluta de limitações culturais às novas ideias estética Assim, o autor mostra que as obras de caráter antropofágico passam a suscitar releituras tanto em seus elementos de composição quanto a nível de transcrição para outras linguagens. Como exemplo disso, cita a apropriação da temática indígena em Macunaíma, que até hoje gera reflexões e interpretações.

Com isso, o modernismo possibilita o distanciamento do escritor da procura de um centro estabilizador íntimo em seu trabalho, no qual residem as características que denotam uma especificidade, para reconhecê-lo como antropófago: ver o quanto de outros escritores carrega consigo e como isso tem servido de aprendizado a sua experiência pessoal. Em suma, o grande mérito da antropofagia está na superação da angústia oriunda do desejo de superar o que o outro produziu, em virtude do entendimento de que, sem isso, não haveria o eu.

Ainda, há em Oswald uma forte influência gilbertiana fundamentada na recusa de aceitar o mito romântico da origem nacional brasileira. Freyre defendia a sociedade dos trópicos, na qual o sujeito mestiço e multicultural era a solução para o problema do Brasil exótico, nas palavras de Oswald “o país da cobra grande”. Nesse sentido, também no manifesto antropofágico a proposta é de heterogeneidade, de adesão às influências e de assimilação do outro, o que só é possível no Brasil cosmopolita e plural, uma vez que assim a identidade e a cultura nacional podem ser complexificadas.

Por outro lado, a antropofagia não incorre no erro de apresentar uma nova definição do Brasil, como é possível pensar. Antes possibilita a abertura para a expressão da identidade brasileira tanto por uma chave particular quanto por uma universal, desde que não haja exclusivismos. Logo, o Manifesto Antropófago refuta a prática de exclusão de tudo aquilo que não corresponde ao conjunto dos elementos convencionalmente tomados como nacionais ou, em outro extremo, a reprodução desses como única forma de falar do Brasil.

Ademais, cabe destacar que a antropofagia oswaldiana não buscava um Brasil que sempre existiu, por acreditar que o Brasil não existia há tempo suficiente para construção de uma rígida identidade. Em vez disso, voltava seu interesse para as possibilidades de incorporações culturais no processo de criação da identidade brasileira. Assim, quando o movimento armorial em Ariano Suassuna se posicionou contra a abertura antropofágica, foi inevitavelmente combatido pelo modernismo e pela Tropicália. Afinal, aceitar a supremacia artístico-cultural das artes populares nordestinas significava “abrir mão” das infinitas formas de ser brasileiro. Apesar de não ser romântico, Suassuna retomou o pensamento particularista ao tentar recuperar através do maravilhoso, do mito e das lendas os elementos essencialmente brasileiros. Desse modo, ao priorizar uma única cultura, a sertaneja, o autor negou toda contribuição advinda das relações antropofágicas.

Em suma, a antropofagia viabiliza uma certa medida de equilíbrio entre as visões particularista e universalista ao conceber o nacional em um relacionamento dialógico e dialético com o universal, tal como mostra Campos (1992). Isso posto, é possível formular a noção de que o Brasil é compreendido no entre-lugar do eu e do outro, isto é, pensado no lugar de conversação entre diversas culturas. Em consequência, tem-se o alargamento do eu nacional por meio do gradual processo de assimilação e ampliação, evidenciado nas palavras de Oswald: “Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaig-ne. O homem natural. Rosseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos…”  (ANDRADE, 1928, p.1).

Assim, mediante o proposto neste breve percurso analítico, conclui-se que a mais importante contribuição do Manifesto Antropófago é desvencilhar a cultura e a literatura brasileira da excludente concepção do ser nacional e, concomitantemente, fundar o sujeito antropófago, o qual está sempre diante das mais inesperadas possibilidades que o afastam do determinismo e o encaminham a uma constante expansão cultural.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. Macunaíma. 22. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986.

ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropofágico. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 7ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1983.

ANDRADE, G. (org.). Modernismos 1922-2022. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Instinto de nacionalidade. In: Obras Completas de Machado de Assis, 3 vols. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1997.

CAMPOS, Haroldo de. Da Razão Antropofágica: Diálogo e Diferença na Cultura Brasileira. In: Metalinguagem e outras metas. Ensaio de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 1992.

CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.

CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2010

ROUANET, Sérgio Paulo. A Coruja e o sambódromo. In: Mal-Estar na Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SOUZA, Jesse. A atualidade de Gilberto Freyre. In: Gilberto Freyre em Quatro Tempos. KOSMINSKY, Ethel VOLFZON, LÉPINE, Claude, PEIXOTO, Fernanda Arêas (orgs.). Bauru, SP: EDUSC, 2003.