Os conflitos político-ideológicos em Viagens na minha terra, de Almeida Garrett

Giovana Amorim Mariano; Nathália Helen Machado Coêlho

 RESUMO: Este artigo propõe uma análise investigativa das ideologias políticas e seus conflitos na obra Viagens na minha terra, de Almeida Garrett. Perscruta-se o embate entre o liberalismo e o monarquismo, vigentes no Portugal do século XIX, por intermédio dos personagens da obra e da própria estrutura narrativa o que resulta na representação dialética da sociedade portuguesa. Do mesmo modo, busca-se compreender as tensões apontadas na obra entre o processo decadente da sociedade portuguesa e as mudanças histórico-sociais que visavam o progresso coletivo da nação lusitana.

PALAVRAS-CHAVE: Liberalismo; Monarquismo; Progresso social; Garrett; Viagens na minha terra.

ABSTRACT: This article proposes an investigative analysis of political ideologies and their conflicts in the book Viagens na minha terra, by Almeida Garrett. The clash between liberalism and monarchism, in force in Portugal in the nineteenth century, is examined through the characters of the work and the narrative structure itself, which results in the dialectical representation of Portuguese society. Likewise, it seeks to understand how tensions pointed out in the work between the decadent process of Portuguese society and how historical and social changes aimed at the collective progress of the Portuguese nation.

KEYWORDS: Liberalism; Monarchism; Social progress; Garrett; Viagens na minha terra.

 INTRODUÇÃO

“O que somos? O que fomos? O que queremos ser?”. Essas são as principais indagações levantadas por Almeida Garrett em Viagens na minha terra (DAVID, 2008, p. 1). Tais questionamentos orientam a narrativa ficcional, buscando trazer à memória um passado histórico de Portugal que possui profundas heranças, bem como recobrar a atenção dos leitores quanto ao progresso não alcançado no presente, advindo do embate entre liberais e conservadores. Desse modo, o autor traça uma série de críticas sagazes às ideologias com o perspicaz narrador/Autor.

EMBASAMENTO  FILOSÓFICO

Esse conflito político-social é perscrutado através da dialética hegeliana, a qual  é uma metodologia filosófica constituída por uma tríade de princípios/ideias lógicas encadeadas: tese, antítese e síntese. A primeira diz respeito ao estabelecimento de uma afirmação; a segunda adiciona e corresponde a um contraponto; a terceira seria o produto da contradição dos dois pressupostos, resultando na produção de unidade nova de conhecimento. Logo, por intermédio desta metodologia, seria possível compreender melhor a realidade e, por consequência, as problemáticas existentes em diversos âmbitos da sociedade. A inovação desse sistema consiste na possibilidade de atribuição de dinamicidade ao mundo através do princípio da contradição (JUSTINO, 2012). Assim, constata-se uma correspondência entre o panorama ideológico português da primeira metade do século XIX e a dialética hegeliana ao considerar-se que temos o partido dos conservadores como a tese (princípio), pois representa Portugal espirituoso, com forte influência clerical e monárquica (Antigo Regime) que vigorava há séculos. Tem-se a antítese apoiada por Garrett e pelo narrador burguês do livro (A.): os liberais, aqueles cujos ideais revolucionários foram emprestados da Inglaterra, os que visavam a reformas constitucionais. Todavia, a síntese não foi o resultado esperado por Garrett.

De outra perspectiva, ainda filosófica, tem-se os contratualistas, cuja cadeia de filósofos remonta ao século XVII. Eles debruçaram-se no estudo do estado de natureza do homem, bem como sua condição de vida em sociedade. Acreditavam que se estabelecia “contratos sociais” entre os indivíduos e o Estado em troca da garantia de certos direitos considerados inalienáveis ao ser humano; tal contrato seria responsável por alterar a essência natural do homem. Dentre esses contratualistas, destacam-se Jean Jacques Rousseau e Thomas Hobbes. Hobbes, em sua tese, defendia que a essência do homem era má e responsável por um caos, no qual uma guerra de todos contra todos era travada. Assim, acreditava na monarquia e na instituição de um estado autoritário e mediador. No entanto, Rousseau acreditava que a essência primitiva do homem era boa, referindo-se a uma condição pré-social do ser humano. Para ele, a sociedade era a fonte dos males e desigualdades, apenas atenuando certos conflitos entre os homens. Acreditava no “bom selvagem” que consistia em afirmar que o homem tem como essência inocência, liberdade, paz e igualdade; nesse estado não há conceitos como propriedade privada (MEDEIROS, et al, 2018).

Haja visto o exposto, observa-se que Viagens na minha terra é marcado pelos contrastes entre a natureza (pura) e a sociedade (corrompida), consoante a visão rousseauniana nos aspectos ligados à estrutura narrativa (comparações, contexto histórico, posicionamentos do narrador, personagens, suas simbologias e desfechos). Por outro lado, o livro é hobbesiano ao que concerne a apresentação do homem como conturbado e caótico, buscando algum tipo de centralidade e definição. Dessa forma, considera-se que a obra de Garrett relata o deslocamento da sociedade portuguesa em busca do progresso social, apoiando-se na filosofia da história. É importante mencionar que Garrett acreditava na importância dos estudos histórico-literários para o entendimento de nação (CUNHA, 2002); assim, torna-se natural que o debate sobre as ideologias em voga no mundo seja abordado em suas obras, na tentativa de melhor pensar o conceito de nação e sociedade. Tais formulações políticas são: o monarquismo como produto do espiritualismo à medida que busca encontrar no arcabouço histórico cultural do passado da nação e no tradicionalismo fundamentos sólidos para o progresso social; e o liberalismo, o qual ancora suas bases para o progresso social no materialismo, considerando que o homem progride de acordo com aquilo que produz.

CONTEXTO HISTÓRICO DA OBRA

Ao longo da obra, o narrador faz diversas alusões à Guerra Civil do Porto (1832 a 1834) que se sucedeu em Portugal por conflitos entre os liberais — liderados por D. Pedro I — e absolutistas — liderados por D. Miguel. A guerra foi o principal cenário de Portugal durante seis anos, aproximadamente, até que os absolutistas, enfraquecidos por conta das sucessivas derrotas, resolveram capitular em 1834 com a Convenção de Évora-Monte. Com a vitória de D. Pedro I, Portugal passa a ser governado essencialmente pelos liberais. (POSPÍŠILOVÁ, 2009)

De certa forma, não havia possibilidades de que Portugal retornasse à monarquia absolutista, pois, no reinado anterior de D. João VI, uma série de avanços liberais e relativos à liberdade individual já haviam sido conquistados, e, atrelado a isso, tinha-se o significativo apoio de D. Pedro I — até então, imperador do Brasil. A inovação das ideias liberais conquistou a geração jovem, enquanto a geração mais velha continuava firmemente favorável aos ideais do “Portugal antigo” e absolutista, o que acabou por culminar numa divisão das famílias. Nessa conjuntura, em Viagens na minha terra, pode-se perceber dois eixos narrativos temporais distintos, porém, atrelados: o atual pessimismo de então relacionado aos caminhos a serem tomados pela sociedade portuguesa frente à vitória dos liberais, para a qual Garrett contribuiu, e o próprio retrato da guerra já findada com a narração de fatos passados através da história da “Menina dos Rouxinóis” inserida no romance. Sendo assim, tem-se na obra o plano político (cenário de guerra) tangencial ao plano do sentimentalismo.

Posto esse quadro, percebe-se, durante a narrativa de Joaninha e Carlos, que o narrador marca firmemente suas posições ideológicas com relação ao liberalismo, porém, de modo antagônico, em algumas digressões, revela o seu descontentamento com a anarquia e decadência na qual se encontrava a sociedade portuguesa após a vitória dos liberais, mesmo estando na condição social de burguês. Pode-se notar, a princípio, que a decepção vem da quebra de expectativa relacionada às promessas de liberdade individual da sociedade, pois tais promessas tornaram-se mera e exclusivamente um processo de burocratização.

Do mesmo modo, através de um nacionalismo estético, percebe-se, ao longo dos excertos da obra nos quais se passa a viagem propriamente dita, o amor e a admiração do narrador por tudo aquilo que é português e pela cultura popular. Tal fato é confirmado em trechos como:

Os olivais de Santarém cuja riqueza e formosura proverbial é uma das nossas crenças populares mais gerais e mais queridas!… os olivais de Santarém lá estão ainda. Reconheceu-os o meu coração e alegrou-se de os ver; saudei neles o símbolo patriarcal da nossa antiga existência. (GARRETT, 2015, p.96)

E, ao destacar as consequências trazidas pela Guerra Civil, Garrett demonstra (através do narrador A.) um saudosismo melancólico dos tempos nos quais os monumentos portugueses e a cultura popular eram ainda preservados, e não abandonados às ruínas. Da mesma forma, deixa implícito a desagregação da sociedade portuguesa, pois diferente de uma grande nação que caminha rumo ao progresso, não procura manter vínculos com o passado e com a sua cultura.

A AMBIVALÊNCIA ENTRE AS IDEOLOGIAS E A CRÍTICA CONSTRUÍDA

 Explora-se em diversas passagens da obra, através das digressões do narrador e das referências empregadas (as quais variam do cotidiano, desde devaneios sobre seu apreço pelo café até questões filosóficas, políticas e educacionais) comparações, as quais são sempre suscitadas para analisar-se dois panoramas extremos de Portugal. Dessa maneira o narrador parece sempre se encontrar em um jogo de encruzilhadas e oscilações, as quais terminam apontando para o conflito entre liberais e conservadores ou criticando uma das instâncias.

No capítulo I, por exemplo, o narrador inicia a viagem em uma embarcação na qual, à medida que se desloca, permite com que se aprecie uma visão panorâmica (anfiteatro) da Lisboa oriental dividida entre o urbano e o rural. A parte urbana corresponde à fundição onde se alojou a burguesia (liberais), denominada pelo narrador como “chata”, “vulgar” e “sem sabor”. A parte rural é composta por hortas, árvores frondosas e monumentos antigos, tais quais palácios e mosteiros históricos danificados. Aqui, o narrador elogia o povo, atribuindo ao mesmo um gosto puro, e critica a burguesia que se considera o todo da sociedade, sobrepondo-se à população.

Ademais, logo em seguida na embarcação, o narrador acende um charuto de cigarro quando se aproxima um grupo de homens que, igualmente, fumavam. A partir daí é narrado o conflito entre os homens do sul (de Alhandra) e os homens do norte (de Ílhavo), os quais possuíam características distintas entre si que os classificavam e indicavam suas ocupações: pescadores ou agricultores. A discussão é sobre qual grupo foi o responsável por tornar o terreno árido e pedregoso de Almeirim em um belo jardim. Em vista disso, o narrador associa tal embate a um parlamento onde a esquerda e a direita discutem eloquentemente, suscitando cada qual seu próprio argumento. Evidentemente e semelhantemente, essa cena mostra a configuração do cenário ideológico de Portugal do início do século, no qual liberais e conservadores pleiteavam em busca de resolverem quais pensamentos e concepções seriam melhores para o alcance do desenvolvimento e avanço da nação lusitana.

Até aqui foram tratados alguns episódios específicos da obra e do posicionamento, por vezes, “dúbio” do narrador, já que o mesmo critica tanto o liberalismo como o monarquismo. Porém, o narrador, no capítulo IX, declara-se jacobino desde menino e conta para os leitores de certa ocasião, na qual foi repreendido por seu pai após comprar um retrato de Napoleão Bonaparte ao invés de livros sobre santos. Aquele é figura ilustre do liberalismo, sendo responsável por difundir os ideais liberais pela Europa ocidental durante as suas campanhas militares; já este é figura ilustre da identidade católica conservadora, suscitando e simbolizando o tradicionalismo ortodoxo do Antigo Regime. Acrescenta que, ao se tornar jovem, viajou à França para estar mais perto do centro de difusão e fomento das ideias liberais. Já no capítulo XIII avalia os frades, inferindo que esses clérigos não conseguiam compreender as mudanças ocorridas no século XIX e, por isso, foram substituídos pelos barões, os quais não souberam dialogar com o povo em prol de melhorias reais. Assim, cita a história do Castelo de Chucherumelo (ou Chuchurumel) um conto tradicional português, na qual o enredo se constrói apresentando um sistema contínuo: “o cão morde o gato, que morde o rato que rói a corda e segue-se…” (GARRETT, 2015, p. 53). Nesse trecho, depreende-se que para o narrador a transição de quem está no poder é progressiva e o período de confronto entre liberais e conservadores é o retrato da organização de uma hierarquia social marcada pela sucessão de ideais e concepções político-sociais. Num primeiro momento, os liberais poderiam ter assumido o poder, ocupando a posição dos conservadores, mas certamente depois seriam sucedidos por alguma ideologia nova a qual iria se orientar em prol da “marcha do progresso”.

Todavia, no capítulo  XLIII, o narrador declara que não há nenhuma religião em Portugal, a não ser que se considere como nova doutrina o materialismo, apregoado pelos barões. A religião como se configurava outrora não existe, já que o absolutismo não é mais o sistema de governo português. A narrativa segue com o narrador assumindo que se devia dar atenção ao espírito do povo muito mais do que as “teorias presunçosas”. De acordo com ele, esse espírito provém da razão divina, de algo transcendente que deveria ser considerado. Isto posto, em certo ponto traz a figura de Jesus Cristo na passagem do templo, presente em João 2:13-25, na qual Jesus expulsa os mercantes e cambistas que negociavam na sinagoga, declarando que a casa de Deus não poderia ser um mercado. O narrador dialoga com o texto sagrado ao inferir que Jesus teria a mesma atitude se encontrasse os barões e agiotas do início do século XIX que valorizam mais a matéria que os verdadeiros anseios do povo, sendo o templo agora Portugal como nação.

Por fim, faz o seguinte questionamento aos leitores: “Que sou eu, então?” (GARRETT, 2015, p.166), contudo não responde de maneira direta, apenas termina dizendo que não valia a pena uma explicação ou definição para quem ainda não o tinha compreendido. Logo, enxerga-se que o narrador defende uma espécie de equilíbrio entre os modelos político-teóricos, ao mesmo tempo que denuncia o perigo dos excessos e extremos, utilizando do próprio exemplo de Portugal para fundamentação, como já exposto.

Para além, é possível a investigação dessa mesma questão dos extremos ideológicos e seu panorama conflituoso na figura de Carlos, através dos sentimentos ambivalentes do personagem, como evidenciado no trecho: “Tenho energia demais, tenho poderes demais no coração. Esses excessos dele me mataram… e me matam.”  (GARRETT, 2015, p. 165). Tendo isso em vista, o presente texto continuará a ser guiado pela exposição do enredo de Carlos, protagonista da obra, e dos enredos das personagens Joaninha, Georgina e Frei Diniz que representam posições ideológicas divergentes na obra Viagens na minha terra, assim como já foi evidenciado pela estrutura narrativa.

O enredo da “Menina dos Rouxinóis” é contado por Garrett a partir da metade do livro e desenrola-se até o final. A narrativa dentro da narrativa expõe a história de Carlos e Joaninha, dois primos que foram criados pela avó, Dona Francisca, e que posteriormente serão os protagonistas do drama amoroso.

Carlos, o herói da história da “Menina dos Rouxinóis”, é representado através dos olhos do narrador (implicitamente) como o seu alter ego, haja visto que lutava ao lado do exército liberal e a favor do constitucionalismo, indo de encontro com o que sua família pensava. Em oposição a essa figura fundamental, tem-se o personagem Frei Diniz, um religioso conservador e tradicional, amigo da família, que não consegue desvencilhar-se dos valores portugueses arcaicos. As duas personagens são, muitas vezes, colocadas em contraste no que diz respeito à moralidade. Enquanto Carlos combatia na guerra ao lado dos liberais, Frei Diniz criticava-o duramente para a sua avó, como se percebe no excerto:

— Boas novas, boas novas trago! — Sente-se, padre, sente-se. Joaninha chegue uma cadeira: descanse — Não é tempo de descansar este, mas de vigiar e de orar. — Pois que sucedeu, Padre? Não me tenha nessa horrível suspensão. Diga: onde está ele? Alguma desgraça grande lhe aconteceu, ó meu Deus!… — E que me importa a mim o que aconteceu ou podia acontecer a mais um de tantos perdidos? Encherá a sua medida, irá após dos outros… caminha nas trevas com eles, e como eles só há de parar no abismo. (GARRETT, 2015, p. 62-63)

Essa ambivalência já estabelecida acentua-se quando há a revelação de que Frei Diniz é o pai biológico de Carlos e, nessa situação, tem-se o retrato da sociedade portuguesa pós-guerra: dividida, com disputas entre as gerações e com o idealizado modelo familiar burguês corrompido. Além disso, ao estabelecer a relação de descendência entre os personagens, o narrador sugere, de modo análogo, que a mesma relação ocorre quando se transita do Portugal tido como antigo (o pai) — com valores e costumes conservadores  — para o novo e inovador Portugal (o filho) — com as ideologias liberais muito mais acentuadas.

Em quase sua totalidade, o livro é constituído de um discurso pessimista frente à decadência da nação portuguesa. Como afirma Maria Luiza Ritzel Remédios,

O discurso sobre a decadência de Portugal é negativo, para que os leitores da época criassem a consciência da direção a ser tomada. Contudo, o narrador/autor não vê perspectivas de alcançar o seu objetivo, pois a própria auto-imagem do homem português também não é positiva. […] segundo Garrett, Portugal mostra-se de costas para o futuro. (1999, p.141)

Tal fato pode ser identificado também no movimento de transição decadente que se dá de pai para filho entre os personagens Frei Diniz e Carlos. Enquanto um, representante do Portugal conservador, é frade e ocupa um posto hierárquico bem-visto pela sociedade portuguesa ao longo do processo de transição, o outro, representante da sociedade moderna, torna-se agiota e político no final da narrativa. Toma-se essa representação do fracasso de Carlos como reflexo da decadência da sociedade portuguesa frente à perda de identidade em decorrência das mudanças ideológicas pós-guerra. Ademais, no que concerne à modernização e aos novos ideais, os valores e princípios do que se conhece por Portugal antigo tornam-se insustentáveis. Frei Diniz de fato representa essa transformação, pois há uma grande distância no que diz respeito ao comportamento do personagem no início, meio e final da narrativa. Nota-se o seu lento e gradual definhamento enquanto figura social de prestígio para a posição de oprimido onde tem suas ideologias sufocadas.

Do mesmo modo, Georgina e Joaninha são representações fundamentais para complementar a ideia central da narrativa, e, em tal representação, assinala-se um dos vieses da crítica social feita pelo narrador ao longo de toda a obra. Os dois grandes amores de Carlos simbolizam, sobretudo, duas opostas concepções de sociedade portuguesa. Joaninha, a menina dos rouxinóis, vem em seus moldes retratar a monumentalidade de Portugal, que, em meio aos impasses, ainda permanece nas memórias. Além disso, representa o Portugal clerical — ingênuo, puro e fragilizado — que labuta para dar vida a uma espécie de semente de autenticidade que cresce em seu interior, mas que, posteriormente, sem perspectivas de desenvolvimento, é apagada pela modernidade e sofisticação do novo Portugal.

Este, por outro lado, tem seu retrato fundamentalmente representado por Georgina — uma moça refinada que é retrato dos ideais liberais e revolucionários ingleses. Ambas são colocadas em rivalidade pelo amor do herói romântico, que acaba indeciso quanto às duas e não é capaz de escolher. Tal peso da indecisão de Carlos leva Joaninha a enlouquecer e morrer, e leva Georgina à reclusão religiosa (tornando-se abadessa) a fim de tomar distância dos conflitos causadores da sua decepção amorosa.

O personagem Carlos é, novamente, nessa conjuntura da narrativa, reprodução da crítica social feita pelo autor à narcisista e fragmentada sociedade portuguesa que está dividida entre o absolutismo e o liberalismo ao invés de caminhar para o progresso coletivo. Dessa forma, ao procurar no isolamento uma forma de escape para a decisão entre Joaninha (Portugal velho) e Georgina (Portugal novo), Carlos sofre com a perda identitária e, ao render-se a um materialismo mascarado, acaba por cometer um suicídio moral.

De modo análogo, Dom Quixote e Sancho Pança, personagens da literatura moderna europeia, também são constantemente aludidos na obra pelo narrador para as representações e críticas à sociedade. Em alguns excertos da obra, o narrador emprega a figura de Dom Quixote como retrato do inflexível idealismo no que concerne à religião, ao sonho e à literatura, por exemplo. Além disso, faz menção a Sancho Pança como o retrato do materialismo no que diz respeito à ciência e à marcha para o progresso material.

Descobriu ele que há dois princípios no mundo: o espiritualista, que marcha sem atender à parte material e terrena desta vida, com os olhos fitos em suas grandes e abstratas teorias, hirto, seco, duro, inflexível, e que pode bem personalizar-se, simbolizar-se pelo famoso mito do cavaleiro da mancha, D. Quixote; — o materialista, que, sem fazer caso nem cabedal dessas teorias, em que não crê, e cujas impossíveis aplicações declara todas utopias, pode bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho Pança. (GARRETT, 2015, p.10)

Ambos os personagens também representam o embate que acontece no interior do herói romântico da narrativa. Carlos acaba incorporando a figura de Sancho Pança ao tornar-se barão. Para Edgard Pereira (2003), tal ambivalência revela a instabilidade da sociedade portuguesa que oscila entre os extremos que lhe são apresentados e tenta compreender o destino de Portugal a partir dessas alternâncias que coexistem de forma simultânea.

Portanto, em síntese, infere-se que inúmeros motivos acarretaram uma visível fragmentação da sociedade que barrava a evolução do progresso social e coletivo assim como refreava a construção de uma identidade nacional sólida, conforme exposto pelo próprio narrador:

Ponham de parte questões individuais e examinem de boa fé: verão que, na totalidade de cada facção em que a Nação se dividiu, os ganhos, se os houve para quem venceu, não balançam os padecimentos, os sacrifícios do passado, e menos que tudo, a responsabilidade pelo futuro. (GARRETT, 2015, p.34).

Tais motivos são percebidos na obra Viagens na minha terra porque nela se traça um painel de ambivalências no que concerne aos ideais políticos em conflito do século XIX, visto que o liberalismo representa o Portugal novo, o qual vem acompanhado da ideia de avanços na direção da liberdade individual, progresso material e o monarquismo representa Portugal antigo possuidor de bagagens histórico-culturais relevantes para o trajeto até o progresso. Entretanto, o autor não esconde certas deficiências de ambos os sistemas. O liberalismo reteve o capital na esfera burguesa e mercantil, ao passo que o monarquismo era autocrático e retinha o capital nas esferas clerical e nobre.

REFERÊNCIAS

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