“Gritos da Carne”, de José Leão

Leandro Scarabelot

Gritos da Carne

José Leão

pdf

O público leitor agora tem à sua disposição os Gritos da Carne (1874), de José Leão. Embora seja fruto de seu tempo, o livro traz um perfume que destoa levemente do momento em que foi produzido. Numa época em que o lirismo lacrimoso a Casimiro de Abreu começava a se tornar insípido, sendo levado a exaustão por quase todos os (pretensos) poetas, e que a poesia de combate – seja ela abolicionista, anticlerical ou republicana – ganhava um tempero novo com o aparecimento de A morte de D. João, de Guerra Junqueiro, José Leão ousou apimentar um pouco as coisas… Apenas um pouco, não muito. Em seus poemas ainda encontramos traços do lirismo sentimental que nesta época já mostrava sinais de esgotamento (cf. RAMOS, 1979, p. 79-80; PACHECO, 1967, p. 13). Apesar disso, alguns de seus poemas não deixam de exalar um perfume que, embora não fosse novo, era bastante exótico para sua época. Refiro-me ao sensualismo que, na visão de alguns, como veremos, chega a ser exacerbado, o que torna sua produção mais variada e até, em certa medida, dissonante.

Em partes, este sensualismo é explicado e justificado pela filiação do autor a “um dos talentos mais robustos das gerações modernas”, ninguém menos do que Álvares de Azevedo, a quem José Leão dedica e oferece seu opúsculo. Segundo ele, o bardo da Lira dos vinte anos teria conseguido, pelo seu gênio inovador e esforços sobre-humanos, “sozinho, transplantar para o solo brasileiro uma nova escola europeia, esplêndida na forma, porém, […] traiçoeira e assassina no fundo” (LEÃO, 1874, p. V, grifo nosso). Em suas mãos, prossegue José Leão (1874, p. VI) com certo tom de reproche, a musa do romantismo teria se tornado “o retrato escarnado da messalina das ruas”. Não obstante o julgamento aparentemente desfavorável, o poeta se esforça por seguir pela mesma trilha de Álvares de Azevedo, e seus Gritos da Carne aparecem como “uma variante”, sendo o resultado “de algumas malogradas tentativas no seu gênero”, revelando em si

os ecos surdos e abafados desses desejos ardentes que vão pela alma de todos embora não se traduzam em fatos, desse anelar sôfrego e desesperado pelo gozar de todos os instantes; são eles uma cópia viva e fiel desse estado indefinível a que a alma é arrastada pelo corpo, em que os ímpetos do coração ofuscam de todo a mente, e a matéria, soberana despótica do mundo, sai vitoriosa da luta interminável travada contra o espírito! (LEÃO, 1875, p. VII, grifos nossos) 

Como se pode perceber pelos trechos grifados, o próprio autor está ciente do sensualismo que acompanha sua obra. E é justamente sobre este ponto que Junius e Teixeira Mendes teceram suas críticas. Segundo Junius (1874, p. 6), no livro de José Leão haveria “alguma cousa de lascívia feroz, de atroz desespero, realmente lamentável em quem parece reunir dotes, que habitam para a cultivação de um solo mais fecundo do que esse maligno lodaçal”. Vejamos, então, alguns dos versos que abrem o livro e que deram azo ao crítico para tal comentário:

Eu adoro o prazer, a carne nua, 

A pele acetinada, 

Uns olhos onde amor vaga e flutua, 

A pálpebra roxeada; 

 

Uns vestígios de insônia transparente 

Num rosto virginal, 

A vida consumida ardentemente 

Num gozo sem rival! 

 […] 

 Eu adoro a mulher como a gozara 

O deus mais sensual 

A banhar-se na veia d’água clara 

Em fios de cristal… 

 

E, qual cisne osculando o níveo seio, 

Ouvi-la suspirar! 

Eu adoro morrer de devaneio 

Contente por amar! 

Com versos como estes, não causa espanto que Teixeira Mendes (1875, p. 1), em sua crítica, também tenha apontado a lascívia contida no livro, lamentando que o distinto acadêmico tivesse cedido “às mais das vezes às fascinações dessa escola europeia, esplêndida na forma e traiçoeira e assassina no fundo”. Exemplificando o que o livro traz de nocivo, o crítico cita, dentre outros, alguns trechos do poema “Eu amo”, que assim se inicia:

Eu amo essas cabeças dissolutas 

Que vendem no balcão seu corpo imundo… 

O amor das mulheres prostitutas 

Tem não sei quê de grande e de profundo! 

Ao comentar sobre estes mesmos versos, Junius (1874, p. 6) já havia afirmado que, lendo-os, lhe ocorrera a ideia de “não estarmos em uma sociedade do século XIX”, pois neles a poesia não só aparece “abatida e descomposta”, mas também mostra uma “face esquálida” e os “lábios gretados pela febre da concupiscência”. Vale ressaltar, no entanto, que, apesar de tudo, existe uma intenção moralizante nesse poema. O poeta louva as mulheres dissolutas, sim, mas para compará-las àquelas moças que voltam delirantes de um baile e passam a noite inteira pensando no amante com quem haviam dançado. Em outras palavras, ele louva a sinceridade do amor venal para condenar a hipocrisia das (supostas) moças castas. Apesar dos pesares, houve quem o defendesse. Respondendo à crítica de Teixeira Mendes, Nogueira Borges afirmou que

uma das maiores vantagens que esse livro conquista consiste justamente naquilo de que mais o censuram; isto é: o materialismo n’arte. A razão é simples: é porque as emoções reais e a verdade nua também têm o seu mérito.

Nos Gritos da Carne a mulher é sempre a mesma: aparece com todo o fulgor da beleza plástica, com todas as voluptuosidades do amor fisiológico. O autor não corrige a natureza, não idealiza a matéria, não cria como os poetas sonâmbulos um desses tipos imateriais e intangíveis; ao contrário, apresenta a mulher segundo a natureza, mostra a estátua nua com essa voluptuosidade provocante que celebrizara Aspásia. (BORGES, 1875, p. 6)

De acordo com Nogueira Borges (1875, p. 6), ao apreciar uma obra de arte literária, o crítico não deveria “procurar ideias morais do bom e do justo, como em um compêndio de filosofia”, mas “antes de tudo apreciar o belo, a estesia da concepção”. Não obstante esta concepção de julgamento estético, o crítico parece ter preferência por aqueles versos onde o poeta “eleva-se a uma atmosfera mais casta, limita-se a uma admiração contemplativa, às emoções mais puras de um prazer ideal”, oferecendo o poema “Ce pays – Là c’est l’Italie” como exemplo de uma das mais belas composições do livro. 

E é justamente este poema que nos permite voltar ao início e reiterar o que havíamos dito: embora possua este perfume exótico, a sensualidade, o livro de José Leão não deixa de trazer também aquele aroma comum ao seu tempo, aquele lirismo (quase) choramingas, que exala de tantos poemas contemporâneos. O próprio autor se dá conta disso e comenta, no final do “Prólogo”, que o principal caráter do livro seria a “contradição manifesta das ideias, a desordem das paixões que tumultuam, o riso, as lágrimas fingidas e uma predileção inexplicável pelas cousas impossíveis” (LEÃO, 1874, p. VIII). Eis o motivo de encontrarmos produções tão díspares, ora entoando loas às prostitutas, ora chorando no seio da amada, ora apostrofando Deus, ora fustigando os costumes etc. 

Por trazer estas contradições em seus poemas, José Leão talvez pudesse exclamar, assim como Fausto, que duas almas habitam em seu peito. Nesse sentido, talvez seja possível afirmar que ele está nel mezzo del camin, na encruzilhada entre duas escolas ou, sendo mais específico, que ele congrega elementos suficientes para ser visto como o elo perdido entre o romantismo da escola de São Paulo e o realismo, tal como o praticaram Carvalho Júnior, Teófilo Dias e Fontoura Xavier, nossos primeiros baudelairianos. 

Sem mais delongas, leiamos seus versos.

 

P.S.: É preciso que se faça duas observações sobre o arquivo em PDF:

1) Infelizmente, ficaram faltando as páginas 54 e 55 do livro;

2) Embora nem todas as páginas estejam completamente nítidas, ao fazer o reconhecimento de caracteres (OCR), tivemos o cuidado de transcrever o conteúdo quando a imagem não permitia sua leitura. Nesses casos, basta copiar e colar o trecho em algum documento.

 


REFERÊNCIAS

FONSECA, José Nogueira Borges da. Ao Sr. Teixeira Mendes. A Crença: Sciencias, Lettras e Artes. Ano I, ed. 12. Rio de Janeiro, 1875, p. 6-7.

JUNIUS. Coluna Crítica. Mefistófeles, ed. 31. Rio de Janeiro, 1874. p. 5-6.

LEÃO, José. Gritos da carne. Rio de Janeiro: Tipografia Cinco de Março, 1874. [viii]115p.

MENDES, Raimundo Teixeira. Gritos da Carne. A Crença: Sciencias, Lettras e Artes. Ano I, ed. 10. Rio de Janeiro, 1875, p. 1-2.

PACHECO, João. O Realismo. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1967.

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Do barroco ao modernismo: estudos da poesia brasileira. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1979.