Romance de 30 com foco na obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos

Juliana Corrêa Paiva

RESUMO: Nesse artigo serão evidenciadas características do período conhecido como Romance de 30 presentes na obra Vidas secas, publicada no ano de 1938, destacando a ocorrência de perdas no interior do romance. Será abordado como são transmitidas ao leitor as críticas sobre a desumanização às quais as personagens são submetidas no contexto nordestino em que estão inseridas, levando em consideração os aspectos do período da produção, o contexto social e psicológico.

PALAVRAS-CHAVE: Romance de 30; Vidas Secas; contextos sociais e psicológicos.

ABSTRACT: In this article, characteristics of the period known as “30’s novel” present in the work Vidas secas, published in 1938, will be evinced, highlighting the occurrence of losses within the novel. It will be discussed how criticisms about the dehumanization to which the characters are submitted in the Northeastern context (in which they are inserted) are transmitted to the reader, taking into account some aspects of the production period, the social and psychological context.
KEYWORDS: 30’s novel; Vidas Secas; social and psychological contexts.

Para iniciar, é necessário saber que o período alcunhado Romance de 30 é pertencente à segunda fase do Modernismo brasileiro, também conhecido como Romance Regionalista, Neorrealismo e Realismo Social. Essas nomenclaturas dizem muito sobre como é escrita essa obra e sobre os aspectos críticos nordestinos que serão melhor compreendidos no decorrer desde artigo.

Importante saber que a obra relata a vida de uma família de emigrantes/retirantes que vive em uma tensão social, sempre na estrada fugindo da seca e da fome pelo sertão nordestino em busca de melhores condições de vida. É também uma família descrita com sérios conflitos internos, bastante humilde e que não possui o menor contato afetivo entre seus membros, inclusive será percebido que na obra há uma humanização por parte de um animal ao mesmo tempo em que há uma animalização do ser humano.

A novela já começa intitulada “Mudança” mostrando a movimentação de fuga da família guiada por Fabiano, chefe da família, vaqueiro e lacônico, na busca por um lugar melhor. Já nesse primeiro capítulo há uma cena bastante marcante de um filho de Fabiano, caído de cansaço e fome enquanto o pai bravo decide acordá-lo de maneira demasiadamente bruta e sem nenhum resquício de amorosidade

– Anda, excomungado. O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde. (RAMOS, 2013, p. 6).

Logo o leitor pode perceber que no romance o ser humano é desvalorizado, não é à toa que nunca é revelado o nome dos filhos, são sempre chamados por filho mais velho e filho mais novo, o contrário da cachorra que é chamada Baleia: “O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás” (RAMOS, 2013, p. 6);  inclusive é notável que a cachorra é quem parece ser capaz de pensar com afeto, sendo a personagem mais humanizada da obra, além do mais, sai em busca de caça pensando em matar a fome da família, uma ação instintiva esperada dos seres humanos e não da cachorra, já a reação instintiva de Sinhá Vitória, esposa  de Fabiano e mãe dos meninos, ao lamber o sangue no focinho de Baleia, remete a um comportamento animal:

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. (RAMOS, 2013, p. 7).

Percebemos que Baleia exerce um papel muito importante na obra, podendo afirmar que, até certo ponto, mais que o próprio Fabiano, a cachorra é capaz de valorar os atos cometidos por seus donos “Baleia, séria, desaprovava tudo aquilo” (RAMOS, 2013, p. 20), inclusive o narrador tem conhecimento dos pensamentos do animal “Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce.” (RAMOS, 2013, p. 21).

Graciliano Ramos, através dessa obra, denuncia questões desumanas, como as dificuldades enfrentadas por Fabiano e sua família sem qualquer necessidade básica suprida, tanto que o maior sonho de Sinhá Vitória é simplesmente dormir em uma cama de couro:

Sinha Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariála, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau. (RAMOS, 2013, p. 10).

Não é de se espantar que os personagens estejam sempre sendo associados a animais, mas Fabiano parece não se importar com tal comparação, acha uma vantagem nisso, acreditando que sendo visto dessa maneira o entenderão como um homem forte e capaz de contornar qualquer imprevisto que a vida árida do sertão lhe apresentasse, “— Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.” (RAMOS, 2013, p. 9). Com isso, é evidente a discriminação por parte da sociedade, pois quando Fabiano comparece à cidade se sente inferiorizado e parece não se adequar ao ambiente. Francisco Achcar nos diz que

é visível que Graciliano entende a linguagem como função exclusiva da sociedade bem organizada. Em pleno sertão ressequido, em plena andança, a linguagem que predomina é a dos gestos silenciosos e a da vigilância animal. A fala concatenada tende a se dissipar, por falta de exercício, por falta de sustentação do diálogo comunitário. (ACHCAR, p. 206).

Por haver certa dificuldade de comunicação e abuso de autoridade que Fabiano acaba preso sem entender a causa, cogitando ser a sua linguagem e/ou sua simplicidade um problema e, por não conseguir se expressar, acaba acarretando uma reação covarde e punitiva de soldado amarelo, personagem que simboliza nessa obra a opressão do poder institucional:

— Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê esbagaçar os seus possuídos no jogo? Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questão. Não achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiuna em cima da alpercata do vaqueiro. — Isso não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que mole e quente é pé de gente. O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá. (RAMOS, 2013, p. 13).

Esse acontecimento acaba sendo um marco triste na vida de Fabiano, tanto que quando ele encontra o soldado amarelo perdido na mata e, mesmo tendo a oportunidade de se vingar por estar em seu ambiente natural, desiste ao enxergar a farda e acaba indicando ao soldado o caminho de volta para a cidade, se submetendo mais uma vez à autoridade opressora “— Governo é governo. Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.” (Ramos, 2013, p.36).

Podemos observar também, nas citações anteriores, a escolha do narrador por utilizar o discurso indireto livre, que consiste na narração de uma fala ou pensamento transmitido através do narrador, quando o narrador insere em meio ao seu discurso o pensamento ou a fala de sua personagem, como no caso dessa obra, transcrevendo as palavras e pensamentos de suas personagens em seu discurso. Inclusive é possível notar que a escolha de linguagem do autor desta obra assemelha-se com o título e temática, pois construiu a obra com uma linguagem seca, áspera e limitada a informar somente o essencial. Maria Suely Ferreira, em seu artigo diz que

A linguagem adotada por Graciliano é fundamental para entender a obra. É uma linguagem sucinta e sem sentimentalismo, adequada à seca, um estilo seco que diz muito com poucas palavras; as falas das personagens são reduzidas, mas no decorrer do romance aparecem alguns diálogos, a maioria sem conexão, ou seja, sofrem também com a carência na articulação verbal, consequência das adversidades naturais e sociais.

A ausência do entendimento do discurso é notória nas relações entre as personagens e suas ações, onde a comunicação pode ser comparada no mesmo nível dos animais. Graciliano trabalha a pobreza da fala das personagens também como crítica a opressão sofrida pelos sertanejos, é tão grande que lhes tira até mesmo o direito de falar. (FERREIRA, 2016).

Na obra, Sinha Vitória é a personagem mais “inteligente”, um pouco mais instruída que o marido, capaz de fazer contas a ponto de perceber quando a família está sendo roubada “Sinha Vitória […], distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão” (RAMOS, 2013, p. 32). Achcar nos explica isso fazendo uma relação entre Graciliano Ramos e Machado de Assis:

Mas, aqui, sobretudo é importante verificar como Graciliano, atento talvez à lição machadiana, faz a mulher ocupar um plano psicologicamente distinto do plano masculino. Dizem alguns antropólogos que a mulher tem uma relação mais íntima com a natureza do que o homem. Entretanto, Graciliano parece inverter esse princípio, pois Sinha Vitória está mais próxima da cultura do que Fabiano. Portanto, sua “animalização” é menor. (ACHCAR, p. 199, 200).

O leitor se depara com outra crítica social rigorosamente pesada nessa obra, quando a família invade umas terras e o proprietário tenta expulsar a todos. O vaqueiro Fabiano revela sua forma simples de se comunicar ao tentar permanecer: “Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.” RAMOS, 2013, p. 9). O fazendeiro permite que fiquem e trabalhem, não por piedade ou com o intuito de ajudar o próximo, mas para adquirir serviçais que teriam a obrigação de trabalhar na fazenda para pagar a estadia.

Apesar de toda animalização que define essas pessoas dentro de seus contextos sociais, quando observamos em um contexto psicológico podemos perceber um resquício de capacidade de discernir comportamentos, como o caso do cavalo da fazenda, no capítulo “Fuga”, no qual há uma questão que deixa Fabiano incomodado. Trata-se do fato de levar o cavalo da fazenda sem a autorização de seu dono, cometendo roubo, ou deixar o animal na fazenda para morrer de fome. A personagem encontra-se em um dilema complicado, mas decide deixar o animal que não lhe pertencia e seguir em frente com sua honestidade intacta. Podemos, inclusive, questionar quem, entre Fabiano e o Fazendeiro, possui uma maior honestidade. Aqui observamos um bom senso crítico e moral em Fabiano:

Ia morrer na certa, um animal tão bom. Se tivesse vindo com eles, transportaria a bagagem. Algum tempo comeria folhas secas, mas além dos montes encontraria alimento verde. Infelizmente pertencia ao fazendeiro — e definhava, sem ter quem lhe desse a ração. Ia morrer o amigo, lazarento e com esparavões, num canto de cerca, vendo os urubus chegarem banzeiros, saltando, os bicos ameaçando-lhe os olhos. (RAMOS, 2013, p. 40).

Por sua vez o menino mais velho traz para a obra a inocência, característica intrínseca de qualquer criança, sendo sempre muito curioso, principalmente com certos vocabulários, porém, em meio ao contexto que era criado não deveria se preocupar tanto com coisas frívolas ou que pudesse ser interpretado como desrespeito. Foi o que aconteceu quando ousou perguntar o que significava “inferno” e se a mãe já havia estado lá, como resposta “Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.” (RAMOS,2013, p. 21). O que faz com o que leitor pense que o oprimido acaba se tornando opressor, “Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado”(RAMOS, 2013, p.6). É notável que a família não possui tantas perspectivas de vida pois consequentemente os garotos seguiriam o caminho do pai e se tornariam vaqueiros, seguindo sempre em frente, buscando uma melhora de vida, sem espaço para questionamentos ou aquisição de novos conhecimentos, afinal essas não são prioridades para a família, que se preocupam apenas em sobreviver por mais um dia, diminuindo os anseios dos familiares

A maior perda dessa obra de Graciliano Ramos é da cachorra Baleia, sua morte causa um grande pesar ao leitor, principalmente por ser descrita em minúcias: “Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.” (RAMOS, 2013, p. 31). Nessa descrição o narrador mostra o último sonho de Baleia que deixa evidente a vontade de alimentar bem a família, de continuar sempre servindo a todos como uma companheira fiel ao contrário da morte do papagaio, que fazia parte da família no início da obra, que serviu apenas como alimento aos donos:

Pode-se dizer que o realismo contínuo de Graciliano Ramos encontra em baleia seu ponde de inversão. De fato, o carinho, a ternura com que o narrador se transfere para dentro do animal, a sabedoria com que soube preparar a cena patética, o clímax de humanização do bichinho antes da morte, tudo isto nos mostra repentinamente um Graciliano muito próximo dos modos sublimes da literatura narrativa. Digamos que esse é o momento de poesia trágica de Vidas Secas. (ACHCAR, p. 201).

O último capítulo, intitulado “Fuga”, parece ser uma repetição do primeiro, o que torna essa obra um romance cíclico, pois o livro começa exatamente como termina, mostrando que Fabiano e sua família vivem em um círculo vicioso, indicando ao leitor que a continuidade da vida que levam acontece entre gerações, sempre fugindo das péssimas condições de vida, da fome, da seca e de suas perdas.

Podemos concluir que a família sofre no decorrer da obra com diferentes tipos de secas, representadas pela pobreza financeira, afetiva, linguística, ambiental e psicológica, mas ainda assim, pode-se considerar que eles não deixam de lado seus sonhos, como sinhá Vitória querendo a cama de couro e Fabiano sonhando em saber falar como seu Tomás da bolandeira, “Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava.” (RAMOS, 2013, p. 10), e mantêm a esperança de seguir em frente até achar um lugar em que possam ter enfim uma vida próspera e digna. Contudo é indiscutível a tristeza que a obra transmite ao começar com seis personagens e terminar com apenas quatro, da mesma forma que podemos perceber perdas afetivas, pela falta de carinho entre eles, perda financeira, pois são roubados pelo patrão, perda de dignidade, pois são minimizados pela sociedade por conta de sua pobreza material. Ramos, na verdade, nos instiga a refletir sobre questões sociais bastante importantes, que podemos ver e vivenciar nos dias atuais.

 Referências

ACHCAR, Francisco. Vidas secas, Graciliano RamosAnálise de obra, seleção de textos e questionário. Os livros da Fuvest – Unicamp – II. Disponível em: http://joinville.ifsc.edu.br/~samuel.kuhn/M%C3%93DULO%20VI/OBRAS%20LITER%C3%81RIAS%20DO%20SEMESTRE/VIDAS%20SECAS%20-%20materiais%20auxiliares/Vidas%20Secas%20-%20Graciliano%20Ramos%20-%20s%C3%ADntese.pdf. Acesso em: 13/04/2021.

FERREIRA, Maria Suely. A realidade social e a linguagem no romance Vidas secas. Disponível em: https://www.sabedoriapolitica.com.br/products/a-realidade-social-e-a-linguagem-no-romance-vidas-secas/. Acesso em: 24/06/2021.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 120ª edição. Rio de Janeiro – São Paulo: Editora Record. 2013. Disponível em: https://iedamagri.files.wordpress.com/2020/02/vidas-secas-graciliano-ramos.pdf. Acesso em: 12/04/2021.