Redefinindo narrativas: resenha crítica da obra “Poéticas da masculinidade em ruínas: o amor em tempos de AIDS”

Catharina Viegas de Carvalho

A obra Poéticas da masculinidade em ruínas: o amor em tempos de AIDS, publicada em 2017, conta com 13 capítulos independentes, cada um referente a um trabalho elaborado por pesquisadores de diversas instituições através do projeto de pesquisa homônimo, coordenado e desenvolvido pelo Professor Dr. Anselmo Peres Alós, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), durante os anos de 2014 e 2015. Anselmo Peres Alós é Professor Associado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), foi Professor-Visitante Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e Professor-Leitor junto ao Instituto Superior de Ciência e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM) e do Instituto Superior de Comunicação e Imagem de Moçambique (ISCIM), no período de 2009 a 2011. Alós também lidera o Grupo de Pesquisa “Trânsitos teóricos e deslocamentos epistêmicos: feminismos, estudos de gênero e teoria queer”, criado em 2013.

O capítulo inicial da obra, “Poéticas da masculinidade em ruínas: a literatura e o amor em tempos de AIDS”, de autoria do organizador da obra, introduz as motivações necessárias por trás desse trabalho de pesquisa, traçando cronologicamente toda a produção bibliográfica sobre homossexualidade nas artes e na literatura. O autor reúne ideias sobre a identidade nacional e as diferenças presentes nela. Diferenças essas que abrem fronteiras internas na nação quando representadas na literatura, transformando-se em capital cultural.

Alós faz referência à noção de mentalidade hétero proposta por Monique Wittig, que fundamenta o motivo do fracasso nas tentativas de romper com o regime heterossexista, assim como das avaliações e categorias criadas por lésbicas, feministas e gays serem taxadas de particularistas, de não científicas, de políticas e de comprometidas ideologicamente. Então, juntamente à noção de intertextualidade proposta por Julia Kristeva, que situa a palavra poética em suas relações com a história e a sociedade, questiona-se se a última poderia assimilar a linguagem poética de resistência, na qual a heteronormatividade e a mentalidade hétero são contestadas e subvertidas. Assim, pensar a teoria queer sem pensar o feminismo resultaria na substituição do poder de uma base heteronormativa por uma base binária heterossexual/homossexual. É imperativo repensar a forma como a sexualidade é moldada a fim de romper com a manutenção do privilégio patriarcal e heteronormativo.

Na sequência, em “Reinaldo Arenas: o menino inoportuno de Cuba”, Bárbara Loureiro Andreta e Mônica Saldanha Dalcol realizam uma análise completa da obra Antes que anochezca, autobiografia de Reinaldo Arenas, publicada em 1992. Reinaldo Arenas foi um autor homossexual cubano que experenciou a Revolução Cubana e sua perseguição aos homossexuais. Inicialmente defensor dos ideais revolucionários, Arenas se frusta quando as políticas repressivas contra sua sexualidade passam a cercear sua existência. O autor cubano consegue exilar-se em Miami, onde padece por complicações em decorrência da aids. A análise reforça a importância de se pensar as pautas homossexuais aliadas ao pensamento feminista, como proposto por Alós no capítulo anterior, uma vez que as atitudes de uma sociedade cubana machista se refletiam nos homossexuais, pois não alcançavam as expectativas esperadas para a masculinidade (Morales-Díaz, 2009 apud Andreta; Dalcol, 2017).

Em “A convencionalidade violenta dos gays no cinema brasileiro e o contraponto não convencional de Highsmith”, Rosimeri Aquino da Silva e Fernanda Bittencourt Ribeiro traçam uma análise acerca da convencionalidade dos personagens homossexuais no cinema brasileiro em comparação a alguns aspectos da biografia e da obra de Patricia Highsmith, assim como de seu personagem, Tom Ripley. Highsmith foi uma autora norte-americana pouco convencional que se popularizou pelos seus thrillers criminais psicológicos, incluindo a série de livros focada em Tom Ripley, que destoa do padrão de personagens homossexuais do cinema brasileiro – “afeminados, espalhafatosos e caricatos” (Necchi, 2006 apud Silva; Ribeiro, 2017, p. 55). Pautada por essa falta de convencionalidade no que diz respeito ao gênero e à sexualidade da autora, Silva e Ribeiro demonstram brilhantemente como a crítica literária tenta traçar uma relação autobiográfica entre o comportamento desviante da criadora e a perversidade da criatura. Isso se dá, segundo as autoras, pela necessidade heteronormativa por parte da crítica em buscar obstinadamente em Hightsmith explicações para os comportamentos de seu personagem.

“Quando os arranjos familiares e as masculinidades entram em questão na escola”, de Marcio Caetano, Paulo Melgaço da Silva Junior e Treyce Ellen Silva Goulart, problematiza, de maneira coerente, a noção de arranjos familiares dos estudantes do 6º ano de uma escola pública da periferia, a fim de ressignificar a maternidade e a paternidade, bem como as expectativas sexuais e raciais. Considerando que os currículos universalizam conhecimentos por meio das escolas, o Estado e os setores conservadores da sociedade brasileira buscam regular os currículos oficiais das instituições, uma vez que é do interesse de quem detêm o poder que as escolas reproduzam e reforcem ideais de branquitude, masculinidade e heterossexualidade. Em concordância com isso, a maioria dos estudantes, em um experimento escolar, ao serem solicitados que montassem uma família a partir de recortes de revistas, até mesmo estudantes negros recriaram-na de acordo com o padrão branco heteronormativo. Dessa forma, aposta-se na crítica queer como alternativa para compreender os desafios que desestabilizam os discursos dos discentes e docentes e possibilitar a recriação desses discursos.

Em “Cinco teses sobre a homofobia”, de David William Foster, o autor discorre sobre as motivações por trás da homofobia e seus desdobramentos até a atualidade. Foster demonstra como a homofobia, ao longo da história, se molda às transformações históricas e sociais, tornando-se, muitas vezes, velada, mas sem nunca deixar de existir. Com isso, ele questiona por que línguas não-neutras, em especial a espanhola, não se utilizam da arbitrariedade de gênero destinada aos substantivos para subverter os gêneros convencionados para “homem” e “mulher”. O autor defende brilhantemente que os signos linguísticos de uma língua devem acompanhar as mudanças nas necessidades de cada sociedade.

No capítulo seguinte, intitulado “Histórias de si e o estilo livre de amar”, Paulo César García analisa a obra O que amar quer dizer (2011), de Mathieu Lindon. A narrativa de caráter biográfico trata da amizade de Lindon com Michel Foucault nos momentos que antecedem e sucedem a aparição dos sintomas do HIV no filósofo francês. Em sua análise, García busca interpretar (muito bem, por sinal) as relações subjetivas masculinas presentes no texto sob o ponto de vista da homocultura, como o afeto entre os dois homens – que perturba a noção heteronormativa de que o afeto se restringe às relações heterossexuais.

De autoria de Fábio Henrique Lopes, “Escritas de si e artes de viver transgênero: as insubordinações de uma escrita trans?” questiona a neutralidade e objetividade da escritura e da narrativa trans e seus desdobramentos. Culturalmente associada à marginalidade, às drogas, à prostituição e à violência, Lopes examina criteriosamente os escritos autobiográficos da famosa transexual, Ruddy Pinho, “a maravilhosa”, que subverte o que a crítica espera da escrita e da vivência trans.

“Entre a palavra e o silêncio? a fragmentação do homem em tempos de AIDS”, de Cláudia Maria Ceneviva Nigro e Juliane Camila Chatagnier, toma a obra The way we live now (1986), de Susan Sontag, como objeto de estudo. Constituído por colagens de diálogos contados pelos amigos de uma vítima da AIDS em forma de memórias, as autoras demonstram, de maneira assertiva, como a obra rompe com o esperado para as vítimas do vírus – a culpabilização pelo contágio e o abandono em uma cama de hospital.

Em “Caio Fernando Abreu, Cíntia Moscovich e a representação das sexualidades”, João Luis Pereira Ourique e Ana Luiza Nunes Almeida analisam os contos “Terça-feira gorda” e “Aqueles dois”, de Caio Fernando Abreu, e a novela Duas iguais (1998), de Cíntia Moscovich. Auxiliados pelos estudos queer, fazem uma leitura minuciosa baseada na desconstrução dos binarismos masculino/feminino e homossexual/heterossexual. As narrativas apresentam casais homossexuais masculinos que subvertem a heteronormatividade compulsória, uma vez que nenhum dos personagens é escrito com características femininas e, de uma forma ou de outra, se entregam ao tão impugnado afeto.

De autoria de Fernando Pocahy, “Por onde andará Irene? Micropolíticas do corpo, gênero e sexualidade em (outros) tempos de AIDS” toma como base elementos da escritura de Caio Fernando Abreu e do documentário Meu tempo não parou (2008), que trata das temáticas AIDS e homossexualidade no contexto porto-alegrense. O próprio título do capítulo traça uma intertextualidade com o romance Onde andará Dulce Veiga (1990) de Caio Fernando Abreu. Pocahy faz uma perspicaz associação entre os aspectos linguísticos camp do autor gaúcho e o linguajar do que ele denomina Co-monas – expressões da coletividade e da identidade queer que produzem e são produzidas pelo discurso.

No capítulo seguinte, “Dentro da lâmina veloz”, Ricardo Postal e Emerson Silvestre problematizam a diferença entre o queer e o homossexual no conto “Pela noite”, do livro Triângulo das águas (1983), de Caio Fernando Abreu. O queer seria o homem que apresenta uma performance assumidamente desviante da norma e envolve-se apenas em relações passageiras, enquanto o homossexual é mais “discreto” e busca relações mais duradouras. O primeiro é representado no conto pelo personagem Pérsio, e o segundo, por Santiago, como bem demonstram os autores. Ao fim da narrativa, Pérsio cede ao afeto de Santiago, conturbando o que é esperado para a maioria das relações entre dois homens, uma vez que essas relações costumam ser marcadas pelo romance breve seguido por fantasias pautadas pela memória.

O penúltimo capítulo da obra, “Retratos da fragilidade: reflexos da doença nas cartas de Caio Fernando Abreu”, de Gérson Werlang, discute sabiamente a temática da AIDS presente na correspondência do autor gaúcho com amigas e amigos. É possível perceber que Abreu já previa o aparecimento da doença antes mesmo da confirmação médica. A aparição dos primeiros sintomas do vírus culminou numa forte sensação de solidão, exposta pelo autor em suas cartas, que se seguiu de uma fase aventureira em que ele viajou incessantemente pela Europa. É nesse entre-viagens que Abreu descobre a doença, o que não o impede de prosseguir em sua jornada de escritor, pelo contrário, esse acaba sendo um momento muito prolífico. Werlang destaca que o autor gaúcho chegou até a anunciar sua soropositividade na imprensa da época, subvertendo a realidade de silenciamento das vítimas da AIDS.

O capítulo final intitula-se “A AIDS em Os dragões não conhecem o paraíso (1988), de Caio Fernando Abreu”, e é de autoria de Xênia Amaral Matos. A autora analisa os contos “Linda, uma história horrível”, “Os sapatinhos vermelhos”, “Dama da Noite”, “Mel e girassóis”, “Saudades de Audrey Hepburn (Nova História Embaçada)” e “Uma praiazinha bem clara, ali, na beira da sanga”, do livro Os dragões não conhecem o paraíso (1988). A profícua pesquisa revela que, além da presença do vírus ser velada, de maneira que só é referenciada diretamente em “Dama da Noite”, as personagens negam o contágio. Abreu rompe também com a ideia de que a AIDS é uma doença homossexual, apresentando personagens heterossexuais contaminados em “Os sapatinhos vermelhos” e “Mel e girassóis”. Sendo assim, a literatura funciona como um recurso discursivo, tanto para desconstruir quanto para reforçar estereótipos relacionados à homossexualidade e ao HIV.

Por fim, pautados pelos ideais das teorias feministas e da teoria queer, e utilizando como suporte outras bases teóricas, como a ideia de poder formulada por Michel Foucault, os autores apresentam estudos fecundos e necessários sobre a relação entre homossexualidade e AIDS no texto literário. Dessa forma, eles atingem o objetivo de incorporar à literatura uma linguagem poética de resistência, delineado no início do projeto.

A obra Poéticas da masculinidade em ruínas: o amor em tempos de AIDS oferece uma abordagem profunda sobre questões de masculinidade, amor e HIV/AIDS, reunindo contribuições significativas de diversos pesquisadores renomados. A análise crítica dos 13 capítulos independentes revela uma ampla gama de reflexões sobre identidade, sexualidade e literatura, destacando a importância da resistência e subversão de normas sociais opressivas. Entre os pontos positivos da obra, destacam-se a diversidade de perspectivas teóricas e a profundidade das análises apresentadas, que contribuem para uma compreensão mais ampla e complexa das interseções entre masculinidade, sexualidade e saúde.

Além disso, o livro ressalta a relevância da literatura como ferramenta de resistência e desconstrução de estereótipos prejudiciais. No geral, a obra se sobressai como uma contribuição significativa para os estudos contemporâneos sobre masculinidade. Recomenda-se a leitura desta obra para aqueles que buscam aprofundar seu conhecimento sobre as dinâmicas complexas que permeiam as representações culturais e sociais da masculinidade em contextos de crise, como a epidemia de AIDS.

Referências

ABREU, Caio F. Aqueles dois. Morangos mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

ABREU, Caio F. Terça-feira gorda. Morangos mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

ABREU, Caio F. Pela noite. Triângulo das águas. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

ABREU, Caio F. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

ALÓS, Anselmo. Poéticas da masculinidade em ruínas: o amor em tempos de AIDS. Santa Maria: UFSM/PPGL, 2017. 258p.

ARENAS, Reinaldo. Antes que anochezca. Barcelona: Tusquets, 1996.

LINDON, Mathieu. O que amar quer dizer. Tradução Marília García. São Paulo: Cosac Naify, 2014

MOSCOVICH, Cíntia. Duas iguais. Rio de Janeiro: Record, 2004.

NUANCES. Meu tempo não parou. Documentário. Realização: nuances. Argumento: Célio Golin. Direção Silvio Barbizan e Jair Giacominni. Porto Alegre, 2008. 61 min. Color.

SONTAG, S. The way we live now. New York: The Noonday Press, 1991.