Resumo: O trabalho analisou a obra Angu de Sangue (2000), de Marcelino Freire, debatendo como a linguagem literária que busca imitar a oralidade serve para construir as personagens e as temáticas apresentadas no livro. Foram analisados os contos “Muribeca” e “Angu de sangue” de modo a explicitar a análise. O autor é conhecido por esse e outros livros do gênero conto que dão ênfase a figuras excluídas, que estão à margem da sociedade, tematizando assuntos que fazem parte da realidade social brasileira. Através da estratégia estilística que imita a oralidade, Freire coloca seus personagens no centro do discurso, estabelecendo um diálogo simbólico entre personagem e leitor, para falar sobre a questão da oralidade na obra do autor, levantamos alguns estudos, Almeida (2010) Ferraz (2016) e Marcuschi (2010) que analisam e identificam a influência da oralidade para a significação de seus contos. Para empreender a leitura e a análise, foram utilizados autores como Dalcastagne (2012), Pelegrini (2005) e outros, que discutem e tratam sobre a violência e os marginalizados, bem como estudos que apontam para a construção das personagens e das temáticas mais comuns na literatura de Freire a partir de autores como Pereira (2013), Silva e Oliveira (2017). A metodologia da pesquisa foi de cunho bibliográfico, com análise qualitativa de textos de crítica e estudos literários. A hipótese com que trabalhamos é que a oralidade serve para aproximar o leitor da realidade das personagens marginalizadas, dando-lhes uma “voz” que as constituem como sujeitos das histórias narradas, aproximando, assim, literatura da realidade social.
Palavras-chave: Angu de Sangue; Marcelino Freire; Oralidade; Personagens marginalizadas; Realidade social brasileira.
Abstract: The work analyzed the work Angu de Sangue (2000) by Marcelino Freire, discussing how literary language that seeks to imitate orality contributes to the construction of characters and the themes presented in the book. Were analyzed the short stories “Muribeca” and “Angu de Sangue” in order to explain the analysis. The author is known for this and other books of the genre tale that emphasizes excluded figures, which are on the sidelines of society, themes that are part of the Brazilian social reality. Through the stylistic strategy that imitates orality, Freire puts his characters at the center of discourse, establishing a symbolic dialogue between character and reader, to talk about the issue of orality in the author’s work, we raised some studies, Almeida (2010) Ferraz (2016) and Marcuschi (2010) that analyze and identify the influence of orality for the meaning of their tales. To undertake reading and analysis, authors such as Dalcastagne (2012), Pelegrini (2005) and others were used, who discuss and deal with violence and marginalized, as well as studies that point to the construction of the most common characters and themes in Freire’s literature from authors such as Pereira (2013), Silva and Oliveira (2017). The research methodology was a bibliographic nature, with qualitative analysis of criticism texts and literary studies. The hypothesis with which we work is that orality serves to bring the reader closer to the reality of the marginalized characters, giving them a “voice” that constitute them as subjects to the narrated stories, thus bringing literature closer to social reality.
Keywords: Angu de sangue; Marcelino Freire; Orality; Marginalized characters; Brazil’s social reality.
Introdução
Marcelino Freire é um autor da literatura brasileira contemporânea que se destaca pela produção de contos, os quais, em sua maioria, fazem críticas à realidade social do país. Apesar de a denúncia social ser uma temática crescente, Freire a faz de forma particular e característica, o que lhe concede certa aceitação e reconhecimento em um meio que, segundo Dalcastagnè (2012, p. 9), muitas vezes é inacessível e excludente: o campo literário brasileiro.
Em Angu de Sangue (2000), todos os contos são perpassados por uma forte tendência a imitar a oralidade, seja por meio da fala das personagens ou pelo discurso do narrador. Tendência que reforça os laços entre literatura e realidade social representada. Por meio desta linguagem, que imita a oral, e pela construção das personagens, vemos as questões sociais que brotam das temáticas aparentes em cada um dos contos analisados.
Há também a predominante representação de figuras excluídas e marginalizadas na obra. Sobre tal aspecto, discutiremos a partir de autores que expõem a crescente importância da literatura que denuncia a realidade desigual e violenta, a qual afeta não apenas as grandes cidades, mas a sociedade como um todo.
Para a organização do trabalho, apresentaremos algumas partes e procedimentos. Primeiramente, falaremos da literatura de Marcelino, de sua obra e dos contos escolhidos que são eles “Muribeca” e “Angu de Sangue”, bem como das temáticas, personagens, ambientes e críticas, a fim de explicitarmos aspectos característicos de suas narrativas. Discorreremos, em seguida, sobre a violência e os marginalizados. Adentraremos no campo da representação literária por meio da oralidade, mostrando que ela é recorrente nos textos do autor, de forma que se torna um traço estilístico característico seu. Por fim, analisaremos os contos “Muribeca” e “Angu de sangue”, buscando identificar de que forma a oralidade contribui para construir as temáticas e os personagens.
A literatura de Marcelino Freire e os contos escolhidos
A literatura brasileira contemporânea tem, dentre os seus vários representantes, autores que buscam, por meio de narrativas de cunho realista, manifestar aquilo que, para eles, precisa ser denunciado, representado e, principalmente, ouvido. Com isso, trazem à tona figuras/personagens que ocupam um espaço físico no mundo, mas são invisibilizadas devido à posição social que ocupam, tais como pobres, negros, periféricos, entre outros grupos que sabemos existir na esfera social brasileira, mas cujas vozes são menos ouvidas, conforme aponta Dalcastagnè (2012, p. 12). Nesse sentido, a narrativa sobre tais figuras é um ato político, porque pode exercer reflexão sobre os que são expostos a ela.
Como entendemos a partir de Ferraz (2016, p. 31), não há como transmitir fielmente os sentimentos e as experiências causados em decorrência de qualquer situação discriminatória e excludente, mas há a intenção de representar a dor sentida, mesmo que apenas quem a sofra possa senti-la. Dada a força política e social da literatura, ela pode se colocar como oposição a relações opressoras que produzem o sofrimento, se situando, então, como resistência e denúncia, essa denúncia é feita através do testemunho “visto que por meio dele as transgressões podem ser avaliadas e a lei aplicada” (Ferraz, 2016, p. 31).
Conforme apontam Silva e Oliveira (2017) além de sua primeira obra, Angu de Sangue (2000), é autor de outros títulos, como BaléRalé (2003), Rasif: mar que arrebenta (2008), Amar é crime (2011). Ele é vencedor do prêmio Jabuti de Literatura Brasileira do ano de 2006 pelo livro Contos negreiros (2005). Seu conjunto de obras é composto majoritariamente por livros de contos.
Segundo Silva e Oliveira (2017, p. 51), as personagens de Freire fazem denúncias pertinentes sobre a realidade desigual e violenta do país, expressando um:
desejo […] proveniente de anseios particulares, subjetivos, que, no entanto, transcendem para o coletivo, representando, dessa forma, uma identidade cultural de uma dada classe que se vê subjugada, emudecida e muitas vezes impedida de transitar livremente em nossa sociedade.
Quando os autores expressam que o escritor transcende anseios particulares para o coletivo, eles nos dizem que a mesma revolta que atua sobre Marcelino Freire pode ser despertada em seus leitores, precisamente ao se depararem com histórias carregadas de questões duras e complexas. Por meio de sua escrita, que transforma essas questões em narrativas com tons de realismo, através de seus personagens, seus anseios chegam ao público como um grito a ser ouvido.
O livro Angu de Sangue contém 17 contos que abordam diferentes temas em que o autor usa as palavras não apenas para construir as cenas, mas também seus personagens, que trazem, através do discurso, muitas vezes direto, a indignação, a fúria e o descontentamento. Não apenas em Angu de Sangue, mas em sua literatura como um todo, Freire aborda questões delicadas e personagens que estão à margem da sociedade, representando pessoas que, pela desigualdade, pelo preconceito e pela pobreza, não possuem a oportunidade de falar por si mesmas, ou até tentam, mas são invalidadas pelo lugar de exclusão que ocupam. A literatura, com seu caráter, em parte, excludente, junto de seus agentes legitimadores, que dizem se tal texto ou autor é literário ou não, também impedem que essas figuras se sintam aptas a criar expressões literárias. Daí resta a autores já reconhecidos como “literários” o ato de representá-los. Pondo em evidência a voz desse outro, colocando-o como centro e não mais como margem, Marcelino busca um gesto legítimo e político de dar voz aos marginalizados.
O autor identifica, por meio de sua escrita, a possibilidade de intermediar a denúncia para essas pessoas, fazendo uma espécie de ponte entre elas e aqueles que ocupam o “outro espaço”. Ele não faz isso de forma hostil, mas, primeiro, “em si mesmo busca ouvi-los, sem preconceitos, e sem pré-julgamentos” (Canal Arte1, 2019). E, a partir disso, transmite mensagens que, na realidade, são impedidas de serem feitas diretamente por essas pessoas representadas.
A literatura possibilita o contato e a experiência do choque com essas realidades. Por isso, Pereira (2013, p. 141) identifica que Freire caracteriza seus personagens com:
traços estilizados que fazem o leitor aprofundar-se numa linguagem de estranhamento e em situações cotidianas que são mais representativas pelos gestos e ações que propriamente pelos caracteres dos personagens.
Em vista disso, podemos identificar em suas obras personagens que muitas vezes não são nomeados, o que pode representar o lugar de exclusão que ocupam na sociedade em que vivem. No entanto, através do discurso em primeira pessoa, em que os próprios personagens falam, o autor está nos dizendo que eles podem até não ter nome ou serem invisibilizados pela sociedade, mas, nos seus contos, eles têm voz e espaço para manifestação.
Além da intenção político-social, há uma busca por representar a oralidade. O grito, o testemunho e o “vexame” estão sempre presentes nos escritos do autor, que, ao observar o grito de sua mãe, conseguia perceber que este exprimia sofrimento das dificuldades no nordeste brasileiro, lugar onde morava, e fez disso um objeto característico de sua escrita, pois a dificuldade enfrentada por sua família era transmitida pelo grito. Em sua literatura, isso é percebido através de marcas da oralidade que servem para dar força às denúncias sobre as desigualdades, o caos, o preconceito, a miséria e a exclusão, observadas por ele. O próprio autor afirma em diversas entrevistas que seus textos foram feitos para serem gritados, lidos em voz alta, seus personagens gritam para serem ouvidos: “eu escrevo porque eu quero compactuar com aquele gemido. Com aquele grito, pra me vingar, eu quero gritar junto” (Freire, 2019, online).
Foram tomados dois contos da obra para fins de análise, sendo eles “Muribeca” e “Angu de sangue”. “Muribeca” traz o relato de uma moradora de lixão que está sob ameaça de fechamento; “Angu de sangue”, conto que dá título ao livro, apresenta um indivíduo morador da cidade de São Paulo que faz da violência a maior expressão da própria vida.
Violência e os marginalizados
A violência é uma realidade existente em todas as civilizações. Alguns dos acontecimentos mundiais mais marcantes durante o desenvolvimento das sociedades estão marcados pela violência, como a I Guerra Mundial (1914-1918), a II Guerra Mundial (1939-1945), a ascensão do nazismo (1933) e do fascismo (1922), a implementação de ditaduras militares, como a Ditatura Militar no Brasil (1964-1985), entre outros momentos históricos, os quais revelam que a barbárie e o ódio estão sempre presentes nas sociedades.
Apesar da realidade ainda atuante da barbárie, ao longo do tempo, foi se intensificando um processo de oposição ao que antes era considerado “normal”, como afirma Candido (1995, p. 237):
É verdade que a barbárie continua até crescendo, mas não se vê mais o seu elogio, como se todos soubessem que ela é algo a ser ocultado e não proclamado. […] Para emitir uma nota positiva no fundo do horror, acho que isso é um sinal favorável, pois se o mal é praticado, mas não proclamado, quer dizer que o homem não o acha mais tão natural.
Candido nos mostra que o que antes era aceito no discurso, a partir de mudanças nas sociedades, já não o é mais, podendo haver um movimento em direção à mudança, não ainda para determinar o fim da violência, mas para, no mínimo, levar a um estado de contestação e de resistência. Grupos oprimidos passam a lutar por direitos básicos, e o acesso à parte deles é inicialmente alcançado, embora isso ocorra primeiro no discurso, e somente depois, na realidade, como demonstra Candido.
Dentre os recursos utilizados como meio de expressão contra as desigualdades e injustiças sociais, tem-se a literatura, pois, como aponta Candido (1995, p. 243), “ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade”. Ela não apresenta meras descrições de acontecimentos e fatos, mas é capaz de mostrá-los de forma detalhada, através das palavras, fazendo refletir, tornando-se uma ferramenta importante que tem a aspiração de alcançar lugares que outros meios culturais, como a televisão e a indústria cinematográfica, alcançam, mesmo que de forma limitada, pois acabam mostrando uma realidade muitas vezes alienada, como afirma Ferraz (2016). Ou seja, as narrativas, em outros meios que não a literatura, acabam não atuando para a reflexão, e são vistas apenas como “ficção”, distanciando-se de uma possível ferramenta de denúncia das mazelas sociais.
Assim, chegamos ao estado atual da literatura brasileira contemporânea, com a crescente busca pelas narrativas sobre violência, a representação dos excluídos e a dos marginalizados, entendidos a partir de Raymond Williams (1998 apud Dalcastagnè, 2012, p.12) como “todos aqueles que vivenciam uma identidade coletiva, que recebe valoração negativa da cultura dominante –, que sejam definidos por sexo, etnia, cor, orientação sexual, posição nas relações de produção, condição física ou outro critério”. No Brasil, falar desses grupos é adentrar na grande parcela da população, já que “1% da população concentra 50% da riqueza” (UOL, 2011, online), então, chegamos aos pobres, aos favelados, àqueles que não tiveram e não têm acesso à educação, à moradia e aos bens mínimos necessários para sobrevivência. As narrativas realistas surgem para romper “o silêncio dos marginalizados que é coberto por vozes que se sobrepõem a eles, vozes que buscam falar em nome deles” (Dalcastagnè, 2012, p. 12). Desse modo, reconhecemos a legítima importância das personagens que representam grupos esquecidos e silenciados.
Ao “falar deles” e “por eles”, o autor não quer apenas contar histórias que chamam a atenção do público, mas sim provocá-los. Por meio da literatura, isso se torna possível, pois segundo Pelegrini (2005, p. 142):
A literatura, […] ao imobilizar ou fixar a vida por meio do discurso, transforma-a em representação. Nesse sentido, como ela permite fazer também uma espécie de teste dos limites da palavra enquanto possibilidade de expressão de uma dada realidade, em se tratando de uma matéria como essa, a exploração das possibilidades de transgressão ditada pelas situações mais extremas – o sexo, a violência, a morte – cria temas “necessários” para o escritor (não mais para o etnógrafo) que, por meio deles, garante um interesse narrativo (para o leitor) escorado na antiquíssima catarse aristotélica, em que o terror e a piedade, a atração e a repulsa, a aceitação e a recusa são movimentos inerentes à sedução atávica atraindo para o indizível, o interdito, para as regiões desconhecidas da alma e da vida humanas.
A literatura contemporânea de cunho realista busca exatamente apresentar e representar os grupos marginalizados, de maneira que estimule e até obrigue a reflexão, pois “muito embora a banalização da violência pela indústria cultural apague estas possibilidades de reflexão, elas não deixam de ser possíveis se desviarmos nossa atenção da violência meramente espetacularizada” (Ferraz, 2016, p. 29). Essa literatura, como a de Marcelino Freire, não é mera representação “artística” e sim a busca em fazer com que seus leitores se incomodem, tornando-se críticos e mais humanos, o que é uma função da própria literatura, porque a literatura “humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (Candido, 1995, p. 243-244), já que leitor se encontra, de forma mesmo que simbólica, no lugar de quem é representado.
Se estabelece, então, um diálogo necessário, que talvez no mundo real não seja possível pelas desigualdades sociais existentes, que marcam sempre o lugar do pobre, do marginalizado, em relação ao lugar do rico, da elite, e mesmo das classes médias. Através da literatura e da arte, “somos capazes de nos horrorizarmos mais lendo sobre isso, do que vendo todo dia embaixo dos nossos olhos” (Mendes, 2013, p. 02). A leitura nos coloca no lugar daquele que fala, que grita, nos aproximando e nos fazendo refletir sobre essas situações, a partir do incômodo que sentimos por causa dos relatos.
Na obra de Freire, podemos perceber diversas formas de representação da violência, identificadas por Pereira (2013, p. 140):
(…) não se trata apenas da agressão cotidiana, mas também da violência verbal, da violência física, do abandono e, por fim, da estilização da violência por meio da representação de cenas (escritas ou sob a forma de imagens que compõem a obra) que adquirem um aspecto de normalidade frente a um cotidiano caótico e de desamparo social.
O estudioso aponta que a representação da violência é feita a partir das diversas vozes e personagens que compõem a obra, vozes que se misturam e representam pessoas que estão distantes no espaço geográfico, mas, em conjunto, traduzem, em parte, a sociedade em que vemos. Nos contos de Marcelino Freire a escrita “aproxima-se do pensamento, adota a gíria, abole diferenças entre o texto escrito e o falado, e busca nas personagens não convencionais uma maneira de mostrar a sociedade através de imagens não idealizadas” (Ferraz, 2016, p. 30); são elementos, portanto, que prendem a atenção do leitor, que fazem do discurso o lugar de subjetividade de cada personagem.
A questão da oralidade
Um traço fundamental de Freire, como temos apontado, é a oralidade. Segundo Marcuschi (2010, p. 25),
a oralidade “seria uma prática social interativa para fins comunicativos que se apresenta sob variadas formas ou gêneros textuais fundados na realidade sonora; ela vai desde uma realização mais informal a mais formal nos mais variados contextos de uso.
Nesse sentido, a oralidade pode ser entendida como aquilo que abrange a fala, mas, aqui, trata-se da perspectiva que a observa sob a ótica da teoria do dialogismo de Mikhail Bakhtin, a qual apresenta a oralidade como um fenômeno estético expresso, segundo Silva e Oliveira (2017, p. 54), “em outras palavras, é uma forma de representação escrita dessa voz viva”. Ao falarmos de oralidade no caso de Marcelino Freire, percebemos que o autor faz uso dessa prática social nesse sentido. Mas de que forma ele o faz? Por meio do emprego, por exemplo, de palavras usadas na fala, mas que, na escrita, não são aceitas dentro da chamada norma-padrão da língua.
Embora sofra críticas, não há como desconsiderar a importância da expressão oral na literatura, já que ela é parte constitutiva de todo ser e de nossa história. Uma vez mencionada, a identificamos nos contos de Freire como marca de composição estética. Walter Ong (1998, p. 16 apud Almeida, 2010, p. 44) demonstra a estreita relação entre a expressão oral e a escrita de forma que:
Todos os textos escritos devem, de algum modo, estar direta ou indiretamente relacionados ao mundo sonoro, habitat natural da linguagem, para comunicar seus significados […] A expressão oral pode existir – e na maioria das vezes existiu – sem qualquer escrita; mas nunca a escrita sem a oralidade.
Dada essa relação entre escrita e o mundo sonoro, Freire abusa da oralidade em suas obras. O autor une temáticas que envolvem a violência, desigualdade social e exclusão, expressos por discursos, em grande parte, em primeira pessoa, o que confere “à representação de aspectos da violência uma certa aura de verdade” (Ferraz, 2016, p. 33). Dessa maneira, permite ao leitor, simbolicamente, a sensação de estar ouvindo o relato daquele que fala, de forma clara e objetiva. Mas, para tanto, é necessário que o escritor consiga utilizar recursos que sirvam de ferramenta para exprimir aquilo que ele pretende, pois como afirma Ferraz (2016, p. 28-29):
[…] não basta a descrição do ato violento, é necessário que a narrativa traga o testemunho daquele que sobreviveu a agressão física ou conseguiu sobressair-se à agressão psicológica. No discurso do sobrevivente, procuramos a verbalização de algo que sabemos ser difícil dimensionar e explicar. O testemunho e a corporificação do sofrimento na palavra oralizada contribuem para este dimensionamento.
A simples descrição de um ato ou acontecimento permite apenas que o leitor ou ouvinte se situe nos fatos ou imagine as cenas a partir das informações fornecidas. No entanto, o tom de testemunho e a oralidade empregados por Freire fazem com que seja possível quase ouvir e sentir o que é narrado, como nos contos que serão aqui abordados, compartilhando o desespero e a angústia da catadora de lixo ou o contentamento de um homem com a violência vivida em uma grande cidade.
Tais efeitos são produzidos, como observa Ferraz (2016, p. 33), pelo uso de “rememoração, pausas, repetições, gírias e palavrões, que ajudam a localizar socialmente cada personagem e a dar dimensão ao tipo de violência que vivenciaram”. Assim, o autor não se atém à mera narração dos fatos, ele coloca o personagem no centro de sua própria história, para ser livre e expor tudo aquilo que quer dizer.
Muribeca
“Muribeca” é o primeiro dos 17 contos presentes no livro Angu de Sangue. Ele explora o que vemos todos os dias em nossa realidade e em noticiários: pessoas em situação de pobreza. Entretanto, o discurso parte da perspectiva de quem vive essa situação, não um relato de vitimismo, e sim de alguém que está lutando pelo seu único lugar no mundo, o de catadora, moradora e de quem depende do lixão para sobreviver.
A narrativa traz uma mulher que fala sobre a possibilidade de fechamento do lixão onde mora. É o governo que quer fechá-lo e ela não aceita essa imposição. O lixão oferece para ela e seus moradores o acesso à moradia, a objetos de casa e a tudo de que precisam para sobreviver. Ele representa o passado, o presente e, principalmente, o futuro dessas pessoas. Por trás da ameaça de fechamento, existe a promessa de casas populares, mas, para a personagem, não passa de promessas falsas, uma vez que, saídos do lugar, não terão onde trabalhar e, consequentemente, dinheiro para pagar pelas casas: “esse negócio de prometer casa que a gente não pode pagar é balela, é conversa pra boi morto. Eles jogam a gente é num esgoto” (Freire, 2000, p. 24). O que a personagem e todos aqueles que lá vivem querem é poder permanecer no lixão levando a vida que sempre levaram.
O enredo se desenrola como uma conversa. Temos a moradora em foco e, em segundo plano, um possível interlocutor ou entrevistador. Percebemos isso no trecho “o moço tá servido?” (Freire, 2000, p. 25), nos remetendo ao fato de que existe uma segunda pessoa no diálogo, no entanto, somente o discurso da mulher é evidenciado, isso marca a intenção do autor em deslocar a posição social da mulher e colocá-la no centro da situação, porque como afirma Freire (1987), nada melhor do que o oprimido para falar sobre a sua situação no mundo.
A principal temática social que constitui o conto é a desativação do lixão. Esse contexto, segundo Ribeiro e Brito (2022, p. 76), evidencia duas problemáticas existentes no país:
a presença dos lixões a céu aberto, uma mazela de ordem ambiental, e o grande número de brasileiros que vivem nesses lixões como catadores, uma das mais insalubres e indignas atividades econômicas humanas.
Marcelino Freire nos apresenta, no contexto social dos anos 2000 (ano de lançamento do livro), um assunto que, 24 anos depois, ainda não está tão longe da realidade social atual brasileira, os lixões, pois mesmo depois de sua proibição, através da Lei 12.305, que entrou em vigor no dia 2 de agosto de 2010, pela chamada “Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS” (MPPR, 2024, online), ainda existem no país lixões a céu aberto. Segundo o G1 (2023, online):
até o ano de 2024, 2,5 mil lixões precisam desaparecer do mapa. A quantidade de lixo lançada a céu aberto, por ano, no Brasil, equivale a mais de 700 estádios do Maracanã cheios de resíduos – cerca de 29,7 milhões de toneladas.
Esse é um número elevado, em suma, se levarmos em consideração que a lei está em vigor há 14 anos. No tocante à sua implementação, muito se fala dos objetivos ambientais e de saúde, mas inexistem políticas públicas que tratem da situação de quem depende desse ambiente para sua subsistência. Estamos nos referindo a todos os aspectos da vida dessas pessoas, como elucida o relato da personagem:
Lixo? Lixo serve pra tudo. A gente encontra mobília da casa […] O que é que eu vou dizer pras crianças? Que não tem mais brinquedo? Que acabou o calçado? Que não tem mais história, livro, desenho? […] E o meu marido, o que vai fazer? Nada? Como ele vai viver sem as garrafas, sem as latas, sem as caixas? Vai perambular pela rua, roubar pra comer? […] (Freire, 2000, p. 23).
O que para a sociedade é sem importância, miserável e descartável, para estas pessoas significa a vida, a sobrevivência, a existência. O abandono é incontestável, pois, se tudo o que essas pessoas possuem provém do lixão, nada lhes é oferecido por quem deveria garantir seus direitos: o Estado.
Eles são abandonados como cidadãos, pois seu acesso a bens básicos depende do lixo e de seus próprios esforços. Quando os lixões são fechados, são novamente abandonados, já que lhes é tirada a única fonte de sustento. Ocupando um lugar silenciado e excluído na sociedade, sem oportunidades de se manifestar, é por meio do discurso que a mulher encontra uma forma de lutar por seu espaço. Nesse discurso, a personagem expressa suas lamentações e sua raiva, tendo liberdade para dizer o que quiser, inclusive para criticar o Governo:
O povo do governo devia pensar três vezes antes de fazer isso com chefe de família. Vai ver que eles tão de olho nessa merda aqui. Nesse terreno. Vai ver que eles perderam alguma coisa. É. Se perderam, a gente acha. A gente cata. A gente encontra. Até bilhete de loteria, lembro, teve gente que achou. Vai ver que é isso, coisa da Caixa Econômica (Freire, 2000, p. 24).
Sua crítica é legítima e a faz sem medo, pois para ela tudo está em jogo, não importando se, do outro lado, está a Caixa Econômica ou o Governo. Sua vida depende disso e fará tudo para não perder, é uma mulher resoluta em sua resistência, afirmando com firmeza: “não, eles nunca vão tirar a gente deste lixão” (Freire, 2000, p. 25).
O texto todo é construído em primeira pessoa, e é aqui que identificamos a oralidade. Essa oralidade pode ser compreendida através de Marcuschi (2010, p. 49), precisamente pelo conceito de transcrição, que é o ato de:
(…) passar um texto de sua realização sonora para a forma gráfica com base numa série de procedimentos convencionalizados. Seguramente, neste caminho, há uma série de operações e decisões que conduzem a mudanças relevantes que não podem ser ignoradas.
É por meio do emprego deste recurso que o autor é capaz de nos situar dentro dos conflitos em que a personagem se encontra. Através da sua voz, do ritmo de suas frases, conseguimos imaginar o desespero, a angústia e a raiva sentidos. Por isso, o autor abusa de recursos que tornam possíveis essa representação.
Em primeiro caso, o diálogo se inicia com uma pergunta que logo se responde, mostrando o que encontraremos na história: “Lixo? Lixo serve pra tudo” (Freire, 2000, p. 23). A resposta derruba toda uma construção social negativa a respeito de um ambiente como o lixão, visto como lugar de pobreza e, principalmente, de marginalização, não apenas o ambiente em si, mas, ainda, as pessoas que fazem parte dele, seus moradores e trabalhadores, sobre os quais recaem estereótipos ligados à criminalidade e à desvalorização de seus trabalhos. Mas, para a personagem, o lixo representa o contrário de tudo isso. Somos levados a um estado de hesitação, pois como um lugar tão hostil pode representar uma realidade necessária para tantas pessoas ao ponto de se recusarem a se retirar?
O conto é composto por 11 parágrafos curtos, 8 dos quais iniciam ou terminam com perguntas. São perguntas claras e objetivas que geram grande intimidação para quem as recebe, pois é posto em evidência todas as questões vitais para personagem:
É a vida da gente o lixão. E por que é que agora querem tirar ele da gente? […] E o meu marido, o que vai fazer? Nada? […] Com que dinheiro vou fazer sopa, vou fazer caldo, vou inventar farofa? […] Fale, fale. Explique o que é que a gente vai fazer da vida? O que a gente vai fazer da vida? […] Vá, me fale, me diga, me aconselhe. Onde vou encontrar tanto remédio bom? […] Onde a gente vai morar? Aqueles barracos, tudo ali em volta do lixão, quem é que vai levantar? Você, o governador? (Freire, 2000, p. 23-24).
O emprego das perguntas em frases curtas produz um ritmo mais acelerado que deve ser empregado no ato da leitura. Pelo teor e conteúdo dos questionamentos, notamos que é um tom rígido que expressa o sentimento de revolta que a moradora quer transmitir para a pessoa que a ouve, e é transmitido para nós, enquanto leitores.
Há no texto a forte presença da preposição “para”, e do pronome “nós”, mas empregados de maneira informal, como “pra” e do “a gente”. Essas utilizações exploram a função conativa da linguagem, com o intuito de se aproximar do leitor, de transmitir um diálogo transparente e simples, simples como a própria personagem é. Outro aspecto formal encontrado é a constante utilização de pontos finais nas frases presentes em cada parágrafos, eles demarcam pausas intencionais como a finalização ou abreviação dos enunciados.
Também encontramos as rimas, elas aparecem ao longo dos parágrafos, como rimas internas: “E o meu marido, o que vai fazer? Nada? Como ele vai viver sem as garrafas, sem as latas, sem as caixas? Vai perambular pela rua, roubar pra comer?” (Freire, 2000, p. 23). Os verbos “fazer”, “viver” e “comer” rimam, estando ao longo do parágrafo junto da assonância “a” em palavras como “garrafas”, “latas” e “caixas”. O autor brinca com esses jogos sonoros em grande parte da narrativa, criando ritmo próprio e atribuindo certa musicalidade no desenvolvimento da leitura, facilitando-a e tornando-a mais fluida e envolvente, apesar do conteúdo profundo e tenso da história.
Portanto, através dos recursos estilísticos empregados pelo autor, somos levados a mergulhar no sofrimento e no desespero que a personagem se encontra, pois é ela quem nos fala sobre a própria realidade, é ela quem está no centro do discurso. A posição que o possível entrevistador ocupa é a mesma que nós enquanto leitores ocupamos, posto que só ela fala, só ela grita, só ela lamenta e não nos poupa de proferir suas mazelas e defender o único lugar que a acolheu e lhe ofereceu um viver digno. O seu discurso e a representação de sua oralidade funcionam como uma denúncia que só podemos acolher e buscar compreender.
Angu de sangue
Em “Angu de Sangue”, nos deparamos com um personagem que está sendo assaltado. Enquanto o roubo acontece no meio do trânsito de São Paulo, a vítima devaneia entre a tensão do assalto e a briga séria com Elisa, sua namorada. Ele está transtornado e com pensamentos embaraçosos.
O enredo se dá com o assaltante entrando no carro. Primeiro, pede a carteira; em seguida, assume a direção e vai em busca de um caixa eletrônico; lá, saca 300 reais, mas não é suficiente para ele; então, pede à vítima que o leve até sua casa, para roubar mais coisas. Entre um pensamento e outro, o dono do carro decide levá-lo à casa de Elisa. Ao chegarem no apartamento, encontram o corpo dela estirado no chão. Quando é surpreendido por um tiro, o ladrão se assusta e morre. A aflição do assaltado era motivada pelo feminicídio que ele cometeu.
O conto surpreende porque o foco principal não estava no roubo, que é mostrado quase em segundo plano, mas nos pensamentos do personagem. A respeito de sua briga com Elisa:
Quando o bandido entrou em meu carro, eu pensava em Elisa, nervoso, tentava esquecer o inferno que foi a nossa briga. Nem tive tempo de fugir do ladrão, nem de escapar daquele pensamento. […] A gente não entra (nem sai) da vida de uma pessoa assim, bruscamente. De uma esquina para outra tudo pode acontecer (Freire, 2000, p. 69).
Para ele, o ladrão não quer nada além dos bem materiais, dinheiro, cartão de crédito. Nesse momento, tais bens são reduzidos para apenas “só”, o que significa pouco; além disso, ele não tem, pois não é rico, mas o que tem e o que importa é ser “dono do coração” da mulher amada.
No início da história, não conseguimos identificar o motivo dele estar perturbado, mas logo notamos que se trata de um crime brutal:
Fiquei sem entender, ora, o que acontece com a nossa cidade, no coração de São Paulo vejo a cara feia de um revólver. É um assalto. Como se fosse novidade o fim de um relacionamento, o começo de um outro ainda mais violento (Freire, 2000, p. 69).
Embora para o personagem esteja acontecendo apenas com dois fatos “comuns”, um assalto e o fim de um relacionamento, podemos notar que a utilização do vocábulo “ainda mais” sugere duas situações violentas, entretanto, entre as duas, a única que está ligada a fatos violentos é o assalto, a utilização de “ainda mais” sugere que existe um fato oculto sobre o término do relacionamento, a violência que contempla o término não é colocada diretamente, e sim velada. O autor nos dá pequenas informações ao longo do texto que remetem ao conteúdo principal que deseja:
Você está em tudo, depois de você eu não tenho mais nada a perder. Por você eu daria o meu sangue. […] Por você eu até mataria. […] Ele poderia atirar a qualquer momento. Puxar, em meu lugar, o gatilho (Freire, 2000, p. 70).
Em vez de imaginarmos apenas um homem recém-solteiro, que está sofrendo pelo fim do relacionamento, as informações, alternando entre os pensamentos em relação à Elisa e à ação do ladrão, remetem a alguém que está fora do controle. Isso atribui tensão à narrativa, tensão de um indivíduo que, após cometer um crime, se torna vítima de um outro crime.
O personagem tenta em vários momentos se colocar no lugar de vítima por sentir um profundo sofrimento e não por ser culpado como é, como se o crime que cometeu tenha sido influenciado por Elisa, por descontrole ou por forças superiores:
Leve o meu carro, me deixe sozinho. […] Faça-me qualquer coisa, atire-me de dentro, livre-me dessa agonia. […] Elisa ameaçou chamar a polícia se eu batesse nela. Eu bati. Eu sofri. Eu estou sofrendo. […] O que faz esse homem violento aqui dentro? Porra. Ele nunca deve ter tido um amor na vida. Ele não vai entender o que é estar apaixonado. Viver, morrer por uma pessoa. […] “Vai logo, porra, porra, porra.” Vaca. “Cadê a vaca?” Vaca? Também chamei Elisa de vaca, puta, escrota. Hoje me arrependo. Eu tava fora de mim. Dentro de mim havia alguma coisa. Algum demônio que mexia. Alguma mudança incontrolável (Freire, 2000, p. 70– 72).
Seu discurso revela um tom de vitimização, como se ele acreditasse merecer o sofrimento pelo que fez e demonstrasse arrependimento constante. Embora tenha agredido Elisa, afirma sofrer por isso e, em seguida, coloca-se diante do bandido pronto para morrer mas não é morto. Tudo acontece, segundo ele, por amor, pois “por amor” vive, mata e está disposto a morrer. Tudo aconteceu porque estava tomado por um demônio, algo que nele mudou e não soube explicar ou controlar, embora ele mesmo desminta: “fala baixo, pediu Elisa quando brigamos. Eu estava transformado. Elisa não gostava de escândalo. Parecia que não estava acostumada às minhas baixarias todos esses anos” (Freire, 2000, p. 72). É um relacionamento abusivo de violência física e psicológica, já que o próprio personagem nos relata que há anos age de maneira desrespeitosa. Para Arendt (1985 apud Barretto, 2018, p. 143):
A violência surge como última alternativa possível para manter o poder sobre o outro. Nas relações abusivas, o poder está no cerne da questão, ela demonstra a desigualdade existente entre as forças do abusador e do sujeito que sofre o abuso. O poder é então uma via pela qual a força física ou simbólica será aplicada, no intuito de atingir determinado objetivo.
No momento que percebe que já não há mais nada a fazer, que não pode mais controlar Elisa e o relacionamento acabou, ele a mata e a culpa:
foi quando um homem estranho se aproximou, vejo que ele está mal-intencionado, vai querer entrar no meu carro, aproveitar que o final está fechado, Elisa, vai querer acabar outra vez com a minha vida (Freire, 2000, p. 74).
Em seu vitimismo, culpa a Elisa por supostamente tê-lo feito cometer dois crimes, e não ele próprio, agindo como um criminoso. Mas sua verdadeira personalidade é revelada quando mata o bandido: “fui mais rápido – atirei no desgraçado. Só foi alcançar o gatilho. […] O maldito merecia, merecia. O maldito, um tiro na cara. Merecia” (Freire, 2000, p. 73). É um homem violento que utiliza a violência para resolver seus problemas e ter controle das situações.
Nos dois primeiros parágrafos, as frases são mais longas, se comparadas aos outros contos do livro; a utilização de vírgulas é maior do que de pontos finais, comumente utilizada por Freire para criar frases mais curtas. Essa extensão das frases sugere uma fala regular, desacelerada, já que a voz do discurso apenas nos apresenta as situações gerais, de preocupação ao pensar em sua briga com Elisa e a de um bandido entrando em seu carro para assaltá-lo.
A partir do terceiro parágrafo, notamos o início da tensão presente no conto, por meio dos pensamentos desestabilizados do homem, que é evidenciado através do direcionamento da palavra à sua amada, mesmo que não esteja presente na situação. Então, em sua mente perturbada, ela o ouve: “dei a carteira, saquei o cartão de crédito. Ele só quer o meu dinheiro, Elisa. Você é quem me ama. Não sou rico, mas sou dono do seu coração” (Freire, 2000, p. 69). Aqui, se inicia o uso das pausas bruscas marcadas pelos pontos finais, o discurso acelera, sugerindo alguém que está nervoso.
O direcionamento da palavra a Elisa é feito também em outros momentos, mostrando que, apesar da situação de um assalto ser extremamente tensa, a atenção dele não está ali: “Pediu a senha, gritou um, dois, três. A senha, Elisa. […] Você está em tudo, depois de você eu não tenho mais nada a perder. Por você eu daria o meu sangue. A senha. Por você eu até mataria. A senha, porra” (Freire, 2000, p. 70). A repetição da palavra “senha” indica que o criminoso pediu várias vezes, mas isso não consegue interromper os pensamentos do homem. Ele menospreza sua própria vida e seus bens, em vários momentos pede para que o bandido atire: “atire, porra […] Pode me matar. Pode atirar sem dó […] ‘Atira, seu filho da puta, atira’ […] ‘Atira, porra’, eu suplicava” (Freire, 2000, p. 70-73). A repetição do verbo “atirar” acompanhado dos palavrões reforça um pedido desesperado e violento, que é o estado emocional do personagem.
Os palavrões demonstram o ambiente hostil em que a trama se desenvolve “O bandido estava possesso: ‘Vai, caralho, vê se não embaça’ […] ‘Vai logo, porra, porra, porra’ Vaca. ‘Cadê a vaca?’ Vaca? Também chamei Eliza de vaca, puta, escrota […]” (Freire, 2000, p. 71-72). Os palavrões em conjunto e as repetições sinalizam agressividade na fala de quem discursa, o que produz uma leitura induzida pelo tom que essas palavras remetem, são falas de alguém que está tomado pela raiva, ansiedade e desespero.
Aqui, a representação da oralidade ocorre por meio de recursos como palavrões, frases ora longas ora curtas, alternância entre pensamentos e falas, que querem transmitir sentimentos e inquietações de um indivíduo que acabou de cometer um crime, mas que, apesar de proferir a todo momento que se arrependeu, suas próprias atitudes mostram que não, pois a violência do ato se transfere para a violência da fala e dos pensamentos tão bem representados na escrita do conto.
Considerações finais
A partir do estudo desenvolvido, exploramos as temáticas que compõem a literatura de Marcelino Freire em dois de seus contos: “Muribeca” e “Angu de Sangue”. Criações que tematizam questões de cunho social que perpassam seus questionamentos enquanto indivíduo inserido numa sociedade desigual, preconceituosa e violenta. Estas questões são expostas de maneira crítica, expondo uma denúncia contra a banalização que sofrem no mundo real. Banalização que afeta sobretudo os mais pobres e marginalizados, colocados em posições de submissão e exclusão. Por ocuparem esse lugar de exclusão, não os conhecemos por seus próprios discursos, e sim por outros meios: por meio de dados que expressam as altas taxas de violência e o aumento da pobreza, e que aparecem nos telejornais. Em vista disso, como o próprio autor afirma, por estar intimamente ligado à ladainha, ao grito, ele busca em seus textos, representar a voz dessas figuras, e o faz por meio de discursos carregados de oralidade.
Esta oralidade que imita a fala é construída através de recursos implementados intencionalmente, tais como as pausas através de pontos finais, que ditam o ritmo, pausando em momentos específicos, sugerindo um discurso brusco e/ou agressivo, ou ainda, ao reduzir as pausas, para construir frases mais longas, gerando tom regulares, desacelerados e amenos. Além disso, encontramos a forte presença de rimas, elemento que, assim como os sinais gráficos expressos, contribuem para ditar o ritmo da leitura e contribuem para a sonoridade regular, de acordo com a intenção do autor.
Assim, os recursos implementados contribuem para a construção de narrativas críticas e marcantes, que abordam temáticas importantes as quais, muitas vezes, são banalizadas, mas, pela forma como são representadas nas obras, nos fazem refletir e nos levam a ouvir vozes que foram e são silenciadas pelo meio social em que vivem, e nos fazem refletir sobre a violência cotidiana que marca a vida contemporânea.
Referências
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