Análise do conflito razão x desejo em O homem, de Aluísio Azevedo[1]

Lidia Carolina Arnhold Casper

RESUMO: O presente texto procura analisar o conflito entre razão e desejo que atravessa o livro O homem, de Aluísio Azevedo, em suas dimensões individual e coletiva, pensando se o autor propõe resoluções para tal embate nesses dois âmbitos. Assim, interpreta-se aqui as diferentes posições que os objetos em conflito tomam diante da personagem principal, Magdá, conforme a progressão da histeria, doença com a qual é diagnosticada, a partir de uma análise que toma a construção da obra como permeada de ironia. Observa-se, também, como essa constituição torna o livro uma crítica às imposições da sociedade burguesa sobre a mulher e à razão onipotente, capaz de explicar todos os fenômenos do cotidiano, sendo essa visão que ressalta a importância da obra para a contemporaneidade. Por meio dessa análise, finalmente, será possível concluir que o autor, ao escrever O homem, apresenta soluções para o conflito entre razão e desejo no âmbito subjetivo, mesmo que não o faça no que diz respeito ao coletivo, questão que pode evidenciar uma crítica social.

PALAVRAS-CHAVE: O homem; conflito; razão; desejo; crítica; individual; coletivo.

ABSTRACT: This text aims to analyze the conflict between rationality and desire that pervades the book The man, by Aluísio Azevedo, considering both individual and collective dimensions, while reflecting whether the author offers resolutions for the named dispute within these spheres. Accordingly, this study interprets the different positions that the objects in dissense take place before the main character, Magdá, according to the progression of hysteria, illness with which she is diagnosed, parting from an analysis that takes the literary work as permeated with irony. Furthermore, it is observed how this constitution transforms the book into a critique aimed at the impositions of the bourgeois society upon women and the omnipotent rationality, capable of explaining every phenomenon of everyday life, being this the perspective that emphasizes the importance of the literary work for contemporaneity. By means of this analysis, at last, it will be possible to conclude that the author, when writing The man, presents solutions for the dispute between rationality and desire in the subjective field, although the same is not done in relation to collectivity, question that may highlight a social critique.

KEYWORDS: The man; conflict; rationality; desire; critique; individual; collective.

INTRODUÇÃO

Edu Teruki Otsuka, em seu artigo Conflito e interrupção: sobre um artifício narrativo em O Cortiço, traz apontamentos sobre a estratégia narrativa de Aluísio Azevedo, apresentada com a inserção de elementos (como a personagem Bruxa) em meio ao embate coletivo que narra, fazendo com que tal nunca chegue a uma resolução, ao mesmo tempo em que resolve os conflitos individuais no decorrer da história (a exemplo da rixa entre Firmo e Jerônimo). Na produção acadêmica, o autor ainda investiga parcialmente o que teria levado o escritor canônico a adotar esse recurso, indicando a possibilidade de haver, para esse segundo, “dificuldade de representação, a qual pode ser vista não apenas como uma deficiência de ordem subjetiva (autoral), mas como uma dificuldade objetiva, que possivelmente aponta para impasses históricos” (Otsuka, 2009, p. 179).

Diante dessa crítica, gostaríamos de tomar os apontamentos de Otsuka sobre a narratividade em O Cortiço para dialogar, no entanto, sobre outro romance de Azevedo publicado três anos antes, qual seja, O homem. Em uma análise superficial, poderia pensar-se que, em oposição ao ocorrido em O Cortiço, o conflito em O homem pertence apenas à dimensão individual, dizendo respeito unicamente à personagem Magdá (ou Madalena), isso porque o autor não aborda explicitamente ainda questões sociais relacionadas à classe e gênero. Entretanto, é possível observar características de direcionamento para o meio coletivo. De tal modo, o conflito “apenas de Magdá” seria transposto à sociedade de forma a criticar os modos de vida da burguesia, apresentando diversas contradições e hipocrisias incorporadas nesse universo. Ademais, pensa-se no confronto entre razão e desejo que aflige a filha do conselheiro Pinto Marques como um dos responsáveis principais pelo desenvolvimento de sua neurose, visto que não é o desejo que a faz abandonar o reino da razão, mas sim a impossibilidade de atender a ele. A progressão da histeria de Magdá é explorada também por Sergio Paulo Rouanet em A construção da histeria feminina em Aluísio Azevedo, trabalho no qual estabelece relações entre a personagem histérica de Azevedo e os estudos do psicanalista Sigmund Freud, dentre outras análises, da seguinte maneira:

A histeria é uma forma de defesa contra uma representação indesejável, mas quando a conversão é incompleta produz sensações mentais dolorosas, contra as quais a paciente procura defender-se através do delírio psicótico, que cria uma realidade alucinatória, em que o desprazer é anulado (Rouanet, 2004, p.436).

Assim, como debater-se-á novamente adiante, o fato de Magdá tornar-se histérica nada mais é do que uma consequência já suposta diante dos fatos que se desenvolvem na história. Desse modo, no presente texto, não se segue à risca a linha de Otsuka, analisando o conflito e sua interrupção como estratégia narrativa, mas aborda-se a constituição de tal embate, verificando sua possível transposição entre individual e coletivo e trazendo como uma das questões principais o seguinte: Aluísio Azevedo resolve a questão entre a razão e o desejo em ambas dimensões trabalhadas em O homem ou a deixa entreaberta de alguma maneira, tal qual o conflito coletivo em O Cortiço?

A princípio, verifica-se a existência do conflito de Magdá, que transparece na narrativa logo que a jovem descobre a impossibilidade do relacionamento com Fernando (filho ilegítimo de Pinto Marques, pai também da menina) a partir de trechos como “a paz era completa, pelo menos na aparência” (Azevedo, 1960, p. 24), que podem evidenciar o desacordo que perseguirá Magdá até que o delírio supere a realidade. Nesse momento inicial, nota-se como a razão se sobrepõe ainda a qualquer desejo que a jovem poderia sentir por seu meio irmão, demonstrando uma imagem pacífica frente ao pai e a Fernando. Ainda assim, evidencia-se que suas emoções já ganham “mais espaço do que deveriam” a partir, especialmente, dos comentários de Dr. Lobão, ao notar “uma perigosa exaltação nervosa que, uma vez agravada, por interessar-lhe [Magdá] os órgãos encefálicos e degenerar em histeria…”(Azevedo, 1960, p. 28). Vale ressaltar que esse último personagem, que encarna o cientificismo do início ao fim do livro, ganha ares de sátira em relação a esse movimento a partir das descrições do homem “rude” e “grosseirão” que busca o controle da situação, mas não o atinge.

Ademais, os termos técnicos e científicos que surgem ao longo da obra são, em sua maioria, incorporados ao discurso desse personagem “homem da ciência”. Compõe-se, então, essa caricatura médica, que também serve de indicativo para a visão crítica de Aluísio Azevedo em relação à ciência como um deus. Além disso, a configuração do Dr. Lobão como alegoria cientificista dá-se em processo semelhante ao ocorrido com outros personagens clássicos de grandes autores brasileiros, como Simão Bacamarte em O Alienista (1882), de Machado de Assis, que encarna uma razão tirânica, a qual condena aqueles que passam pela Casa Verde, inclusive o próprio médico (enquanto se nota como a razão tem grande responsabilidade pelo triste fim de Magdá).

Dado, assim, início ao conflito entre razão e desejo, os dias de vida sã da jovem passam a estar contados, assumindo como certa a aquisição e o desenvolvimento da histeria a partir dos fatos narrados, pois a menina (com quinze anos no princípio da obra) acaba sempre contornando as recomendações do médico, vivendo em uma realidade indesejável. A jovem, apesar de corresponder-se fraternalmente com o irmão e frequentar sem (aparente) resistência os bailes que o pai realiza para que encontre um pretendente, não encontra saída para a moléstia que começa a assombrá-la. Magdá envolve-se rasamente com pretendentes que depois recusará e, por fim, transforma-se também fisicamente com a partida de Fernando à Europa, mesmo que tal mudança seja notada apenas tempo depois, como relatado pelo narrador:

Só dois meses depois foi que notaram que estava tanto mais magra e um tanto mais pálida; e assim também que o seu riso ia perdendo todos os dias certa frescura sanguínea, que dantes lhe alegrava o rosto, e tomando aos poucos uma fria expressão de inexplicável cansaço (Azevedo, 1960, p. 29).

A partir de então, a razão passa a permitir lacunas de espaço muito maiores para a emoção, que, antes de ser conduzida especificamente ao desejo, desempenhará um papel essencial na narração. Magdá sempre teve seus sentimentos sob vigia diante do histórico familiar: seu pai, quando levado pelas emoções, teve um filho fora do casamento, o que não poderia repetir-se de jeito nenhum com a filha. Portanto, há um grande perigo oferecido por qualquer desvio emocional por parte da menina diante das opressões da sociedade burguesa. Caso executada a leitura a partir dessa perspectiva, configura-se uma grande ironia, pois pai e filha partem de um ponto em comum (o desejo sexual) e, no entanto, não há consequências diretas para Pinto Marques, que consuma uma relação extraconjugal, enquanto, para Magdá, a consequência de não realizar seu desejo é o cárcere em um hospício, além da vigília constante. Logo, antes do surgimento de Luís, personagem em que a jovem depositará sua pulsão sexual, Magdá já é assombrada por dois fantasmas: as ações inconsequentes do pai e Fernando, o irmão, que ainda vive.

Tendo estudado casos de histeria para desenvolver seu livro, Aluísio Azevedo relata a enfermidade da jovem de acordo com estágios, como se avançando em degraus para a perda quase completa da razão. A histeria, propriamente dita, rebentará com a morte de Fernando, mais especificamente, duas semanas após a notícia atingir a jovem. Com o acompanhamento do médico, enfim comprova-se que o que estremece a razão de Magdá é o desejo impossível de ser realizado, destacando que a jovem vive em um embate:

— Casamento é um modo de dizer, eu faço questão é do coito! — Ela precisa de homem! — Ora aí tem você! (…)
— Noutras circunstâncias, sua filha não sofreria tanto… nada disso teria até consequências perigosas; mas, impressionável como é, com a educação religiosa que teve. E com aquele caraterzinho orgulhoso e cheio de intransigências, se não casar quanto antes, irá padecer muito; irá viver em luta aberta consigo mesma!
— Em luta? Como assim, doutor?
— Ora! A luta da matéria que impõe e da vontade que resiste; a luta que se trava sempre que o corpo reclama com direito a satisfação de qualquer necessidade, e a razão opõe-se a isso, porque não quer ir de encontro a certos preceitos sociais. Estupidez humana! Imagine que você tem uma fome de três dias e que, para comer, só dispões de um meio — roubar! Que faria neste caso? (Azevedo, 1960, p. 38).

Entre o primeiro ataque nervoso, ao qual se segue o trecho citado, e o surgimento de novos sintomas da histeria, passa-se meio ano em que a personagem segue revoltando o Dr. Lobão, pois recusa o tratamento que ele recomenda. Em consequência, o médico acaba por sugerir que a personagem viaje pela Europa. Ironicamente, é cumprindo o recomendado que Magdá adquire aquilo que contribuirá ainda mais para o agravamento de sua condição: o apego demasiado à religião. É curioso observar a abordagem que o autor faz dessa enquanto conflitante com o desejo, já que é uma ferramenta de supressão dele, ao mesmo tempo em que não se pode igualá-la à razão. Entretanto, esse embate diminui a partir do momento em que o apoio que Magdá encontra na religião é permeado pela sexualidade, sendo que, até o final da obra, o Cristianismo aparecerá envolvido com os desejos e delírios da jovem de diferentes maneiras. Assim, o que inicialmente se opõe ao desejo, passa, depois, a integrá-lo, para novo desespero do médico da família. Caso também irônico é o sentimento de Magdá frente ao status que imagina alcançar, pois a devoção que adquire não segue os preceitos repressores burgueses:

Os seus atos mais simples e os seus mais ligeiros pensamentos ressentiam-se agora de um grande exagero. Nunca se mostrara tão intolerante nos princípios de dignidade e na pureza dos costumes; nunca fora tão aristocrata, tão zeladora da sua posição na sociedade, nem tão convicta dos seus merecimentos e dos seus créditos. Uma conduta irrepreensível! (Azevedo, 1960, p. 52).

Com a piora do estado da filha, Pinto Marques também passa a opor-se às excursões que a jovem e sua tia, grande apoiadora, fazem à igreja. Desesperado para livrá-la daquela condição, o pai resolve seguir mais uma vez os conselhos do Dr. Lobão, mudando-se para a outra casa da família, a qual se localiza próxima ao campo e afastada da metrópole. Nesse ambiente, a personagem transformar-se-á também em observadora, semelhante ao narrador naturalista. De sua janela, Magdá fica

(…) a ver o serviço da pedreira que ficava defronte, olhando muito entretida para os cavouqueiros, e ouvindo a toada que eles gemem quando estão minando a rocha para lhe tocar fogo. Parecia gostar de ver os trabalhadores; como se lhe aprazia aquela rica exibição de músculos tesos que saltavam com o peso do macete e do furão de ferro, e daqueles corpos nus e suados, que reluziam ao sol como se fossem de bronze polido (Azevedo, 1960, p. 68).

Quando ela resolve, enfim, acompanhar o pai para fora da casa, depara-se com Luiz, um cavouqueiro que corresponde aos seus desejos, mas não à classe social, impedindo que possa existir qualquer relacionamento entre ambos (para além do fato de que o moço já está comprometido com outra personagem, a bela Rosinha). No entanto, a razão, mesmo que nesse ponto do livro ainda seja dominante, cede cada vez mais espaço ao desejo, que se manifestará no domínio onírico, transpondo-se futuramente para a realidade da personagem.

A partir daí, a própria Magdá menciona, em seus sonhos, a entrega não ao cavouqueiro que vive na realidade, mas à entidade que toma sua forma, apontando seu abandono às pulsões da carne. Inicialmente, nota-se que, mesmo que em sonho, a personagem tenta livrar-se dessa culpa, dizendo que sua entrega a Luiz foi culpa de sua natureza, da carne, dos sentidos, estratégia que não surte o efeito desejado. A luta entre os desejos de Magdá e sua consciência segue presente através das revoltas que a personagem sente pelo próprio querer, manifestando-se em um esquema narrativo que segue a ordem sonho contra realidade, pulsão contra razão, como exemplifica-se em:

E estreitam-se mais. E unem-se. E confundem no ar os membros enleados e trêmulos. O cavouqueiro soluça, arqueja; ele já não tem uma só parte de si em que não o sinta. E, de improviso, um violento sopro de vida a invade toda, esquentando-a por dentro, penetrando-lhe as vísceras, soprando-lhe nas veias um calor estranho, alheio, que a ressuscita e faz saltarem-lhe dos olhos lágrimas de gozo. (…)
Caiu logo em si: era a toada melancólica dos trabalhadores que minavam a pedreira. E ali deixou-se tombar de novo sobre os travesseiros e aí permaneceu, com os olhos muito quietos, enquanto duas lágrimas lhe serpeavam ao comprido das faces.
Oh! Sentia-se profundamente envergonhada do que sonhara a noite inteira (Azevedo, 1960, p. 84-89).

Logo, essa revolta com o sonhar e com o que se sonha mostra que ainda há razão, a qual Magdá deve se ater. Entretanto, com o avançar do tempo e da união da histeria com a neurose, originando a psicose, o elemento racional já não possui dominância no conflito com o desejo. Muitas vezes, a razão, na verdade, deixa o subjetivo da personagem e adquire vieses de repressão social, que causa “vergonha ao espírito” da jovem cercada por tantos pudores, sentimento esse que eclode em forma de aflição e raiva, como lê-se em: “Que desespero — ter de submeter-se ao jugo da sua carne! Que inferno — sentir-se todos os dias ao acordar humilhada por si mesma, indignada contra os seus próprios sentidos” (Azevedo, 1960, p. 118).

É no momento em que sonho e realidade passam a misturar-se que Magdá torna-se efetivamente delirante. O mundo onírico transforma-se definitivamente em delírio quando os perfumes da ilha do Segredo são transpostos para a realidade. É certo que o gosto de sangue que Magdá sente tanto dormindo quanto acordada antecede a percepção dos odores florais, mas supõe-se que tal impressão possa ser causada pelo remédio receitado pelo Dr. Lobão. Sendo assim, seria possível que a personagem sentisse gosto cúprico ao acordar e ao sonhar porque algo na realidade provoca-o, enquanto a mesma explicação não se mostra aplicável à questão dos perfumes florais, visto que nenhuma flor semelhante às da ilha do Segredo cerca Magdá. Cada vez mais elementos farão esse movimento de passagem do sonho ao delírio, sendo que o ápice da entrega da personagem ao mundo onírico e ao desejo ocorre quando Luiz também é transposto para a vida real de Magdá:

Mal soltou logo um rugido surdo, apontando para o crucifixo e balbuciando, cheia de terror: — Não! Já não sois vós quem aí está crucificado! Quem está aí agora é o outro! É ele! É o demônio!
E caiu do bruços no chão, com um grito. E logo em seguida, sem ânimo de erguer a cabeça, transida de medo, sentiu distintamente que o Cristo se agitava na parede, como forcejando para despregar-se da cruz, e que afinal descia, pisava no chão, encaminhava-se para ela e tocava-lhe de leve com a mão no ombro, aproximando a boca, para lhe falar ao ouvido. Magdá sentiu rescender o cheiro da murta. (…)
— Sim, sim, respondeu afinal Magdá, entregando-se a ele; leva-me! Eu te acompanho de novo para onde bem quiseres! Carrega-me, querido! Preciso ir beber do teu vinho, comer dos teus frutos, amor do teu amor e reviver com o teu sangue! Leva-me! Aqui me tens! Sou tua! (Azevedo, 1960, p. 150-151).

É aí que se atinge o ponto mais próximo da quebra definitiva da tênue linha que ainda separava sonho e realidade, com a transposição quase completa da ilha do Segredo para o mundo tangível, restando uma “razão leviana”, responsável pela restante “luta contra as degradantes lubricidades do sono” (Azevedo, 1960, p. 156), lubricidades que serão arrefecidas com o nascimento do filho, um dos poucos elementos que ainda faz com que Magdá perceba uma divisão entre delírio e vida real, visto que a personagem “chegava a tomar láudano para dormir mais depressa e por mais tempo; e adormecia sorrindo de contentamento e pedindo a Deus que lhe fizesse os sonhos bem longos, intermináveis;” (Azevedo, p. 172), o que demonstra a consciência de Magdá de que era necessário adentrar o mundo dos sonhos para estar junto de seu filho. Com a sequência das cenas, há a confirmação dessa “entrega ao delírio”. Para Quelhas:

Próximo ao fim do romance, o envenenamento dos noivos, antes da consumação do matrimônio, aponta o quanto a personagem Madalena colocava-se acima dos rituais religiosos e civis. Mais forte do que as crenças, mobiliza Madalena uma percepção de que o que importa, realmente, é o desejo (Quelhas, 2019, p. 299).

Sendo o desejo compreendido como aquilo que realmente importa para Magdá, tem-se a razão completamente sobrepujada pela presença do delírio no domínio individual. Por fim, na cena acima destacada pela pesquisadora, a personagem abraça a loucura, matando o Luiz da vida real e sua esposa, Rosinha, perdida no delírio de que o cavouqueiro a teria traído com a outra jovem. A partir daí, narra-se a contenção e a ida da filha do conselheiro até a Casa de Detenção, momento em que realidade e sonho adquirem caráter inverso, pois a personagem sente que vive o segundo, enquanto relembra do primeiro através de lapsos.

Todas essas características, como pensa Rouanet, constituem Magdá como algo além de um personagem títere, aproximando-a da típica heroína trágica do teatro grego. Para mais, todo o controle exercido sobre a vida da filha do conselheiro, considerando também sua condenação ao final do livro, retoma uma crítica às instituições de controle, o que, por sua vez, relembra a problematização da razão como onipotente na sociedade.

CONCLUSÃO

Portanto, crê-se que Aluísio Azevedo, em O homem, trabalha com duas dimensões para um mesmo objeto, ou seja, dá um propósito para a existência do conflito e sua reflexão “dentro da história”, correspondente ao conflito individual (espaço em que a educação de Magdá entra em confronto com seus desejos), e “fora da história”, correspondente à dimensão coletiva (em que se lê a crítica às imposições e contradições da sociedade brasileira). A partir da conclusão que se dá à narrativa, observa-se a resolução do conflito entre razão e desejo dentro da dimensão individual, pois nada mais impede Magdá de entregar-se a seu “marido” e viver delirante, dando a vitória ao desejo. Entretanto, tal não se aplica à dimensão coletiva, visto que a história da personagem não faz com que a sociedade burguesa abandone seus preceitos ou que se deixe de reprimir a jovem, já que ela é enclausurada, assim como não se pode dizer que Aluísio Azevedo apresenta alguma resolução para o conflito social na voz do narrador ou de uma de suas personagens. Logo, transparece uma estrutura de trabalho com conflitos semelhante à de O Cortiço, como observado por Edu Teruki Otsuka, em que o autor se propõe a resolver os embates individuais, mas não os coletivos, deixando de modo crítico questões a serem pensadas pela sociedade e demonstrando problematizações que permeiam o cotidiano social até a contemporaneidade, o que dá caráter de atemporalidade à obra, ressaltando-a como grande clássico da literatura.

[1] A presente pesquisa foi desenvolvida no Programa de Iniciação Científica Voluntária (ICVOL), sob orientação do Prof. Dr. João Guilherme Dayrell (endereço Lattes: http://lattes.cnpq.br/4004318261658033), ligada ao projeto de pesquisa “Cupim, animal metafísico, construção e corrosão na literatura brasileira a partir de João Cabral de Melo Neto”.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, A. O homem (1887). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1959.

OTSUKA, E. T. Conflito e interrupção: sobre um artifício narrativo em O Cortiço. Terceira Margem, Rio de Janeiro, Nº 21, p. 177-186, ago./dez. 2009.

QUELHAS, I. Palco nebuloso e obscuro: O homem, de Aluísio Azevedo. Revista Philologus, Rio de Janeiro, Ano 25, N° 73. CiFEFiL, p. 295-307, jan./abr. 2019.

ROUANET, S. P.. “A Construção da histeria feminina em Aluísio Azevedo”. In: JUNQUEIRA, I. (Coord.). Escolas literárias no Brasil. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2004, p. 425-445.

SOUZA, J. S. Relações de poder no romance O homem, de Aluísio Azevedo. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 24 de jul. 2023.