Le Lézard, de Alphonse de Lamartine

Gabriel Esteves

Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine nasceu em 1790, nas redondezas de Mâcon, pequena comuna francesa onde sua família foi instalar-se após a revolução de 1789. Descendente de uma nobre estirpe provinciana e tendo passado toda a infância entre camponeses humildes, Lamartine soube atribuir valor à sua origem campestre que, segundo ele, preveniu-o contra as intemperanças citadinas: “jamais homem algum foi criado mais perto da natureza e sugou mais jovem o amor das coisas rústicas”[i]. Foi essa mesma criação num posto intermediário da sociedade, entre a nobreza do nome e a modéstia dos simples que, de acordo com René Doumic, aguçara a sua sensibilidade e fê-lo poeta melancólico, amante de ruínas e velharias. “Talvez nenhum trabalho dependa tanto da existência do autor quanto o seu”[ii], dirá Marius-François Guyard mais tarde, e embora seja duvidosa uma proposição dessa envergadura, verdade é que os poemas de Lamartine não foram produzidos em qualquer lugar e muitos deles fornecem localização espaço-temporal, informação a que os líricos não são costumeiramente afeitos – Lamartine chegou mesmo a escrever notas de rodapé explicando quando e onde compusera alguns poemas como, por exemplo, Le golfe de Baïa, escrito em 1813, num barco que ia para Nápoles.

A primeira viagem à Itália foi em 1811. Chegando em Roma, maravilhado pela beleza noturna da cidade-ruína, relata ter visto por toda parte “a imagem apavorante e sublime de um esplendor que não é mais”[iii]. Esse sentimento de impotência e encanto tão particular aos seus versos, vemo-lo também nos momentos tristes de um Antero de Quental, e dir-se-ia ser possível intercambiar os versos de um e outro:

C’est l’heure où la Mélancolie
S’assied pensive et recueillie
Aux bords silencieux des mers ;
Et, méditant sur les ruines,
Contemple au penchant des collines
Ce palais, ces temples déserts.[iv]

Tristíssimas ruínas! Entristece
E causa dó olhá-las – a vontade
Amolece nas águas da piedade,
E, em meio do lutar, treme e falece.

Ou ainda:

Também sei o que é dor – e como as lágrimas
Saem, arando o peito;
E o que é inclinar-se um triste, às tardes,
Sobre gastas ruínas![v]

O tema dos versos traduzidos abaixo não deve parecer estranho ao leitor familiarizado com os cantos “ruinosos” de Quental.

Le Lézard e outros quinze poemas só foram publicados em 1849, como acréscimo às primeiras (1820) e segundas (1823) Méditations Poétiques – há quem chame esses 16 poemas de Troisièmes Méditations poétiques –, mas embora distem tanto no tempo, há poemas da década de 40 que são estreitamente ligados ao que já anunciava o jovem Alphonse na primeira viagem à Itália. Sirvam estes últimos versos de exemplo:

Ainsi tout change, ainsi tout passe ;
Ainsi nous-mêmes nous passons,
Hélas ! sans laisser plus de trace
Que cette barque où nous glissons
Sur cette mer où tout s’efface.[vi]

Referência

LAMARTINE, Alphonse de. Œuvres Complètes. Tome premier, Méditations Poétiques. Paris : Chez l’auteur, 1860.

 


 

O Lagarto
Alphonse de Lamartine
Tradução de Gabriel Esteves

(Sobre as ruínas de Roma)

Um dia, só, ao Coliseu,
Ruína do orgulho romão,
Na relva que o sangue embebeu,
Me sentei com Tácito à mão.

Lia sobre o crime romano,
E como o império leiloaram,
E como em prol dum só tirano,
Todo universo ao chão baixaram.

Eu via o povo nas bancadas
Saudando ufanos vencedores,
Via as pupilas empapadas
No sangue dos gladiadores.

Na muralha que lhe incorpora,
A lento as letras recompunha
Do nome Augusto a quem outrora
O monumento se dispunha.

Decifrei a prima algravia,
Mas o resto não me deixou
Um lagarto que adormecia
Onde o “César” nome brilhou.

Só, herdara as sete colinas,
Só, habitara este deserto,
Sucedera nestas ruínas
A um seco povo, antes referto.

Saído às fendas da muralha,
Vai, combalido pelo frio,
Acalorar a verde malha
Ao bronze morno e luzidio.

Cônsul, César, mestre do mundo,
Augusto, a deuses todo afim,
A sombra deste réptil imundo
Cobrira tuas glórias a mim!

Tem ironia a natureza.
Derrubei o livro, tremúleo.
Ó Tácito, nem tua rijeza
Insulta tanto o humano orgulho!

 


 

Le Lézard
Alphonse de Lamartine

(Sur les ruines de Rome)

Un jour, seul dans le Colisée,
Ruine de l’orgueil romain,
Sur l’herbe de sang arrosée
Je m’assis, Tacite à la main.

Je lisais les crimes de Rome,
Et l’empire à l’encan vendu,
Et, pour élever un seul homme,
L’univers si bas descendu.

Je voyais la plèbe idolâtre,
Saluant les triomphateurs,
Baigner ses yeux sur le théâtre
Dans le sang des gladiateurs.

Sur la muraille qui l’incruste,
Je recomposais lentement
Les lettres du nom de l’Auguste
Qui dédia le monument.

J’en épelais le premier signe :
Mais, déconcertant mes regards,
Un lézard dormait sur la ligne
Où brillait le nom des Césars.

Seul héritier des sept collines,
Seul habitant de ces débris,
Il remplaçait sous ces ruines
Le grand flot des peuples taris.

Sorti des fentes des murailles,
Il venait, de froid engourdi,
Réchauffer ses vertes écailles
Au contact du bronze attiédi.

Consul, César, maître du monde,
Pontife, Auguste, égal aux dieux,
L’ombre de ce reptile immonde
Éclipsait ta gloire à mes yeux !

La nature a son ironie :
Le livre échappa de ma main.
Ô Tacite, tout ton génie
Raille moins fort l’orgueil humain !

 

i DOUMIC, René. Lamartine. Paris: Librairie Hachette, 1912, p. 13.

ii GUYARD, Marius-François. Préface. In: LAMARTINE, Alphonse de. Œuvres Poétiques Complètes. Paris : Éditions Gallimard, 1963.

iii DOUMIC, René. Op. Cit., p. 30.

iv LAMARTINE, Alphonse de. Op. Cit.

v QUENTAL, Antero de. Sonetos completos e poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 19-.

vi LAMARTINE, Alphonse de. Op. Cit.