Neste ano, a Mafuá completou 30 edições, em 15 anos de existência. Tendo em vista esse contexto, decidimos reaver um pouco de sua história, através do diálogo com seus fundadores e antigos editores.
Saulo Cunha de Serpa Brandão é professor titular da Universidade Federal do Piauí e foi um dos fundadores da revista Mafuá em 2003. Sua primeira graduação foi em Medicina Veterinária pela UFRPe (1980), posteriormente graduou em Letras pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (1990), mestrado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (1995) e doutorado em Letras na mesma universidade (2000), ambos os cursos na área de Teoria da Literatura. Foi pesquisador visitante na Illinois State University, Bloomington/Normal, a convite do English Department da instituição (1998). Cumpriu missão de pós-doutoramento na UFSC em 2003. Atualmente trabalha com Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas, atuando principalmente nos seguintes períodos: Literatura norte-americana pós-1920, literatura inglesa elisabetana e com interesse específico nos seguintes temas: Pynchon e Shakespeare; outros interesses: literatura brasileira de viés fantástico, literatura latino-americana de viés real-maravilhoso, ferramentas telemáticas, estilometria, lexicometria, pós-modernidade, representação e mimetismo. Tem as seguintes experiências administrativas: Chefe de Departamento (2001-2002); Coordenador de Pós-Graduação (2004); Coordenador Geral de Pesquisa da UFPI (2005); Presidente da COPEVE (2007-2008); Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação (11/2008 – 1/2013). Em 9/2013 iniciou Estágio Sênior na University of Washington – Seattle e concluiu em 2/2015, com financiamento CAPES.
Cristiano de Sales é professor de Literatura na Universidade Tecnológica Federal do Paraná – Curitiba. Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (com Estágio Doutoral na Université Paris 3 Sorbonne-Nouvelle). Mestre em Literatura e licenciado em Letras Português, ambos pela Universidade Federal de Santa Catarina. Faz pesquisas em poesia e narrativa brasileira do século XX; teorias de literaturas digitais; estética pelo viés fenomenológico.
Ana Lúcia Pessotto dos Santos é em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi professora substituta na Faculdade de Letras da UFRJ (2016-2017). Doutora (2015) e Mestre (2011) em Linguística – Teoria e Análise Linguística – pela Universidade Federal de Santa Catarina. Graduada em Jornalismo pela mesma universidade. Realizou doutorado-sanduíche no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) no ano acadêmico 2012-2013, com financiamento do CNPq. Dedica-se à pesquisa na área de Linguística – Semântica formal, Linguística experimental, com foco na expressão da modalidade no Português Brasileiro.
Otávio Guimarães Tavares é professor no Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará. Doutor (2015) e Mestre (2010) em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharel em Letras – Língua Inglesa e Literaturas (2008) pela Universidade Federal de Santa Catarina. É líder do grupo de pesquisa NELAA – Núcleo de Estudos em Literaturas e Artes Anglófonas. É membro do Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística desde 2005. Atua nas áreas de Teoria Literária, Literatura de Língua Inglesa, Estética e Filosofia da arte, Poesia, Literatura Digital e Literaturas Experimentais.
Tiago Ribeiro é doutor em Literaturas pela UFSC, com tese sobre a obra da escritora moçambicana Paulina Chiziane, e professor efetivo de Português e Literaturas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, câmpus Florianópolis.
Eduarda da Silva é Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina.
Mafuá – Quando e como surgiu a ideia de criação da revista?
Saulo – Em 2003, eu estava cumprindo minha primeira missão de pós-doutoramento no NUPILL (Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a supervisão do Alckmar. Meu objetivo era migrar da crítica literária tradicional para uma que envolvesse a crítica com a utilização de softwares. No começo do segundo semestre daquele ano, os professores universitários deflagraram uma greve geral que durou até o fim de novembro. A suspensão das aulas fez diminuir a carga horária de trabalho exigida dos aluno e professores o que fermentou um ambiente muito propício para debates acadêmicos, e em geral, entre os membros do NUPIL. Foi num dia de muita conversa que nos levou à conclusão de que os alunos de graduação eram muito incentivados a se moldar à lógica produtivista estabelecida, mas existia quase total inexistência de veículos de qualidade que publicassem os melhores textos produzidos pelos alunos. Então, já que estávamos fadados a esperar que as negociações entre os sindicalistas e o MEC para que se chegasse ao fim do movimento paredista, decidimos que seria uma boa utilização de nosso tempo a criação de uma revista para atender o nicho da graduação. O grupo era formado por professores, alunos de graduação e de pós-graduação. Como o NUPILL sempre foi um local muito democrático e aberto. Embora a grande maioria dos participantes do grupo fundador fossem institucionalmente vinculados ao NUPILL, havia alguns entre nós que estavam vinculados aos debates, mas sem vinculação oficial com o núcleo.
Cristiano – Em 2003, numa demorada greve das universidades federais, Saulo Brandão, professor da UFPI que fazia um pós-doutoramento à época em Florianópolis, eu, à época estudante de letras, o Enrique Nuesch, também graduando em letras (hoje professor na UNESPAR), e mais o Victor da Rosa, calouro em letras (hoje professor da UFOP) – todos com algum plano de seguir trajetória acadêmica em literatura –, conversávamos, em meio às atividades do NUPILL, sobre a necessidade de um espaço para publicações de artigos escritos exclusivamente por alunos de graduação. Sabíamos que nossas chances de publicar em revistas reconhecidas na área de Literatura eram mínimas, dado que os periódicos estavam vinculados geralmente a programas de pós-graduação e, consequentemente, focados em bons conceitos concedidos pela Capes, entre outras exigências que nos desanimavam. Saulo, com sobra de experiência frente à nossa desorientação, nos chamou a atenção para o fato de que tínhamos a estrutura para uma revista digital às mãos. Corremos então atrás de algumas burocracias: domínio para um site, solicitação ao IBICT, formação de uma comissão avaliadora heterogênea, entre outras demandas, e em algumas semanas estávamos lapidando, entre erros e acertos, uma política editorial e fazendo eleição de nome para a revista. Ganhou Mafuá, nome sugerido pelo Saulo, que intertextualizava de alguma forma o livro de Manuel Bandeira, Mafuá do Malungo.
Mafuá – E como foi sua recepção em um primeiro momento? Houve algum preconceito com o formato digital? E quais outras dificuldades você e sua equipe enfrentaram nos primeiros anos de publicação da revista?
Saulo – Pelo que me lembro, eu estava no íntimo do grupo que gestou a ideia da revista e de ela ser em meio digital e a levou para o grupo maior. Portanto, não me recordo de ter reagido negativamente à proposta da revista digital, porque ela foi concebida nesse suporte. E não podia haver reação negativa daquele grupo porque estávamos quase todos vinculados ao NUPILL, que é um grupo que estuda e pesquisa a interseção entre literatura e informática. Por outro lado, o fato de a revista ser digital eximia a UFSC de qualquer dispêndio maior de capital financeiro, isto que seria um possível impedimento para novas iniciativas naquele momento.
Cristiano – Não sei avaliar a recepção da revista. Talvez o fato de começarmos a receber a partir da terceira edição uma quantidade significativa de textos vindos de outras universidades indicasse uma boa aceitação, ou apenas a confirmação do que intuímos no início do projeto, a falta de espaços reservados a estudantes de graduação. Se houve preconceito?, talvez mais da nossa própria parte, dada ainda alguma incerteza sobre a credibilidade atribuída a publicações em meio digital. Mas creio que isso tenha durado pouco, pois coincidiu com a consolidação de várias revistas também em formato digital. Era uma fase de migração dos periódicos. Quantos às dificuldades da equipe, creio que, mesmo com o passar dos anos, é sempre cansativo administrar os envios dos textos aos pareceristas e cobrar as avaliações, em caso de necessidade. Isso deve ocorrer em quase todos os periódicos.
Mafuá – O nome Mafuá é bastante enigmático e interessante. Qual significado vocês atribuíam à palavra e como esse se relacionava ao projeto da revista?
Saulo – Isso foi um processo interessante. Nós começamos com um concurso para a escolha do nome da revista. Todos os partícipes daquele grupo da criação podiam fazer uma proposta e assim aconteceu. Fizemos uma votação sigilosa e no final tivemos um empate entre dois nomes. Eles eram: Miguilim e Mafuá. O primeiro foi a proposta de Alckmar e Mafuá foi a minha proposta. O natural era que fossemos para um segundo turno da votação e, assim, minha proposta estava fadada ao fracasso. Afinal, Ackmar era o líder daquele grupo e muito querido por todos nós. Mas eu queria deixar uma marca de Pernambuco e do Piauí naquela minha passagem pelo NUPILL. Sim, porque meu livro favorito de poesia é o Mafuá do Malungo, do pernambucano, conterrâneo meu, Manuel Bandeira e do Piauí, a remessa a um mercado público famoso de Teresina que se chama Mercado do Mafuá.
Para evitar aquele confronto e viabilizar minha peoposta, eu lembrei que já havia uma revista chamada Miguilim. Decidimos fazer uma pesquisa e descobrimos que, de fato, existia um periódico com aquele nome na Espanha ou Portugal, não lembro. Daí sobrou Mafuá, para minha alegria.
Cristiano – Bom, já mencionei acima como o nome apareceu. Mas vale mencionar talvez o que víamos de relação entre o nome e a proposta. Queríamos que a revista fosse de alguma forma uma festa de temas, argumentos, imaginações e a viabilidade de publicização dos esforços de leitura e escrita de estudantes em situações parecidas com a nossa. Como o livro de Manuel Bandeira sugeria esse tom festivo, de confraternização também intelectual, acabamos comprando a ideia do Saulo.
Mafuá – É fato que a Mafuá, em um espaço que tem a produção como uma de suas métricas principais, possibilita aos alunos de graduação a inserção neste sistema. Por outro lado, textos acadêmicos de graduandos são, em grande medida, desconsiderados como produções intelectuais relevantes. Como lidar com isso?
Saulo – A Mafuá vem cumprindo seu objetivo principal que é ser um espaço para publicação de artigos de qualidade produzidos por alunos da graduação. Outro feito que a revista vem alcançando é exatamente o de desmistificar a crença de que a produção bibliográfica de alunos da graduação não tem valor. O navileitor encontrará artigos na Mafuá que são preciosidades. Isto acontece porque o jovem iniciante de pesquisador é muito mais corajoso do que os pesquisadores já empoderados. É claro que existem artigos que não são tão inovadores, mas todos tem valor e rigor científico, uma vez que as publicações passam pelo crivo do Conselho Editorial da Mafuá, de altíssimo nível, e o artigo só é aceito para submissão se vier com o aval do professor que orientou a pesquisa do aluno. Ou seja, os artigos publicados passam por uma dupla avaliação; uma local e outra da equipe da Mafuá.
Não acredito que a Mafuá fará um movimento inteligente se abrir a possibilidade de graduados ou pós-graduados publicarem na revista. Para esse tipo de publicação existem dezenas de revistas nacionais e centenas se contarmos com as internacionais.
Cristiano – Não concordo com a irrelevância das produções intelectuais de graduandos. Primeiro, trata-se de uma fase em que os estudantes revelam paixões, ambições e criatividades que se manifestam com alguma liberdade que, quando trabalhadas para entrar em espaços como o dessa revista, começam a ser equilibradas para uma dicção mais acadêmica. E sabemos que sem isso não há pós-graduação. Segundo, e pensando mais pragmaticamente, com conceito já na faixa de B2 na plataforma Sucupira, estudantes que investem na trajetória acadêmica, início de um mestrado, por exemplo, têm pontuado de maneira significativa ao publicar na Mafuá.
Ana – Acho um erro desconsiderar produção de graduandos como irrelevantes, sempre achei. Toda a produção acadêmica bem embasada é relevante, até mesmo os trabalhos que você faz como conclusão de disciplina podem gerar produção relevante. É claro que não precisamos esperar de um graduando um trabalho com a profundidade de um trabalho de pós-graduação, mas achar que um graduando não seja capaz de produzir trabalho relevante é um grande equívoco. Sequer aceitar a submissão de trabalhos de graduandos é valorizar mais um título do que o mérito do trabalho, e pra mim isso tá errado. A avaliação por pares é cega, certo? Se o trabalho está bom, que diferença faz se quem escreveu tá na graduação ou na pós? Veja, isso não é desmerecer a titulação. Eu mesma fiz todo o processo, comecei na IC e terminei o pós-doc ano passado. É um caminho árduo que tem que ser respeitado. Ao longo do processo a gente soma conhecimento e complexifica o raciocínio, aprofunda e, óbvio, se espera que a produção seja mais complexa. O que eu quero dizer quando digo que acho errado selecionar pelo título é porque acho errado subestimar a capacidade intelectual do graduando.
Não sei porquê isso acontece. Talvez seja porque a nossa educação ainda é muito paternalista, inclusive na universidade. Não se oferece condições para que os estudantes tenham autonomia, em muita revista quem ainda não é doutor tem que colocar o nome do orientador pra poder publicar (o que favorece quem se aproveita disso pra acumular publicações, já que o Lattes só conta quantidade). Também acho que ainda há um abismo entre graduação e pós, no que diz respeito à cultura de produção de conhecimento e pesquisa. O aluno termina a graduação e chega na pós sem saber direito como escrever um resumo, como estruturar um projeto, ou como elaborar uma hipótese. Essas questões técnicas podiam ser fixadas já na graduação, por que não? Tem que criar esses espaços pro cara publicar desde cedo, lidar com espera, com parecer, com crítica negativa, e entender na prática o que é ter responsabilidade sobre o próprio trabalho. O graduando é capaz, precisa ter seu potencial estimulado. Por isso a Mafuá é importante. O Cadernos de Squibs, da UnB, também abre esse espaço, pra área de Linguística. Tem que ter mais dessas.
Otávio – Acho que ainda há muito descaso com a produção de graduandos. É a ideia básica que se você não possui o título, sua produção não será boa. Óbvio que existe uma questão de experiência que, em geral, quanto mais tempo você estudar e escrever, mais bem acabada será a sua escrita. Entretanto, isso não implica que as suas hipóteses de leitura ficarão melhores ou suas análises mais apuradas e engenhosas. Ainda é muito forte no Brasil a ideia simplista e redutora de que a erudição é a chave única e central da boa crítica literária. Colocando de modo “computacional” (para expor o absurdo), seria dizer que quanto mais “dados” você acumular, melhor seria sua crítica. A ideia tem raízes mais antigas, mas ela precisa ser revista. Um aluno de graduação pode ter hipóteses tão inovadoras quanto o mais velho professor. O que muda é a formulação destas ideias, a construção do argumento, a possibilidade de observar o macro, e outras características que vem da longa incursão em um campo acadêmico. Lidar com isso implica lidar com esse louvor à erudição brasileiro, notar que erudição não é condição sine qua non para uma crítica bem construída. Eu acho que o papel inicial e de suma importância, a que a Mafuá se dispõe (e é pioneira), é colocar a produção crítica de alunos de graduação para circular em âmbito acadêmico. Essa seleção se dá por método rigoroso de peer-review como em todo periódico científico. A Mafuá atende a padrões altíssimos de exigência e, atualmente, está avaliada com nota B2 no sistema de avaliação QUALIS da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), e isso não é qualquer coisa (basta olhar os pré-requisitos da CAPES para atingir essa nota e observar o padrão de notas dos periódicos). Portanto, conseguir publicar na Mafuá é um sinal de qualidade daquela produção crítica.
Mafuá – A Mafuá busca, através de seu formato, desde seu layout até seções como Criações, resistir à uniformização a qual tendem as revistas científicas atualmente. Você acha que esse formato (ainda) favorece a circulação da revista entre os diferentes leitores da comunidade acadêmica?
Saulo – O formato da revista me parece adequado. Vejam que existem sessões para criação, metáfrases, ensaios, entrevistas, obras raras e resenhas, ou seja, produções que privilegiam vários campos de interesse e diversas clientelas. Mas nada impede que ela, a Mafuá, continue a se reinventar com o passar dos tempos.
Venho pensando há algum tempo que existe um espaço que não foi ainda explorado, que eu saiba, por revistas nacionais e poderia ser uma inovação a ser implantada: uma sessão para artigos curtos, geralmente a descrição de uma descoberta. Um exemplo desse tipo de produção é o ANQ: A quartely Journal of short articles, que assim descreve o escopo dos artigos publicados na revista: “Contributors unravel obscure allusions, explain sources and analogues, and supply variant manuscript readings.”.
Cristiano – Como disse acima, não me sinto à vontade para avaliar a receptividade da revista. Mas gosto e apoio muito as escolhas dos editores que ao longo dos anos optaram pela preservação de uma identidade e versatilidade nas edições da Mafuá. Pois, não podemos nos esquecer de que não é por estar num âmbito acadêmico que o debate acerca da literatura não deva estar também atravessado de uma apresentação própria e bonita. Aliás, teríamos de esperar o contrário, não? Estudar e debater sobre literatura em espaços acadêmicos é, em grande medida, não deixar o fenômeno literário ser reduzido à lógica utilitarista que muito cercearia o próprio potencial da literatura. As plataformas de editoração eletrônica agilizam uma parte do processo de publicações de artigos, isso não se discute. Mas não jogar com as regras todas do jogo produtivista (às vezes no sentido ruim) acadêmico pode caracterizar uma diferença nessa revista. Isso certamente particulariza essa publicação que, muito provavelmente, agrada quem a busca como espaço para comunicar seus estudos.
Ana – Eu acho a plataforma de Periódicos caretérrima. A cara é nada atrativa e muito ruim de ler. Nisso a Mafuá, com certeza, dá um banho. No entanto, pra quem tá habituado a circular nesses periódicos, acho importante ter uma uniformização, pois fica mais fácil de navegar. Já é difícil lidar com as políticas individuais de cada revista, que variam bastante. Então, é importante que, em todas as revistas, as seções estejam mais ou menos no mesmo lugar, o formulário de submissão seja o mesmo, a página de acompanhamento tem o mesmo formato, e por aí vai. Por questões operacionais, a padronização é boa. Mas, lógico, tudo depende do objetivo do periódico. Os que eu conheço não tem o objetivo de serem “cool” ou visualmente atrativos, seu objetivo é ser uma plataforma para a publicação de trabalhos científicos de uma área específica que dificilmente serão acessados por quem não é da área, ou não tem um interesse específico. Pra isso, funcionam bem. Agora, se o objetivo é, além de publicar, ampliar o público leitor, ou atrair leitores, um visu mais legal é pertinente, lógico. Ainda mais, a literatura está alinhada às artes, por isso é importante que uma revista assim tenha um espaço criativo.
Otávio – Lembro quando, depois de algumas reuniões com as coordenadoras do SEER na UFSC, decidimos não adotar o formato SEER. Foi uma coisa meio aposta no escuro. Diziam que era possível que a nota da Mafuá na avaliação do QUALIS caísse. Decidimos apostar e continuar com o que tínhamos criado. Estava claro na época que a Mafuá não existiria como Mafuá em um formato seco como o SEER, e nem poderia ela ser reduzida apenas a artigos acadêmicos. A Mafuá era muito mais que tudo isso. Acho que o formato dela é essencial para ela continuar a ser lida e circular. É também, de certa forma, um ato de resistência a uma padronização e “linha de montagem” de artigos que tem incomodado a tantos. Penso que esse formato mostra plenamente que é possível unir pesquisa rigorosa e publicação de traduções, obras raras, dentre tantas outras coisas que compõem a pluralidade do ambiente acadêmico.
Mafuá – Considerando o retrospecto da Mafuá, o que você acha que poderia ser retomado pela revista? E, agora, pensando no futuro da publicação, qual direção ela deveria assumir? Você sugeriria alguma pauta específica para ser desenvolvida nas próximas edições?
Saulo – A revista está completando quinze anos e acumula uma fortuna em críticas, não sou a melhor pessoa para tratar do assunto, mas me parece que é chegada a hora de indexar os artigos por tags para facilitar a busca mais específica no mundo de informação que a revista agasalha. No mesmo sentido, poderia ser criado um filtro pelas subáreas de conhecimento das agências de fomento. Desta forma, um pesquisador poderia selecionar todos os artigos que tratem de, por exemplo, Teoria da Literatura ou Literatura Estrangeira Moderna etc. Acredito que seriam ferramentas importantes. Este filtro já existe para revistas que estão disponíveis no sistema de periódicos das universidades, mas não é o caso da Mafuá.
Cristiano – A revista tem ido muito bem. Orgulha a quem passou por ela. Fico contente em ainda contribuir como parecerista. Foram até aqui diferentes gerações de editores, e isso foi uma marcar sugerida à revista pelo Alckmar Santos (coordenador no NuPILL). Ele sempre nos atentou para o fato de que a revista deveria passar de mãos para que mais estudantes aprendessem a fazer esse tipo de trabalho importante para a formação de um acadêmico e que por consequência disso teríamos também na revista a criatividade e colaboração de diferentes gerações de estudantes. Sobre o futuro da revista, vejo que a Mafuá vem há tempos investindo no gênero ensaio. Isso é imprescindível para a reflexão acerca da literatura em âmbito acadêmico. É cada vez mais urgente a abertura de espaços para quem comunica seus estudos literários por meio de percursos interpretativos que investem nos próprios métodos e na própria criatividade.
Por fim, baita satisfação ter feito (e ainda fazer) parte dessa revista que tanto me ensinou e tanto espaço abriu a estudantes de graduação que precisam e desejam comunicar seus estudos de literatura.
Ana – Acho que no momento histórico em que estamos vivendo é importantíssimo que se produza e divulgue análises de obras literárias com conteúdo histórico e político, ou cuja história se desenvolva em um cenário ou período de conflito. A literatura está cheia disso, é uma fonte poderosa de registro histórico, lugar fértil para o estímulo do pensamento analítico, fonte riquíssima de informação, um instrumento empoderador. Não é à toa que todo o regime autoritário manda queimar livro e cercear o desenvolvimento intelectual, porque não quer ninguém questionando. O direito à informação é sempre um dos primeiros que nos tiram, porque o conhecimento liberta. Publiquem trabalhos que analisem obras com esses conteúdos, quem sabe até em um número temático. Além disso, abram submissão também para a área de Linguística, como Análise dos Discurso, por exemplo, pra estimular a análise crítica de como alguém expressa o seu posicionamento perante o mundo por meio da maneira como usa a linguagem. O raciocínio analítico sobre a linguagem e sobre a história precisa ser incorporado pra que a gente não seja enganado por mentiras úteis e não repita erros históricos.
Otávio – Hum, essa é difícil. Todas as mudanças que imaginava para a Mafuá efetivamente já foram implementadas quando era editor e o povo novo que veio a seguir tem feito um trabalho espetacular com tudo. Não sei se há algo a ser “retomado”. A Mafuá sempre muda e é bom que seja assim. Ela é a cara de seus editores que – pela lógica de ser um lugar de formação acadêmica extra-sala de aula – estão em formação. Nesse sentido, sempre entendi a Mafuá como um laboratório vivo e ativo para nós que éramos os editores e para aqueles que publicavam os seus textos. Eu acho que isso a Mafuá deve sempre manter, esse ar de mudança e irreverência, aliado a um rigor editorial que ela sempre teve. Talvez algo que eu gostaria de ver fortalecido é a seção Metafrasis de tradução literária. Ela foi uma ideia do Alckmar Santos para homenagear um falecido amigo nosso, autodidata de diversos idiomas, e acho que, com a crescente onda de tradução literária no Brasil, seria interessante explorar mais publicações deste tipo. De resto, só posso me sentir feliz e orgulhoso de ter participado deste espaço-coisa que se chama Mafuá e de ver que os editores que vieram a seguir tratam-na com tanto carinho e dedicação.
Mafuá – Como e quando você entrou para a comissão editorial da revista?
Ana – Eu havia me formado em Jornalismo em 2006, estava trabalhando em um assessoria de imprensa e decidi pedir retorno de graduada pra Letras. Uma das primeiras disciplinas que fiz na Letras foi com o professor Alckmar (era introdução aos estudos literários, ou algo do gênero). Por convite dele, fui conhecer o Nupill. Pela afinidade com a minha área de formação, fui pra equipe da revista, que na época era chefiada pela Deise Freitas, se não estou enganada.
Otávio – Minha entrada na Mafuá foi meio “cedo”. Entrei para o NuPILL em 2005. Estava no terceiro semestre do curso de Letras-Inglês e tinha aprendido, por conta própria e porque estava estudando criações poéticas digitais como iniciação científica, a programar em Html. Quando o Alckmar Santos decidiu assumir a Revista Texto Digital, eu e o Rodrigo de Sales (do curso de Biblioteconomia) assumimos como editores. Pouco tempo depois, os dois editores da Mafuá decidiram sair, um para se focar nos estudos em outra área e o outro para se focar na dissertação. Eu estava ali como editor e programador da Texto Digital (já havia redesenhado completamente o layout da revista) e já havia dado uma mão para a Mafuá, então me perguntaram se eu não queria fazer parte desta nova equipe da revista. Eu aceitei e começamos a trabalhar. Essa mudança de editores fazia parte da ideia central de que a Mafuá era um local de formação para os alunos de graduação, um lugar onde eles poderiam aprender, colocando a mão na massa, sobre essa faceta do mundo acadêmico que são os periódicos científicos.
Tiago – No início de 2011, houve uma chamada para estudantes que quisessem fazer parte da comissão editorial da Mafuá. Eu ainda não conhecia a revista, mas fui logo acessá-la na internet e me lembro que gostei muito, principalmente por causa do estilo da apresentação. Ao vasculhar a revista, vi que havia uma entrevista com a Fernanda Takai. Antes de mudar para Florianópolis, eu morava em Minas e lia toda sexta-feira as crônicas que ela publicava no Estado de Minas. Então, quando me deparei com a entrevista dela na Mafuá vi que a proposta da revista era um tanto “descolada” e me agradou bastante; afinal, a maioria das revistas de literatura se prendem aos escritores de renome. Nessa época, eu cursava mestrado na UFSC e achei que seria uma boa experiência integrar a comissão da Mafuá. Foram anos muito felizes e de muito aprendizado. Infelizmente, neste ano (2018) tive de me desligar da revista por questões profissionais.
Eduarda – Em 2013, a Mafuá estava num processo de transição de equipe e alguns integrantes da antiga comissão que ainda permaneceriam responsáveis pela revista me convidaram para participar. Sempre vi isso acontecer, em intervalos maiores ou menores, desde que comecei a participar das atividades do NuPILL; eu via o processo como uma política do núcleo que entendia o gerenciamento das revistas como parte da formação acadêmica dos estudantes.
Mafuá – A participação na revista contribuiu para sua formação de alguma maneira?
Ana – É muito bom ter no currículo que se fez parte da comissão editorial de uma revista acadêmica, claro. Mas a experiência é mais valiosa do que uma linha no Lattes. Na época, eu não tinha nenhum artigo publicado, não sabia como era o processo. Acabei aprendendo sobre o processo de publicação em uma revista como editora, e não como autora, o que é incomum. Fazer a mediação entre autores e pareceristas, entender a importância da avaliação anônima, treinar a diplomacia quando ocorre algum conflito, fazer aquela ginástica pra cumprir o prazo e ao mesmo tempo entender que o tempo é apertado também para os autores. Tudo isso me ensinou a ser uma autora mais esclarecida sobre o processo (quando comecei a submeter os meus artigos), mais paciente, mas também crítica sobre como escolher os periódicos para os quais submeto.
Otávio – Totalmente. Minha participação permitiu que eu conhecesse os modos e meios de funcionar dos sistemas de periódicos: peer review, pareceres, editoração, normas, QUALIS, indexadores, e tantas outras coisas. Normalmente vemos esse mundo de fora, do ponto de vista de quem submete artigos, mas a participação na Mafuá permitiu que eu entendesse o processo por dentro, tendo que lidar com alunos, avaliadores, órgãos de avaliação, datas, convidados, etc. Hoje, como professor da Universidade Federal do Pará, noto como esse conhecimento não é corriqueiro. Normalmente, ele se dá depois da entrada como professor efetivo. São poucos os que, já na graduação, mestrado ou doutorado atuaram em um periódico. Ao mesmo tempo, entender o funcionamento destes meios é fundamental para se compreender um dos eixos centrais das universidades públicas, i.e., a produção de conhecimento e o compartilhamento deste com a comunidade, sem o qual, não há diálogo, sem o qual não há ciência e conhecimento.
Tiago – Como a minha área de formação é em Literatura, especificamente as literaturas africanas de língua portuguesa, as revistas literárias muito me interessam. Como editor da Mafuá, pude ler e revisar muitos ensaios e, nessas leituras, descobri muitos caminhos pelos quais é possível investigar uma obra literária. Acho que o grande trunfo da revista é o fato de publicar artigos de estudantes de graduação, que ainda não têm o olhar inteiramente moldado pela academia. Isso, sem nenhuma dúvida, contribui para leituras inovadoras acerca de obras já muito estudadas e também para a descoberta de novos escritores da cena contemporânea. Outro aspecto a que devo muito aos meus anos de contribuição à Mafuá é o fato de ter tido contato com a interlocução da literatura com outras artes. A seção de criações sempre trazia (e ainda traz) surpresas maravilhosas!
Eduarda – Acredito que sim. Assumir a responsabilidade de contribuir no gerenciamento de um processo editorial é uma experiência bastante rica; tanto na parte operacional quanto durante a mediação de contatos entre autores e avaliadores. No meu caso, aprender a gerenciar o tempo necessário das etapas que a avaliação de artigos demanda, por exemplo, levou algumas edições. Estar por trás dos mecanismos, conhecer e conversar diretamente com pareceristas, também quebra a mistificação do processo e faz a gente entender que na academia as burocracias, às vezes, têm razão metodológica, e contribuem para a divulgação de reflexões teóricas de maneira intelectualmente honesta.
Mafuá – Alguma das edições da revista se destacou para você? Se sim, qual e por quê?
Ana – Eu lembro com carinho até hoje da edição em que eu e o Otávio Guimarães entrevistamos o professor e artista Edgar Franco. Além do Edgar ser uma figura fantástica e ter um trabalho super original e estimulante, fiquei muito satisfeita com a elaboração da entrevista. É um desafio fazer entrevista por e-mail. Entrevista é uma forma de diálogo, olho no olho faz a diferença, pois te permite captar mais a subjetividade da pessoa que você entrevista. E o Edgar é uma figura que, na minha opinião, só pode ser bem retratada se por meio dessa subjetividade. Então, eu lembro que a minha preocupação na época foi tentar ao máximo aproximar a entrevista por e-mail de uma conversa ao vivo. Então, comecei perguntando pra ele o que ela achava de as pessoas dizerem que ele era esquisito. Rsrsrs. Aliás, tá onde essa entrevista? Procurei lá no site da Mafuá e não achei.
Otávio – Existem três edições que são especiais para mim, cada uma a sua maneira. A primeira foi a número 07, porque foi a primeira edição em que trabalhei e, ao mesmo tempo, representava uma nova Mafuá, fruto das nossas escolhas e das nossas tentativas e erros. É o tipo de coisa que, quando a gente termina, faz a gente se perguntar: “mas, fomos nós que fizemos isso mesmo?”. A segunda foi a número 08. Acho que adorei essa não só porque ela consolidou o novo estilo (era o segundo número em que eu tinha trabalhado), mas porque ela contou com a arte do Plínio Fuentes que foi simplesmente fantástica. Ela era vida pura (é quando você nota que as escolhas foram boas e a coisa vai dar certo). A outra que está marcada para mim é a 12º. Há, aí diversos grandes motivos. O primeiro foi o design feito por Enrique Nuesch em pixel art. O Enrique (agora professor na UNESPAR) não era artista plástico, mas adorava criar esses desenhos no Paintbrush, quadradinho por quadradinho. Era muito divertido. Decidimos um dia que isso daria uma bela capa. Propomos, e fizemos. Ele fez a capa e propôs a coisa. Eu transformei o desenho dele em uma animação em flash e estruturei a revista toda para parecer a interface de um sistema operacional antigo (hoje, eu diria que era pixel art). Ficou algo muito inusitado. Ao mesmo tempo, a Cláudia Vilarouca (hoje professora na Universidade Federal do Pará) apresentou uma tradução do primeiro capítulo do livro Espèces d’espaces do autor francês Georges Perec (que eu adoro) e saiu, na doidura e cara de pau, uma entrevista filmada com o escritor Mia Couto. Foi uma edição única.
Tiago – Não me lembro do número exato da edição, mas gostei muito de entrevistar a Vilma Guimarães Rosa, de quem ganhei até um livro autografado! Ela publicou um livro de memórias muito importante para aqueles que estudam a obra do seu pai, Guimarães Rosa. Nele, o leitor encontra correspondências endereçadas às filhas, Agnes e Vilma, quando ele foi diplomata na Europa. Há cartas maravilhosas! Na entrevista que a Vilma me concedeu, ela fala do seu pai, das suas memórias, do que significa Minas Gerais para ela e da sua atividade de escritora. Muitos não sabem, mas ela dedicou-se bastante tempo à literatura. Eu sou mineiro e leitor assíduo de Guimarães Rosa; então, essa entrevista marcou a minha passagem pela Mafuá.
Eduarda – A última da qual participei, já a meio caminho da porta de saída. Ver a nova equipe se formando tão dedicada e motivada me deixou com a sensação de ciclo concluso.
Mafuá – Você ainda acompanha a Mafuá? Se sim, você nota diferenças entre o projeto atual da Mafuá e o mantido pela equipe que você participava?
Tiago – Eu sempre acompanho o que vem sendo publicado pela Mafuá, pois, como pesquisador e professor de Português e Literaturas, acho que é uma revista interessante para conhecer a que leituras os alunos de graduação estão se dedicando. Para mim, a Mafuá traz muito o olhar do aluno, do jovem pesquisador, e isso é um grande diferencial em se tratando de revistas de literatura. Até os erros, as leituras meio desatentas, podem ser interessantes para ver o quê (e como) os alunos têm lido. Em relação ao projeto central da revista, ele se mantém fiel à proposta de levar investigações de jovens alunos de graduação. Porém, ele nunca é o mesmo sempre, pois varia de acordo com a equipe editorial do momento. Como eu permaneci na Mafuá por sete anos, eu pude presenciar olhares muito distintos acerca do que poderia ou não ser publicado na revista. Por exemplo, na seção “Criações’, eu sempre fui a favor de publicar quaisquer tipos de criações, mesmo aquelas que não tinham relação direta com a literatura, como desenhos e fotografias. Às vezes, havia algumas discordâncias, mas isso era bom para diversificar as criações que eram publicadas na revista. Acredito que o grande diferencial, que felizmente ainda se mantém, é o olhar aberto da comissão editorial para aquilo que significa “arte” e “literatura”. Fiquei muito feliz em saber que a Mafuá passou a aceitar também resenhas de filmes! É dessa abertura que eu estou falando.
Eduarda – Acompanho, principalmente porque ainda recebo as notificações de novas publicações. Na verdade, eu vi acontecerem as duas últimas mudanças da revista: a primeira quando “abandonamos” o esquema de chamarmos artistas para criar capas a cada edição e optamos por uma programação mais moderna; a segunda, quando a revista ganhou uma carinha mais próxima a dos blogs e passou a constituir um banco de dados de mais fácil acesso. (Que me corrija o povo que entende de informática se eu falei besteira.) Digo que vi, porque fui literalmente adotada pelo NuPILL: entrei no primeiro semestre de graduação e continuo por aqui, enquanto concluo o mestrado.
Mafuá – Por fim, agradecemos cordialmente a disponibilidade e o envolvimento dos entrevistados.