I.
Tratar de gênero literário nos dias de hoje, visto as relativizações e complexidades que o século XX trouxe, não me parece tarefa fácil, uma vez que qualquer tentativa de sistematização rigorosa sempre acaba ocasionando um – vamos dizer – transbordamento de conceito. Não por acaso, termos como prosa poética e poesia em prosa são criados para atender a uma demanda e dar conta de determinadas obras problematizadoras como Macunaíma, de Mário de Andrade ou Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, apenas para citar exemplos brasileiros.
Consciente do problema e disposto a assumi-lo, pretendo neste trabalho analisar dois contos do ficcionista carioca Victor Giudice à luz da teoria de Tzvetan Todorov acerca da literatura fantástica.
Se faz necessário esclarecer que não pretendo, especificamente, me debruçar sobre interpretações e leituras dos contos, embora muitas vezes seja necessário e interessante para o estudo, mas sim constatar a presença, ou dissidências, de elementos que aproximem os contos de Victor da literatura considerada fantástica.
É importante ressaltar também, antes de qualquer avanço, que muito embora eu faça uso e esteja de acordo com muitos aspectos da teoria e metodologia estruturalista de Todorov, cujos avanços ao estudo da literatura são inegáveis, outros – o olhar objetivo sobre a obra literária, por exemplo – me parecem questionáveis e, até mesmo, superados na discussão contemporânea que diz respeito ao texto.
II.
Mas deixando essas questões de lado, até porque não me interessam para o presente estudo, quero dedicar esta parte de minhas reflexões para tentar elucidar e responder questões teóricas pertinentes ao gênero do fantástico.
Muitas são as teorias a respeito do nascimento do gênero. No entanto, ao meu ver, a mais considerável afirma ter sido a partir do século XIX que a literatura fantástica se intensificou. E é no século XIX que busco um estudioso que situa sua reflexão no centro do problema, dizendo ser a ciência uma das impulsionadoras do surgimento desta literatura:
“(…) A honra dessa nova floração tem origem provavelmente na ciência. Quando essa nos ensina que uma ligeira alteração de nossa retina faria o mundo para sempre descolorido, ela sugere a todos o pensamento de que o mundo real poderia bem não ser senão uma aparência, como já os filósofos o sabiam. Quando ela nos provê de criaturas dotadas de órgãos e de sentidos diferentes dos nossos, ela faz pressentir que deve haver tantas aparências de mundos quantas formas de olhos e de variedades de entendimento”. [1]
Ora, falando dos mundos ignorados, a ciência – pode-se dizer – encoraja o escritor a sonhar mundos imaginários. E é daí que parte a literatura fantástica. No entanto, afinal de contas, o que é a literatura fantástica? Para responder esta questão, recorro, primeiramente, a Todorov. Segundo o autor, o fantástico se caracteriza pela hesitação entre uma realidade ficcional tal qual a nossa (ou seja: a recriação do real na arte) e um mundo ficcional, imaginário, impossível.
No conto A única vez, de Victor Giudice, onde os fatos são narrados em primeira pessoa, percebe-se, num primeiro momento, uma normalidade, ou seja, “um mundo que é exatamente o nosso” (p. 30: 1999) e que pode ser explicado pelas leis naturais. Quando a figura do pai (re)aparece, sendo que o pai já está morto há décadas, dirigindo seu Ford cupê de duas portas (o mesmo que usava enquanto vivo), as leis naturais passam a não mais explicar a realidade ficcional do conto, e a dúvida, a hesitação se instaura: realidade ou sonho? verdade ou ilusão? Somos, assim, transportados ao fantástico.
É interessante e indispensável perceber que o fantástico só ocorre quando há hesitação: qual seja, ao buscar uma explicação aos fatos sobrenaturais, deixa-se o fantástico para entrar num gênero vizinho: o estranho, e ao aceitar os fatos, entra-se, segundo o teórico, no maravilhoso[2]. Porém essas reflexões me trazem outros problemas: quem hesita? O personagem do conto – e do romance – ou o leitor?
No conto de Victor me deparo com um personagem que, embora não deixe explícito, encara os acontecimento com absoluta normalidade, porque em nenhum momento lhe surge dúvida ou hesitação a respeito daquele acontecimento estranho. Ora, se não há dúvida por parte da personagem, haverá, no entanto, por parte do leitor; não necessariamente de um leitor real – pois não se pode ter controle sobre todos os leitores -, mas como ensina Todorov, por parte de um leitor implícito, ou seja, de uma função de leitor.
O segundo conto, Salvador Janta no Lamas, me permite levantar outra questão pertinente à discussão, pois apesar de, como no primeiro conto, não existir uma expressão verbal por parte do personagem em relação a sua dúvida, como por exemplo: “Terei dormido?”, “Seria um sonho?”, etc., haverão duas atitudes que evidenciarão essa dúvida. Vejamos.
Num primeiro momento da narrativa o autor irá trabalhar o sobrenatural num limitar, ou seja, os fatos ainda podem ser explicados racionalmente, mas se afastam absolutamente do cotidiano: é quando grande parte das pessoas do restaurante, estranhamente, observam Salvador:
“(…) enquanto os olhos do casal se mantinha na mesma: Salvador. Agora ele contava com três contemplações distantes e fixas: as duas do par de embriagados e a do garçom paralisado junto à copa, equilibrando os pratos. (…) E a mesa da direita? Por que razão naquele momento o rapaz e a negra teriam voltado a encara-lo com a mesmíssima seriedade de alguns minutos atrás?” (p. 148: 1989b)
Nesse momento Salvador não suporta e se dirige até o toalete, onde se olha no espelho. “Talvez houvesse alguma coisa estranha em sua cara, nos cabelos ou até na roupa”, sugere o narrador. E o elemento do espelho aparece aí como duas possibilidades que não se excluem: a primeira busquei num ensaio de Umberto Eco sobre os espelhos na literatura. Eco afirma que “A magia dos espelhos consiste no fato de que sua extensividade-intrusividade não somente nos permite olhar melhor o mundo mas também ver-nos como nos vêem os outros (…)” (p. 18: 1989a). E propõe: “(…) partimos sempre do princípio de que o espelho `diga a verdade´” (p. 17: 1989a). Ora, pensando dessa forma, é extremamente possível a leitura de que Salvador vai ao espelho em procura de uma resposta à sua dúvida. Mas ainda não é uma dúvida que diz respeito ao sobrenatural, o inexplicável, mas àqueles olhares, que não passam de estranhos.
A segunda, e que pode ser entendida como a origem do fantástico no conto, é estudada pelo próprio Todorov: “O espelho está presente em todos os momentos em que as personagens do conto devem dar um passo decisivo em direção ao sobrenatural” (p. 129: 2004). Portanto, após Salvador se refletir no espelho e voltar ao restaurante, o que era apenas estranho ultrapassa a linha da razão e alcança o sobrenatural: agora, um número maior de pessoas passa a olhá-lo, até chegar a todas as pessoas do restaurante. “Não havia uma única mesa vazia e todas [as pessoas] olhavam para ele, silenciosas e eternas” (p. 151: 1989b), começam a ser percebidas, descreve o narrador. E, além disso, figuras muito esquisitas como “uma jovem que se sentava com a saia arregaçada até os quadris, exibindo na coxa visível uma tatuagem arroxeada”, “um olho solitário sob um boné azul, numa cara alongada, de feições duras. A outra vista se achava coberta por uma venda negra, como a dos piratas” (p. 151: 1989b), etc. No entanto, o universo do fantástico ainda não está concretizado, visto que apesar as estranhezas do fato, nada de existe de sobrenatural.
Depois disso, Salvador decide fugir. E foge. Mas já no carro do metrô, lembra-se que esqueceu de pagar a conta. E ao voltar ao restaurante, novamente se depara com um dos que o olhava, agora fazendo coisas impossíveis:
“Como um artista, executou um gesto amplo e circular para exibi-la [uma batata] aos interessados. A batata desapareceu na palma de sua manzorra. Num movimento rápido, a mão esquerda cobriu e descobriu a direita. Em lugar da batata, ele segurava a haste de uma rosa branca, recém-desabrochada, cujo perfume se esparzia pelo restaurante (…) O gordo se animou. Levantou as mãos e mostrou-as espalmadas, para provar que estavam completamente vazias. Então esfregou uma na outra e tirou um ás de ouro do nada.” (p 154: 1989b)
E continua fazendo absurdos, cada vez menos explicáveis, até que, enfim, Salvador vai embora, “anônimo e amargo” (p. 155: 1989b).
É no último parágrafo do conto que o narrador dá a pista da dúvida do personagem quanto àqueles fatos: “Pegou o último metrô e voltou para a casa. Graças a Deus a mulher já estava dormindo. Se ela se metesse a fazer perguntas, ele não saberia o que dizer” (p. 155: 1989b grifo meu). “Ele não saberia o que dizer”: eis a fórmula que resume o espírito do fantástico.
E voltando à questão inicial da discussão, pode-se concluir que a hesitação poderá, ou não, ocorrer na ficção, mas é imprescindível, para se concretizar o fantástico, que ocorra com o leitor implícito.
Elucidada a questão, retomo o personagem que, no fim do conto, faz coisas impossíveis, para apontar outro elemento persistente na literatura fantástica: a presença do duplo. Ora, o que é aquele personagem senão uma projeção de Salvador? Ou até mesmo uma parte da personalidade, já que ele faz tudo aquilo que Salvador não pode e deseja fazer, mas que é impedido pela timidez – timidez, aliás, ressaltada em diversas partes do conto.
E chamo a atenção para o fato de que o encontro entre Salvador e seu duplo tenha acontecido somente no final, indo ao encontro de outra persistência da literatura fantástica: a persistência da surpresa e da quebra de uma lógica realista. Dificilmente uma narrativa fantástica irá começar com um fato sobrenatural; geralmente a quebra se dá no meio ou no fim da narrativa. E é interessante perceber que nesse conto, especificamente, a lógica realista vai sendo quebrada à medida que o protagonista vai ficando mais inquieto com a situação. No final é alcançado um ápice de inquietação de Salvador e dos eventos fantásticos.
Se faz necessário comentar também que, mesmo com a interferência de elementos sobrenaturais, o texto obedece a uma coerência interna, como o próprio Aristóteles, na sua Poética, ressalta: “ainda que o personagem a apresentar não seja coerente nas suas ações, é necessário, todavia, que ele seja incoerente, coerentemente”. Isso é perfeitamente observável no conto: apesar de todos os acontecimentos estranhos, Salvador termina com a mesma timidez que começa, por exemplo.
Aliás, esse é um caráter muito curioso da literatura fantástica, pois muito diferente do maravilhoso, a narrativa fantástica narra, na maior parte do tempo, os fatos com absoluta verossimilhança e fidelidade a natureza humana. E isso será muito marcado no conto pelo fato de o autor, inclusive, usar elementos reais como o nome do restaurante: Lamas (restaurante existente no Rio de Janeiro), um personagem que, assim como nós, possui um emprego, amigos, família: “Jamais diria aos colegas que sente ojeriza a voltar para casa assim que termina o expediente, depois de ficar trancado nove horas no banco declamando parcelas intermináveis (…) Assim, não gostar de voltar para a casa pode parecer aos outros que ele despreza a companhia da mulher e dos filhos, e isso não é verdade” (p. 142: 1989b).
Desse modo, enfim, Victor Giudice se inscreve na literatura brasileira como um ficcionista essencialmente fantástico, jogando, por vezes, com uma tradição do gênero, como o uso recorrente de certos elementos característicos – o duplo, o espelho – e, eventualmente, inserindo outros elementos pouco usados neste tipo de literatura – como a narrativa em terceira pessoa.
Referências
ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. São Paulo: Nova Fronteira, 1989a.
GIUDICE, Victor. O Museu Darbot e outros mistérios. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
______________. Salvador janta no Lamas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989b.
RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. São Paulo: Ática, 1998.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
1. BARINE, Arvéde. Poétes et nèvrosés. 2 ed. Paris, Hachetle, 1908, p. 3.
2. A questão do maravilhoso me parece mais delicada, uma vez que no maravilhoso o universo sobrenatural é posto desde o início da narrativa, como é o caso de Macunaíma.