A beleza mórbida dos personagens de Os Pobres, de Raul Brandão

Vinícius Ryan de Sousa Montenegro; Ana Clara Nascimento Sousa.

Resumo: O presente ensaio objetiva discorrer sobre a caracterização dos personagens de Os Pobres, de Raul Brandão. Não apenas almejando a mera descrição física e cotidiana dos personagens, o autor se propõe a devanear poeticamente acerca da existência dessas pessoas em circunstâncias variadas, sob a mazela da pobreza. Justamente nesse contexto de adversidades, a prosa brandoniana eleva a natureza dos personagens de tal modo que a miséria, a filosofia e a metafísica confluem para a obra romanesca, sendo assim, formas de vida humilhadas e metaforicamente mortas para os demais ganham beleza poética e existencial dentro da narrativa. O aporte teórico utilizado é composto por Curanishi (2015), Guaranha, Gomes e Campos (2021), Curanishi e Carvalho (2015), Paz (1982) e Gancho (2002). Importante ressaltar que o intuito deste trabalho não é romantizar a dramaticidade e a miséria apresentadas na narrativa, mas sim compreender como tais elementos, quando incorporados ao discurso romanesco de Raul Brandão, ganham contornos poéticos a ponto do desumano se tornar, nos limites do texto literário, belo.

Palavras-chave: Beleza mórbida; Os Pobres; Personagens; Raul Brandão.

Abstract: This essay aims to discuss the characterization of the characters in Os Pobres, by RaulBrandão. Not only aiming at the mere physical and everyday description of the characters, the authorproposes to poetically daydream about the existence of these people in varied circumstances, underthe affliction of poverty. Precisely in this context of adversities, Brandonian’s prose elevates the natureof the characters in such a way that misery, philosophy, and metaphysics converge in the novel, thushumiliating and metaphorically dead forms of life for others to gain poetic and existential beauty withinthe narrative. The theoretical support used is composed by Curanishi (2015), Guaranha, Gomes, andCampos (2021), Curanishi and Carvalho (2015), Paz (1982) and Gancho (2002). It is important toemphasize that the purpose of this work is not to romanticize the drama and misery presented in thenarrative but rather to understand how such elements, when incorporated into Raul Brandão’snovelistic discourse, gain poetic contours to the point of becoming inhuman, within the limits of theliterary text, beautiful.

Palavras-chave: Brazilian literature. Short story. Fantastic. Machado de Assis. Murilo Rubião.

1 Introdução

As obras de Raul Brandão carregam uma temática fortemente existencialista,isto é, suas produções colocam o homem como pináculo de um questionamento queparece fugir do imediatismo da vida comum. Isso não significa dizer que o imediatocarece de importância na construção da prosa poética do escritor. Na verdade, opalpável e o real assumem uma nova ordem de grandeza, esta que dialoga com opróprio fazer humano ao longo da vida. Sendo assim, suas obras, embora tratem deseres particulares, tentam nos conectar com uma coletividade existencial.

Evidentemente dissertar sobre Raul Brandão necessita de uma dose deabstração para compreender as questões metafísicas do autor. Por enquanto,devemos ter em mente que sua produção literária é caracterizada pela junção dediferentes aspectos temáticos e estilísticos, tais como: simbolismos, formas de vidahumilhadas, interioridade do ser e o próprio fazer poético, esses aptos a condicionaralto grau de lirismo na diegese narrativa: “[…] Raul Brandão coloca-se como umescritor que incorpora, em suas produções, o aspecto real do universo que seconhece, com uma infinidade de descrições e relatos que envolvem questões deordem mística e metafísica” (Curanishi, 2015, p. 226). Tal constatação sugereque o teor artístico de Raul Brandão escapou dos limites tradicionais do romance,renovando-os como consequência. Com efeito, dentro da narrativa do referido autor,é comum encontrarmos o entrelaçamento de signos e espaços que não atuamsomente na descrição ou localização de algo, na realidade, esses elementos estãoinerentemente conectados à construção sentimental e psicológica dos personagens.

Inclusive, os personagens merecem destaque especial. São descritos, emgeral, como miseráveis, assolados por tragédias inomináveis e colocados à margemda sociedade. Em Os Pobres, acompanhamos os causos de pessoas diversas, cadauma com seus dilemas pessoais. Por outro lado, acreditamos que mais do quecaracterizar a vida sofrida dessas pessoas, Raul Brandão objetivou, na obra citada,elevar poeticamente seus personagens, em outras palavras, conceder a eles umaexistência que, apesar de manter raízes na miséria humana, também alcança abeleza mórbida.

Por beleza mórbida consideramos essa condição dos personagens retratadaem Os Pobres: são miseráveis a ponto de ganharem um estatuto de não existência(morte social), estão à margem da sociedade e são ignorados pelos demais —exceto nos momentos de escárnio. Contudo, dentro da obra, também não estãorestritos ao papel de humilhados, pois a narrativa do Brandão incita a elevaçãopoética dos personagens. São reis e rainhas de suas próprias dimensões, comreflexões humanas capazes de dialogar com diversas formas de existência. Issosignifica que a condição de pobreza na obra serve de alicerce para uma temáticamaior: a do miserabilismo social, crise cíclica ao longo da história, expressa atravésda prosa poética.

Considerando o exposto, o presente ensaio busca mostrar como secaracteriza essa beleza mórbida dos personagens de Os Pobres. Para tal feito, estádividido nas seguintes seções: estabelecendo o espaço/ambiente, onde discutimoscomo as características do ambiente auxiliam na construção do teor poético daobra; a beleza mórbida, seção em que apresentamos as particularidades dospersonagens com o intuito de compreender a força significativa de cada um deles;por fim, temos as considerações finais, onde sintetizamos as reflexões construídasao longo do ensaio.

2 Construção dos personagens

2.1 Estabelecendo o espaço/ambiente

É importante destacar que o espaço não se limita a uma estratégia de localização ou detalhamento. Tratando-se de uma obra que constantemente relaciona diferentes noções humanas, metafísicas e sentimentais, o espaço, tornando-se ambiente, catalisa as emoções apresentadas ao longo do texto.

Proveito apontar que caracterizamos o ambiente tendo como base o pensamento de Cândida Vilares Gancho, ao afirmar que é “[…] o espaço carregado de características socioeconômicas, morais, psicológicas, em que vivem os personagens. Neste sentido, ambiente é um conceito que aproxima tempo e espaço, pois é a confluência destes dois referenciais, acrescido de um clima” (Gancho, 2002, p. 23). Compreende-se, portanto, o ambiente como indicador de condições psicológicas, morais e sentimentais dos personagens, ou seja, ele não está limitado a situar o local onde acontecem os fatos narrados.

Para exemplificar esse fenômeno, basta tomarmos como base a descriçãoinicial do romance, após a carta de prefácio: “Vem o inverno e os montespedregosos, as árvores despidas, a natureza inteira envolve-se numa grande nuvemhúmida que tudo abafa e penetra. As coisas dilas-íeis recolhidas e cismáticas”(Brandão, 2001, p. 24). A introdução é simples, mas eficaz no tocante àcontextualização da obra e ao uso de adjetivos, tais como “despidas, húmida ecismáticas”. Mais do que anunciar a chegada do inverno, as característicasmencionadas dialogam com a condição daqueles que ocupam a centralidade doromance: os miseráveis. Em face ao clima tortuoso, também se encontramrecolhidos, despidos de humanidade e imersos numa natureza cismática, dereflexões e adversidades próprias.

Partindo do geral, podemos agora adentrar em domínios individuais. Entre os vários personagens apresentados no livro, temos Gabiru, homem esguio e soturno, habitante do andar mais alto do casarão introduzido no primeiro capítulo. Sua natureza filosófica está intrinsecamente ligada ao espaço em que reside. O pensamento é destinado ao mundo, ao que está além de nós:

“Oh como eu tremo diante das árvores, do luar que corre branco e sem murmúrio, da natureza esplêndida que adivinho para além dos muros do Hospital!… Passo por doido e na verdade quase grito de pavor diante do espantoso universo. Olhai a treva a escutar, o mistério, a água que brota sem ruído, a árvore de braços erguidos, o caliginoso mar…” (Brandão, 2001, p. 49).

Gabiru ocupa o ponto mais alto do casarão e possui uma vista privilegiada de tudo que lhe cerca. Sendo um homem dedicado à filosofia, todos os aspectos do espaço, de alguma forma, compactuam para moldar seu pensamento. O trecho acima evidencia o pavor sentido pelo homem quando confrontado pela natureza misteriosa do mundo, natureza essa que carrega marcas de ambiguidade: tanto potencializa a filosofia de Gabiru quanto assombra-o pela pequenez do homem diante da vida.

O mundo é descrito como uma entidade viva. Cada pedaço da realidade éinterligado e emana vivacidade. Nesse constante choque de forças, Gabiru, aolongo dos capítulos, consegue nos comunicar o simbólico e as sensações existentesna natureza: “Simbólico, o espaço tem correspondência com as projeções anímicasdos seres e, por isso mesmo, também tem vida, emanando sentimentos, sensaçõescaptadas pelo vidente Gabiru” (Guaranha; Gomes; Campos, 2021, p. 415).Com isso, o leitor se depara com um misto de emoções ao percorrer os diferentesambientes da obra, considerando a teia lexical que tanto descreve quanto situasentimentalmente os fatos narrados. Torna-se frutífero relembrar a sutileza doespaço, pois ele nem sempre atua de forma física. Certas vezes adentra aconsciência dos personagens:

Depois fecho-me nesta trapeira alta, construída nos telhados e donde sevêem seres admiráveis: labaredas verdes que se agitam – e são árvores;nuvens pousadas 51 sobre a terra com oiro a flux ou então dum violetadesfalecido – e são montes; e rolos que correm vivos e fluidos – e são rios.Muito tempo levei a decifrar-lhes o nome. Nenhum dos desgraçados osabia, porque o Hospital enorme entaipa a cidade, e essa vida húmida,torrentes de detritos, árvores, primaveras, gritos de sol, é desconhecida atodos os que sofrem lá em baixo, entre o granito ressequido (Brandão,2001, p. 50-51).

O trecho acima evidencia como Gabiru metamorfoseia o espaço físico emespaço psicológico, e “[…] se considerarmos o espaço em uma narrativa liricizada,consideramos que os espaços psicológicos são os mais valorosos na obra, pois éeste tipo de espaço que possui maior abertura ao emprego da poesia” (Curanishi;Carvalho, 2015, p. 93). Encantado pelas maravilhas vistas no topo do casarão,Gabiru reconhece a grandeza da natureza e ao mesmo tempo internaliza osfenômenos visíveis (físicos). Nesse contexto, aflora uma linha contínua desentimentos no interior do personagem a respeito do privilégio de poder decifrar oobservável, enquanto os outros miseráveis desconhecem tamanhas maravilhasexistentes.

Podemos então concluir o seguinte: o espaço não se limita a situar as características contextuais e temporais da obra. Sua força significante permite uma relação simbiótica com a natureza existencial dos personagens. Para exemplificar ainda mais esse fenômeno, basta tomarmos como base as memórias de Luísa ao relatar o tempo em que vivia no “Asilo”, uma espécie de orfanato para crianças.

A descrição do lugar começa da seguinte forma: “Nunca tive mãe, nem ninguém. Fecho os olhos e só vejo o Asilo, os corredores húmidos, o dormitório, o frio refeitório abobadado de granito. Toda aquela pedra parecia sepultar-nos” (Brandão, 2001, p. 82). As crianças, no contexto narrado, foram abandonadas, posto isso, o ambiente circundante reforça a situação de melancolia em que se encontram.

O clima friorento, a umidade e o material utilizado para construir as paredes do Asilo, atuando em conjunto, criam o imaginário de grande sepultura onde esperanças são enterradas, pois “[…] se tratando da leitura de Raul Brandão, no interior do eu, o espaço é a base para a manifestação da dor, cenário através do qual os lamentos e desgraças acontecem” (Curanishi; Carvalho, 2015, p. 96). Em síntese, a dor retratada pela situação degradante das crianças se reflete na constituição do espaço habitado, como bem apontam as autoras.

Por outro lado, o ambiente pode dialogar com a natureza poética da obra de modo distinto, bem mais sutil. Ainda no capítulo dedicado ao Asilo, Luísa relembra o momento em que um ninho de andorinhas fora destruído pelas religiosas da instituição:

Destruí-los porquê? Para que não soubéssemos que as aves têm mãe e cuidam dos filhos? Para que não tivéssemos saudades das nossas, que não conhecêramos? Para que ignorássemos?… Mas que candura a das Irmãs se era por isto! Nós pressentíamos, adivinhávamos tudo aquilo e quando uma das mais pequeninas explicou às que faziam roda: – É o berço dos passarinhos… – quantas de nós já tinham cismado num berço assim agasalhado e fofo!… (Brandão, 2001, p. 86-87).

O berço das andorinhas metonimicamente substitui o berço um dia ocupadopelas crianças do Asilo. Contudo, essa relação não se baseia em ternura, naverdade, reverbera o sentimento de abandono construído no capítulo tratado. Se,como supõe a narradora, a destruição do ninho é uma tentativa de inviabilizar apercepção das crianças de que um dia tiveram mães, o que ocorre é o apagamentode qualquer vestígio capaz de trazer à alma dos inocentes o senso de amor.Enclausurados na sepultura que é o Asilo, os pequenos desconhecem o carinhomaterno e imergem na frieza da solidão.

De acordo com o pensamento de Octavio Paz, podemos pensar o poético“[…] quando a poesia acontece como uma condensação do acaso ou é umacristalização de poderes e circunstâncias alheios à condição criadora do poeta […]”(Paz, 1982, p. 16). O autor considera o poético como uma grandeza além dopoderio humano, de existência própria; todavia, a partir do momento em que ohomem maneja o poético para criar algo, tem-se o poema, uma obra artística: “[…] opoeta é o fio condutor e transformador da corrente poética, estamos na presença dealgo radicalmente distinto: uma obra” (Paz, 1982, p. 16-17). Até o presentemomento, percebemos que a prosa de Brandão se destaca pela descrição dos fatosnarrados, onde a poesia emerge como corrente interligada aos mínimos detalhes daobra:

A treva espessa em torno e o mesmo ruído da ressaca, a pregar. As nuvens baixas envolviam-nos num fluido negro, ambos tragados pelo deserto da noite. Não se viam e aquelas duas vozes, uma infantil e baixinha, a outra rouca, eram como o diálogo de duas forças ignotas, que o acaso rola no mesmo turbilhão do infinito (Brandão, 2001, p. 102).

A construção espacial acima representa o momento em que um ladrãoencontra Luísa em completo abandono num cais. De imediato, mais uma veznotamos o uso de elementos do ambiente para representar o estado emocional dospersonagens, tais como “a treva espessa”, “as nuvens baixas” e “deserto da noite”.Entre as conclusões plausíveis, fica claro que o autor de Os Pobres maneja aescrita da obra com intuito de aproximar a prosa da poesia, assim a subjetividade decada personagem pode variar em determinadas circunstâncias e “[…] em seu seioresolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência deser algo mais que passagem” (Paz, 1982, p. 15). Com o auxílio da poesia, acompreensão do homem ser algo mais que passagem, mencionada pelo autor,pode suscitar efeitos diversos, desde a êxtase espiritual até a epifania momentâneaa respeito do mundo.

Esses são apenas alguns exemplos de como o espaço se fundamenta para compor a prosa poética de Raul Brandão. Cabe agora investigar brevemente como os personagens, embora assolados pela dureza da realidade, elevam-se dentro da narrativa do autor a ponto de dialogarem com inúmeras existências humanas.

2.2 A beleza mórbida

Em primeiro lugar, é proveitoso tentar compreender a definição geral do título do romance, uma vez que o referido propõe o leitmotiv da obra. Com base nas ideias de Guaranha, Gomes e Campos (2021, p. 410), temos:

O sentido do termo, pelo menos até o século XVIII, não tem apenas o caráter econômico: o pobre, no sentido mais geral do termo, é aquele que sofre, que está infeliz, que é humilde, aflito. Numa acepção mais restrita, a palavra designa aquele que está sem trabalho, portanto sem condições de prover as suas necessidades básicas de existência.

Compreendemos, logo, dois significados: pobre enquanto indivíduo em condições infelizes de vida ou pessoa incapaz de manter as necessidades básicas de existência. A primeira definição engloba o sentido geral e a segunda se restringe ao viés econômico. Dentro da diegese literária de Brandão, ambas as conceituações estão entrelaçadas.

O primeiro personagem apresentado a nós, com capítulo próprio, é o Gebo, descrito como um homem gordo, de cabelos brancos e ensebados, constantemente humilhado pelos demais. Além de revelar as causas do escárnio sofrido pelo sujeito, o autor impõe a noção fatídica do destino que, vez ou outra, amaldiçoa determinados seres:

Há seres que nascem com esta sina – amargar a vida. Tudo lhe corre torto, até as coisas mais simples, as coisas que para os outros nem sequer existem. Em que hora aziaga encontrou a má sorte que nunca mais o deixou? A desgraça escarrancha-se no pescoço de certos homens. E é para sempre, para toda a vida! Nunca mais os larga. (BRrandão, 2001, p. 31).

Gebo, então, mostra-se como um infortunado. Apesar de não carregar maldade no coração, foi condenado a vagar infinitamente em busca do mínimo para garantir a sobrevivência da família. O percurso da vida, nesse contexto, é permeado por desgraças diárias que corroem homens de má sorte. Ainda que possamos encontrar respingos de esperança, no fim, tudo se apaga:

E tudo isto cabe dentro dum caixão de pássaro! Cabem os dias e as noites, os monólogos infindáveis, o desespero e a dor; cabe a ternura; cabem todas as construções imaginárias que nos sustentam. A vida que é tão grande não tem peso, o sonho sem limites não tem peso… Cabe ali o que maquinou e remoeu, e que é infinito ao pé desse farrapo inútil (Brandão, 2001, p. 98).

Na passagem do romance exposta acima, após a morte da esposa de Gebo,a reflexão instituída se refere ao peso da vida. Tanto vivenciamos, tanto almejamos,tanto sofremos, mas no fim tudo cabe num mísero caixão. A condição fatídica dopersonagem revela que não controlamos as facetas da vida. Sendo assim, abrevidade do tempo impulsiona nossa busca por um propósito que seja capaz deescapar do caixão referido. Certamente somos indivíduos movidos pelosimprevistos, contudo, defronte às inconstâncias do mundo, como podemos viver? Abeleza mórbida do capítulo em questão se explica porque Gebo instiga nossareflexão acerca de como lidamos com vidas alheias, cada qual guiada por uma sinaprópria.

Por certo não buscamos romantizar a situação descrita, entretanto, acreditamos fielmente que a prosa de Brandão objetiva retratar situações cruéis com o intuito de abrir os olhos do leitor para identidades diversas, conquanto todas estejam interligadas pelo fio condutor da miséria. Como bem aponta Curanishi (2015, p. 235):

A construção de Brandão, porém, permite que o leitor se apodere da atmosfera de miséria e sofrimento daquele contexto partindo do olhar dessa personagem, que contempla as mais diversas situações e as interioriza, encaixando-as como blocos que, juntos, construirão um novo significado para sua identidade.

Em suma, os personagens modelam paulatinamente a realidade através da interiorização dos fatos vivenciados, interpretando-os. O leitor, com isso, tem acesso a uma poderosa carga emotiva, uma atmosfera de miséria, bastante individualizada a depender do foco narrativo do capítulo. Basta analisarmos o pensamento de Luísa quando comenta a dívida de vida das meninas do Asilo:

Ele próprio era um benfeitor. O seu retrato lá estava colocado ao pé dos outros, com o mesmo caixilho fúnebre. Era o último da sala enorme, gelada, onde os passos ecoavam, toda cheia de retratos em torno. Os benfeitores!… – Dir-se-ia uma galeria de afogados, todos solenes, secos, hirtos, de lábios finos e ar de cerimónia. Todas as noites as Irmãs nos faziam rezar por eles, a quem devíamos o pão e a vida (Brandão, 2001, p. 84).

Abandonadas na sepultura que é o Asilo e destituídas de amor, as meninas são obrigadas a depositar suas fagulhas de fé nos benfeitores, pessoas que fazem doações à instituição. A crueldade mais uma vez se manifesta, posto que as crianças crescem com a ideia de que suas vidas valem o equivalente a uma esmola.

Brandão não está apenas denunciando a condição de “não existência” degarotas em orfanatos. Mais do que isso, ele une aspectos estilísticos e sentimentaispor intermédio da prosa e, de modo consequente, obriga o leitor a pensar a respeitodo valor da vida humana. São mecanismos literários que escapam da meradenúncia. Ao modelar a condição de vida mórbida das crianças, o autorengrandece-as para confrontarem as crenças e preconceitos dos leitores. O belo semanifesta nessa força capaz de elevar os personagens a tal ponto que elesescapam das fronteiras do literário para habitar o coletivo humano.

Em relação à Gabiru, personagem responsável por narrar belíssimas passagens da obra, temos um caso interessante. Trata-se de um homem introspectivo e ridicularizado pelos conhecidos, de aparência soturna e pouco adepto ao falar. Contudo, seu interior ressoa pensamentos diversos, o que expõe a filosofia transcendental do homem:

Desabituei-me de falar, mas sonho. Há vozes esplêndidas dentro em mim; de mim brotam árvores, estátuas mutiladas, pedaços vivos de sonho. Oh eu creio que cada criatura é um composto de almas de montes, de pedras, de águas, e creio também que existe uma misteriosa ligação entre o homem e os mundos. Estou preso às estrelas, àquela confusão de tintas e murmúrios e aos cardos humildes. (Brandão, 2001, p. 50).

Do seu corpo desabrocham reflexões a respeito do viver. Claramente Gabiru concebe a existência como uma complexa teia de entidades e vozes embutidas nas pessoas, fato exposto no trecho anterior. Tal constatação gera uma condição paradoxal: ao mesmo tempo em que se mostra como o personagem mais ciente da natureza humana, também se mostra como o mais distante da realidade. Dedica-se à reflexão, mas evita experiências concretas, porquanto se satisfaz com seu solitário pensamento.

Decerto isso não diminui o personagem, principalmente porque ele noscomunica a essência do livro de Raul Brandão: “Ser despedaçado, oprimido,calcado, torna quase sempre o homem grande, porque abala e acorda vozesadormecidas” (Brandão, 2001, p. 107). As referidas vozes ascendem da misériacontada no decorrer da obra e eternizam todos aqueles retratados na narrativa.Gabiru consegue, do início ao fim da narrativa, comunicar-nos a força literária doautor de Os Pobres e mostrar, com o auxílio de sua complexa filosofia, que umaobra dedicada aos miseráveis carrega humanidade, essa sim bela, mas tambémcruel.

A grandeza de Gabiru pode ainda ser apontada no seguinte trecho: “Entras na vida e modelam-te; mestres, amigos, livros, amassam-te e modelam-te. Para quê? Para te fazerem feliz – dizem. Deixem-me ser desgraçado à minha vontade!…” (Brandão, 2001, p. 132). Ao pedir que o deixem viver como um miserável, Gabiru critica a existência modelada desde o nascimento do sujeito. Agora compreendemos o motivo da introspecção do personagem:

Ao meter-se no último andar do prédio, o ser se entrega cegamente a uma eterna relação do eu comigo, que esquece a realidade aparente, do marginalizado entregue à solidão, e se dá a conhecer a verdadeira realidade, a frialdade da qual todos os homens participam: a inautenticidade que se apossa do homem sem que ele tenha conhecimento de que está se perdendo (Curanishi; Carvalho, 2015, p. 100).

Em tese, essa tentativa de desfrutar de uma vida individualista, bem apontada pelas autoras acima, seria capaz de fazer Gabiru compreender a totalidade da vida. A verdadeira realidade se encontra, segundo a filosofia do personagem, no exercício de refletir e observar as contradições e preconceitos do homem, uma vez que isso caracterizaria a forma autêntica de vida. Gabiru apenas sabe que está vivo quando imerge na busca pelo real sentido de existir.

3 Considerações finais

Durante o desenvolvimento deste ensaio, buscamos evidenciar a beleza mórbida existente em personagens da obra de Raul Brandão. Para tal feito, primeiro destacamos a força constitutiva do espaço/ambiente para instigar o teor poético da obra; e em seguida, dissertamos sobre a condição de miserabilidade de alguns personagens que, em conjunto com a prosa do autor, permite o afloramento da beleza mórbida.

Conclui-se, portanto, que o romance de Raul Brandão dialoga fundamentalmente com a existência humana. Em primeiro lugar, seus personagens, de nomes diversos e sofrimentos incalculáveis, mostram a complexidade do viver. Se, porventura, alguma sina paira sobre cada vida no mundo, muitas decerto são assoladas pela tragédia e, tendo como base isso, Brandão objetiva discorrer sobre a não existência dessas pessoas; no entanto, ao partir da condição miserável de alguns poucos, alcança o cerne da humanidade.

Em segundo lugar, a filosofia da obra ainda questiona o leitor acerca do realsentido de viver: estamos buscando nosso lugar no mundo ou apenas preenchendomoldes já existentes? Talvez a condição retratada no decorrer da narrativa impliqueo fato de que todos nós somos miseráveis em algum grau, seja em questõesfamiliares, seja em questões espirituais. O viver, considerando essa linha deraciocínio, seria responsável por permitir nossa eterna busca pelo sentido capaz de,esperançosamente, preencher-nos.

De todo modo, sabemos que, através da arte literária, os personagens do romance de Raul Brandão se elevam pela universalidade do discurso construído, de forma que podemos identificar um pouco de Gebo, de Luísa ou de Gabiru nas veredas do cotidiano.

Referências

BRANDÃO, Raul. Os Pobres. Portugal: Projecto Vercial, 2001. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co _obra=4981. Acesso em: 7 jun. 2023.

CURANISHI, Fernanda Tonholi Sasso. Os Pobres, de Raul Brandão: recinto de silêncios. UNILETRAS, Paraná, v. 37, n. 2, p. 225-240, mar. 2015. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/uniletras/article/view/8171. Acesso em: 7 jun. 2023.

CURANISHI, Fernanda Tonholi Sasso; CARVALHO, Alessandra Regina de. Espelhos do eu. A liricização de elementos da narrativa Os Pobres. Revista Eletrônica Interfaces, Paraná, v. 6, n. 2, p. 91-102, dez. 2015. Disponível em: https://revistas.unicentro.br/index.php/revista_interfaces/article/view/3851. Acesso em: 7 jun. 2023.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Editora Ática, 2002.

GUARANHA, Manoel Francisco; GOMES, Álvaro Cardoso; CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Raul Brandão: miserabilismo social, miserabilismo cósmico e transcendência pela linguagem poética. Palimpsesto – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, [S.1.], v. 20, n. 35, p. 406-426, maio 2021. Disponível em: https://www.e- publicacoes.uerj.br/index.php/palimpsesto/article/view/55896. Acesso em: 7 jun. 2023.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.