Encarnar a palavra: reflexões acerca da virtualidade dos corpos das vítimas da ditadura militar de 1964

Vitória Rodrigues Porto

Resumo: Em um mundo cada vez mais virtual, em que relações, sentimentos e memórias são frequentemente mediadas por telas e redes, é preciso reconhecer que, apesar das novas formas de conexão e representação que a virtualidade oferece, ela não substitui uma dimensão essencial da experiência humana: a necessidade visceral da concretude, da presença, da materialidade. É justamente essa tensão entre o virtual e o material que este ensaio busca explorar, mas pensando por outra chave de virtualidade: como um estado de latência, relacionada à ausência física e concreta, que poderíamos chamar de uso corrente do conceito. Originado de uma comunicação apresentada em dezembro de 2024, durante a XV Semana de Letras da UFSC, cujo tema foi “Fabulações Digitais”, o texto propõe uma reflexão sobre os limites do virtual quando confrontado com experiências de dor, perda e luto. Parte-se da importância da materialidade do corpo para as famílias das vítimas da ditadura civil-militar que assolou o Brasil entre 1964 e 1985, destacando como o desaparecimento forçado e o apagamento das marcas da violência operam não apenas como instrumentos de repressão, mas também como estratégias para impor o esquecimento. O esquecimento, nesse contexto, não liberta: aprisiona. Ao negar os corpos, nega-se também a possibilidade de luto e de elaboração coletiva do trauma. Assim, ao evidenciar o valor da materialidade dos corpos dos desaparecidos políticos, este ensaio defende que a reconstrução da presença é, ao mesmo tempo, um gesto de resistência, de justiça e de prevenção contra a repetição da barbárie.

Palavras-chave: Ditadura militar; Materialidade; Trauma coletivo.

Abstract: In an increasingly virtual world, in which relationships, feelings, and memories are often mediated by screens and networks, it is necessary to recognize that, despite the new forms of connection and representation that virtuality offers, it does not replace an essential dimension of human experience: the visceral need for concreteness, presence, and materiality. It is precisely this tension between the virtual and the material that this essay seeks to explore, but thinking about virtuality from another perspective: as a state of latency, related to physical and concrete absence, which we could call the current use of the concept. Originating from a paper presented in December 2024, during the XV Semana de Letras da UFSC, whose theme was “Digital Fabulations,” the text proposes a reflection on the limits of the virtual when confronted with experiences of pain, loss, and mourning. The essay begins with the importance of the materiality of the body for the families of victims of the civil-military dictatorship that ravaged Brazil between 1964 and 1985, highlighting how forced disappearance and the erasure of the marks of violence operate not only as instruments of repression, but also as strategies to impose oblivion. In this context, oblivion does not liberate: it imprisons. By denying the bodies, the possibility of mourning and collective processing of the trauma is also denied. Thus, by highlighting the value of the materiality of the bodies of the politically disappeared, this essay argues that the reconstruction of presence is, at the same time, a gesture of resistance, justice and prevention against the repetition of barbarity.

Keywords: Military dictatorship; Materiality; Collective trauma.

Introdução

Vivemos em um tempo em que as fabulações digitais nos fazem cibernômades, desterritorializados e livres, prometendo-nos vivências, recriações e simulações que reivindicam a capacidade de nos aproximar do conhecimento, da informação, de lugares estritamente cibernéticos. É um movimento geral de virtualização, como diz Lévy (2011), que afeta hoje não apenas a maneira como comunicamos e acessamos informações, mas também afeta os corpos, as dinâmicas econômicas, os padrões coletivos de sensibilidade e a forma como exercemos a inteligência. Embora a digitalização das mensagens e a extensão do ciberespaço sejam fatores centrais nesse processo, a transformação em curso é muito mais ampla e vai além do simples avanço da tecnologia da informação. Em um mundo cada vez mais virtual, em que as relações, os sentimentos e até as memórias são frequentemente mediadas por telas e redes, ainda que a virtualidade nos ofereça novas formas de conexão e representação, há uma dimensão essencial da experiência humana que ela não consegue substituir: a necessidade visceral da concretude, a materialidade.

A relação entre virtualidade e materialidade, assim como real e atual, é uma questão presente na tradição filosófica que remonta a pensadores da Grécia Antiga e que ainda permeia a filosofia atual (c.f. Bergson, 1999; Deleuze, 2006; Lévy, 2011). Aqui, fiz a escolha de assumir o conceito de virtualidade como um estado de latência, relacionada à ausência física e concreta. É o que poderíamos chamar de uso corrente do conceito. Ao pensarmos nos dados virtuais, os dados online, eles não necessariamente são latentes no sentido de se transformarem em algo material. Bom seria se o que acontece na instância do online pudesse ter a plasticidade, a potência ou a virtualidade como pensada na filosofia. Mas tais dados não passam de uma forma de abstração, digamos assim. Todas as fabulações ou promessas trazidas pelo ciberespaço não redundam em alguma transformação efetiva no mundo ou numa política comunitária e esse é o problema. Nesse sentido, podemos dizer que o ciberespaço é o cúmulo da alienação a que se referiu Guy Debord, em A sociedade do espetáculo (1997 [1967]), no sentido de que as relações sociais e a experiência humana são completamente mediadas por imagens e representações espetaculares, sendo uma forma de organização social que transforma tudo em mercadoria, distanciando os sujeitos da realidade concreta e de sua própria capacidade de agir no mundo.

As bases de dados virtuais correspondentes à internet não possuem uma virtualidade que se transformam em responsabilização efetiva no mundo real. De igual modo, simples dados, traduzidos por meros números, não passam de informações coletadas e armazenadas sem implicação material. A materialidade não é apenas uma questão de evidência, mas a chave para o prosseguimento de um processo. A virtualidade e seu estado latente são seus entraves. E é justamente essa tensão entre o virtual e o material que pretendo explorar, sendo a proposta da minha comunicação tecer algumas reflexões iniciais sobre a importância da materialidade do corpo para as famílias das vítimas da ditadura civil-militar, que assolou a sociedade brasileira entre 1964 e 1985, como um modo de processar não somente seu luto, mas elaborar o trauma coletivo do povo brasileiro para evitar que o passado se repita.

A Comissão Nacional da Verdade (doravante CNV), instalada em maio de 2012, foi criada para investigar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988 (o período entre as duas últimas constituições democráticas do Brasil), indicando as circunstâncias e a autoria, com o objetivo de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional (Comissão Nacional da Verdade, 2014). No entanto, muitos foram os esforços das famílias para encontrar informações e restos mortais de seus parentes durante os 27 anos até a instauração da CNV que, inclusive, usou de tais resultados das buscas como fonte.

Ainda hoje, passados 39 anos desde o fim da ditadura, há muitos casos sem solução, sem o mínimo de informação e, a saber, 243 famílias que não sabem onde está localizado seu ente querido, o corpo ou o que sobrou dele. O movimento de procura que as famílias fazem incomoda, perturba, aborrece, pois mancha o discurso oficial da época de que as ações dos militares eram em prol da ordem, do progresso e da proteção à família. Travando um embate com o Estado, que se nega a abrir os arquivos que poderiam ajudar a cicatrizar as feridas abertas, as famílias não conseguem processar suas dores. Mesmo com o esforço dispensado pela CNV, não foi possível desvendar a maior parte dos casos de mortes e de desaparecimento ocorridos durante os anos de 1964 a 1988, porém, as lacunas dessa história poderiam ter sido melhor esclarecidas caso as Forças Armadas tivessem disponibilizado à CNV os arquivos do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), do Centro de Informações do Exército (CIE) e do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA), produzidos durante a ditadura. Ainda, as autoridades militares seguiram o padrão de negar ou de fornecer respostas insuficientes [1], perpetuando uma prática de décadas que impede o esclarecimento das circunstâncias e a identificação dos responsáveis por graves violações de direitos humanos ocorridas na ditadura [2].

Há quem se beneficie com o esquecimento do passado, mas “o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais” (Pollak, 1989, p. 3). As elites simplesmente decidiram que a página da história deve ser virada e estigmatizam as tentativas de estabelecer a verdade e a justiça como meros atos de vingança por parte daqueles que sofreram atos repudiosos na ditadura. Entretanto, o que não percebem é que o corpo virtual, a sua ausência, é um vazio, um estado de eterna suspensão, um estado de expectativa e de angústia permanentes. Há a necessidade de um corpo para que seja possível processar o luto. Nem memoriais, nem museus, nem qualquer tipo de política de memória é capaz de reparar integralmente a dor da perda e da impossibilidade de sepultamento. Os familiares não conseguem superar o passado, pois ele se faz presente. Estão presos em um continuum de tempo e espaço de um passado que não passa. Quando o corpo não se materializa, não se transforma em presença. A busca pelos restos mortais dos desaparecidos políticos não é apenas uma ato de resistência e de cura política, mas uma tentativa de processar o luto individual e o trauma coletivo que as grandes catástrofes trazem consigo, como um modo de buscar respostas para tentar fechar uma história que não tem fim.

A busca pelos corpos e pelo reconhecimento oficial das mortes dos desaparecidos políticos da ditadura militar é fundamental para a justiça e a elaboração do luto das famílias e continuam sendo questões urgentes ainda hoje. A reabertura da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), suspensa no penúltimo dia de mandato do governo Bolsonaro e retomada em julho deste ano, demonstra que ainda há passos importantes a serem dados. A comissão voltou a investigar casos, buscar restos mortais e atualizar certidões de óbito, destacando a importância da materialidade desses documentos para as famílias (que é muito bem ilustrado no filme Ainda Estou Aqui, especificamente na cena em que Eunice sorri ao receber a certidão de óbito de Rubens Paiva). Ainda, no dia 10 de dezembro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução determinando que as certidões das vítimas sejam registradas como mortes violentas, causadas pelo Estado brasileiro, como parte da perseguição a opositores políticos, atendendo às recomendações da CNV e reafirmando o direito à memória e à verdade.

No entanto, mesmo que o trabalho da CNV e de outros órgãos tenham sido fundamentais para o resgate da memória histórica e para a nomeação dos responsáveis por graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar, ele permaneceu na ordem do simbólico, de natureza virtual, sem produzir resultados efetivos materiais. Apesar de suas importantes contribuições, como o levantamento de dados inéditos, o acesso a materiais antes inacessíveis e a fundamentação cuidadosa das condutas investigadas, a CNV, por lei[3], não pôde promover qualquer tipo de responsabilização criminal, civil ou administrativa contra os autores das violações dos direitos humanos. Isso reforça a sensação de impunidade, dificultando a plena elaboração do trauma coletivo. A responsabilização não é apenas uma questão jurídica, mas também uma necessidade ética para que o luto seja elaborado e a justiça histórica seja efetivamente alcançada.

Por causa desse trauma não elaborado, existe hoje um bloqueio entre o presente e o passado, um presente impossível, que deve ser superado para que possamos avançar enquanto sociedade brasileira. Rememorar os traumas históricos e lutar pela reparação das famílias e pela responsabilização significa também uma atenção precisa ao presente, uma vez que não esquecer o passado é agir sobre o presente (Gagnebin, 2006). Há ressurgências do passado mal digerido que constituem antecipações do futuro. Com isso, quero dizer que a memória social jamais pode esquecer ou deixar de reconhecer o próprio passado, ainda que seja permeada por doses incontáveis de horror e barbárie, pois a paz só é possível mediante esse reconhecimento. É necessário construirmos nossa história, por mais cruel que seja, para alcançarmos uma vida realmente democrática sem que o passado paire como um fantasma sobre nós.

Esse passado, que tanto insisto aqui na necessidade de relembrarmos, não pode ser considerado fechado porque tem, para Walter Benjamin (2012), um índice secreto de redenção[4]. Para Benjamin, o passado que clama por sua redenção é identificado com a tradição dos derrotados, ao contrário do que fazem aqueles que ele chama de “historiadores historicistas”, que se recusam a rever a história, a escová-la a contrapelo, consequentemente entrando em empatia com os vencedores. Quando a história oficial ignora ou apaga os horrores cometidos, cria-se uma espécie de não-memória, um esquecimento que perpetua a violência sob a forma de impunidade. Porém, o esquecimento pode constituir a expressão de uma não-consciência, o que significa uma não-assimilação consciente do passado, ou seja, o seu recalcamento. Quando Benjamin analisa a relação entre experiência e vivência em alguns de seus trabalhos[5], ele argumenta, amparado em Freud, que a consciência reprime a experiência, que a consciência não permite que a experiência seja articulada. Pensando na consciência como consciência histórica, ocorre esse mesmo movimento de recalcamento, pois a consciência busca construir uma história que faça desaparecer o traumático da História – movimento que ocorre em todos os discursos oficiais (Nitschack, 2013). Pensemos em exemplos: não é que não tenhamos ouvido nada sobre Auschwitz. Lemos sobre e aprendemos nas escolas: seis milhões de mortos. Mas nomes como Auschwitz eram nomes sem peso, eram como rótulos vazios. E seis milhões de mortos como número puro não significavam nada. Era um número próximo de outros números, próximo de doze milhões de soldados soviéticos mortos, três ou quatro milhões de soldados alemães mortos. Esses números não significavam nada. Não é que não tenhamos ouvido sobre as atrocidades da ditadura. 191 mortos e 243 desaparecidos. Também são apenas números. Assim como Horst Nitschack pensa que o que tem acontecido na Alemanha desde meados de 1960, num trabalho de memória muito lento, é a superação do trauma dos campos de concentração – no sentido de que o trauma faz desaparecer uma experiência ao impedir sua articulação e ao encobertá-la pela consciência que não quer que ela surja, mesmo que tenha que surgir –, penso também que é o que ocorre no Brasil. São operações que estão obviamente destinadas a fazer a história a apagar de sua carne as cicatrizes mais horrendas. Mas o esquecimento, paradoxalmente, não nos liberta do passado; ao contrário, torna-nos reféns da barbárie que ele carrega.

Quero dizer que a imposição do esquecimento, ou melhor, das políticas de esquecimento, como oposto do processo de elaboração do passado, não ajudam a esquecer o passado doloroso, ainda que o silenciam num primeiro momento. Essas políticas preparam o terreno para o cultivo do regresso do passado reprimido, para a repetição e a manutenção da violência. São formas pervertidas de memória que nos impedem de nos libertarmos do passado, negando-nos o acesso a uma vida melhor no presente.

Em 1979, no período de abertura política, foi promulgada a Lei da Anistia, talvez o maior exemplo de política do esquecimento. Tal lei não deu proteção apenas àqueles que lutaram contra a ditadura, mas também aos agentes que torturaram, mataram e promoveram desaparecimentos forçados, sob a justificativa de que esses atos enquadram-se como crimes relacionados a crimes políticos. No entanto, a Lei da Anistia – parte do plano de reconciliação com a família brasileira – nunca foi revista e, embora o Brasil tenha assinado tratados internacionais contra a tortura[6], a jurisdição internacional é desconsiderada quando se trata de responsabilizar os torturadores e assassinos da ditadura, sob a justificativa da reconciliação nacional. Além disso, o Brasil é o único país da América do Sul onde esses torturadores jamais foram julgados ou oficialmente reconhecidos como criminosos. Com isso e por esta ótica, a concepção institucional de anistia pode ajudar na intensificação da sensação comum entre os atuais membros das organizações militares repressivas e os das próprias Forças Armadas de que suas ações foram justificáveis, mesmo quando violaram direitos humanos. A perpetuação da impunidade por esses atos parece fortalecer, ainda hoje, os vínculos corporativos dessas instituições e encorajá-las a manter condutas semelhantes. Assim, enquanto não enfrentarmos nosso passado recente e reconhecermos as inúmeras atrocidades que o compõem, não conseguiremos erradicar a violência que permeia nosso cotidiano, tampouco superar o “estado de exceção” que, lamentavelmente, parece estar ainda vigente.

As políticas de esquecimento reduzem a questão do passado em meros acontecimentos singulares ao invés de aceitá-la como uma herança dolorosa comum a todo corpo social que deve, portanto, ser trabalhada coletivamente. Os filhos dos desaparecidos são oficialmente reconhecidos como órfãos, mas continuam sem saber onde estão os restos mortais de seus pais ou quem foi responsável pelas mortes. Embora os desaparecidos sejam declarados mortos, as circunstâncias dessas mortes permanecem desconhecidas. A luta dos familiares são tratadas como histórias individuais que devem ser resolvidas rapidamente para esquecê-las o quanto antes, dificultando a criação de uma memória coletiva. Os acontecimentos da ditadura nem sequer são considerados fatos. Junto a isso, o desaparecimento de provas e os depoimentos insuficientes mantêm o Brasil estagnado, dificultando o enfrentamento político-jurídico e o processo de construção da memória sobre a ditadura.

Além disso, a transição para a democracia foi marcada por articulações políticas que impediram os testemunhos das vítimas que, incapazes de se tornarem acusadoras, enfrentam a característica recorrente de não conseguirem comprovar os danos sofridos. Como observa Lyotard (1983 apud Seligmann-Silva, 2013)[7], o sujeito que acusa deve possuir meios de provar o dano, mas os perde quando o responsável pelo ato se torna seu juiz, direta ou indiretamente. No contexto brasileiro, a redemocratização foi conduzida por aqueles que perpetraram a violência e por seus cúmplices, o que ainda hoje limita a busca pela verdade e pela justiça. Arquivos seguem fechados e os corpos desaparecidos. Tudo isso faz parte do que podemos chamar de execução de um crime perfeito: a ditadura silenciou testemunhas de forma eficaz, mesmo quando elas estavam presentes publicamente. Esse silenciamento foi sustentado por uma estratégia de surdez jurídica, permitindo que os responsáveis pelos crimes, com o apoio dos meios de comunicação de massa, convencessem a sociedade de que qualquer tentativa de buscar memória, verdade e justiça seria apenas um desejo de vingança. Então qualquer pessoa que tente assumir o papel de acusadora é rapidamente relegada à posição de vítima que insiste em reabrir feridas já consideradas encerradas, de um passado que deve ser considerado passado (Seligmann-Silva, 2013)[8].

No entanto, todo esse movimento que gera o impedimento ao processo de luto é duplo: primeiro, porque as autoridades não realizam uma busca efetiva pelos corpos das vítimas para que possam ser sepultados, além do fato dos arquivos também não serem abertos para que se saiba, sobretudo nos casos em que não se encontra os restos mortais, como essas pessoas foram mortas. Segundo, porque essas estratégias oficiais de esquecimento dificultam o trabalho dos historiadores no Brasil, impedindo que a nação como um todo estabeleça uma relação com o seu passado. Já falei exaustivamente sobre a gravidade do primeiro tópico, por isso quero ressaltar a seriedade do segundo: se pensarmos a historiografia tal como Certeau, pensaremos a escrita da história como um ritual de sepultamento: a escrita funciona como um rito funerário, exorcizando a morte ao integrá-la no discurso. Ela cumpre um papel simbólico, permitindo que uma sociedade se situe, atribuindo-lhe um passado na linguagem e criando, assim, espaço para o presente. Dar um lugar aos mortos não é apenas registrar um passado, mas também reorganizar as possibilidades do presente e projetar o futuro. A narratividade, que dá sepultura aos mortos, torna-se, assim, um elemento essencial para estabelecer um espaço de existência para os vivos.

De acordo com Benjamin (2012), o historiador e o narrador deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo e principalmente quando não conhecemos nada sobre eles (Gagnebin, 2006). Temos, na ficção, um espaço privilegiado para relatar um real traumático que é da ordem do não-narrável, uma vez que podemos emitir dramaticamente a enunciação de vozes que, sem o recurso da ficção, possivelmente permaneceriam para sempre mudas (Cury, 2021). Além disso, a literatura permite encarnar a palavra, tendo uma relação estreita entre o corpo físico e o corpo do texto, como uma reconstrução do corpo simbolicamente no texto. O imperativo da ausência do corpo, ou seja, a negação do direito ao corpo, torna evidente a potência da literatura e da arte. A escrita resiste ao apagamento e reafirma o compromisso com a memória, ainda que uma memória mediada, sustentada não apenas pela lembrança, mas também pela criação e pelo investimento imaginativo, reconstruindo simbolicamente aquilo que foi apagado e devolvendo um lugar de existência às vozes silenciadas. A literatura do trauma, principalmente a de teor testemunhal – que aparenta ser a narrativa posterior às catástrofes –, assume um papel essencial como registro do horror, mesmo quando enfrenta o impasse e a aporia[9] de tentar “dizer o outro”, de narrar a dor e a morte do outro. Mas mais que um simples ritual de sepultamento, de uma lápide simbólica para enterrar os mortos sem corpos, a literatura se mostra como uma arma de memória e de elaboração do trauma. Posso citar como exemplos o livro K, relato de uma busca e outras produções de cunho fictício de Bernardo Kucinski, que evidenciam o processo contínuo e aparentemente infindável de elaboração do trauma quando não se tem o corpo físico, ou seja, quando se trabalha apenas no campo da virtualidade.

Conclusão

Enquanto se tem apenas o campo virtual para fazer fabulações que tentem dar conta de reconstruir novas formas de lidar com um passado permanente e enquanto não são dadas respostas efetivas às famílias e nem são devolvidos os corpos das vítimas para que possam materialmente dar fim à angústia eterna, a literatura do trauma parece ser instrumento fundamental para a reconstrução de sociedades marcadas por catástrofes, permitindo a criação de novos laços políticos e sociais que transcendem as feridas do passado. A ficção é crucial diante da resistência em reconhecer e enfrentar os crimes cometidos na ditadura, bem como diante da consolidação do domínio do poder político sobre o destino dos mortos, negando aos sobreviventes o direito de realizar rituais funerários e de sepultamento, práticas humanas e sagradas que conferem sentido ao luto. Como alertou Benjamin (2012), há o risco de os mortos serem mortos novamente enquanto o inimigo vencer[10], o que se manifesta na recusa do poder – seja ditatorial ou democrático – em buscar os desaparecidos e em responsabilizar os culpados. A ditadura brasileira, além de ser alvo de uma compulsão ao esquecimento, perpetua-se no presente, contaminando a sociedade com a naturalização da violência como um grave sintoma social. Por isso, a luta pela revisão da Lei da Anistia, pela abertura dos arquivos secretos, pela restituição dos restos mortais dos desaparecidos e pelo reconhecimento oficial e social da tortura, mediado por instituições e amplamente debatido pela sociedade civil, é essencial para que possamos elaborar coletivamente o trauma histórico, o que permite superar as marcas do passado e viabilizar a convivência no presente.

[1] C.f. Capítulo 2 do volume I do Relatório Final da CNV.

[2]C.f. Introdução do volume III do Relatório Final da CNV.

[3]Lei nº 12.528/2011, artigo 4º, parágrafo 4º: “§ 4º As atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório” (Brasil, 2011).

[4]“[…] a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da redenção. O mesmo ocorre com a representação do passado, que a história transforma em seu objeto. O passado traz consigo um índice secreto, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que envolveu os nossos antepassados? Não existem, nas vozes a que agora damos ouvidos, ecos de vozes que emudeceram? […] Se assim é, então existe um encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Então, alguém na terra esteve à nossa espera. Se assim é, foi-nos concedida, como a cada geração anterior à nossa, uma frágil força messiânica, para qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente” (Benjamin, 2012, p. 242).

[5] C.f. BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, p. 103-151.

[6] Em 1992, o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, que considera irrevogáveis os crimes de tortura (c.f. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992).

[7] Em La diferencia (1983): “Es característico de la víctima no poder probar que ella sufrió un daño. Un sujeto que acusa [plaignant] es alguien que sufrió un perjuicio y que dispone de medios para probarlo. Él los pierde si, por ejemplo, sucediera que el autor del perjuicio es directamente o indirectamente sujuez” (Lyotard, 1983 apud Seligmann-Silva, 2013, p. 298).

[8]“No caso daqueles que procuraram dar o seu testemunho, não encontraram eco na sociedade. Mesmo quando a publicação veio à tona, esses depoimentos não foram tornados públicos, no sentido de que não entraram na esfera pública. Sem ouvido o testemunho não é dado. Testemunhar é um ato que ocorre no presente. Nosso presente ainda não abriu para esses testemunhos. […] Entre nós é o que acontece, essa apresentação de dano é reprimida ao seu limite máximo, mas quando ocorre, não ocorre a recepção de depoimentos e provas. A mídia (os meios de comunicação e os agentes de opinião) parece fazer um trabalho de destruição desse material: ele é ao mesmo tempo apresentado e anulado. Posicionado como resquício indesejável de um passado que deve ser considerado passado” (Seligmann-Silva, 2013, p. 299-300, tradução nossa).

[9] Diz respeito à dificuldade intransponível de expressar ou de representar completamente a experiência do outro, ou seja, é o ponto-limite da linguagem e da narrativa, que são incapazes de abranger por completo a dimensão do trauma alheio.

[10] Tese VI de Sobre o conceito da história.

Referências

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