O mundo, na década de 1920, despertava ressacado do pós-guerra, em meio a uma crise econômica camuflada por um progresso artificial e com inúmeras fissuras que levaram ao questionamento e à contestação das ordens vigentes.
O socialismo já não era apenas um vislumbre teórico, os Estados Unidos passava a influenciar áreas que antes se alinhavam aos interesses europeus, e politicamente, o liberalismo abria caminho para o fascismo na Itália, e o nazismo na Alemanha.
Os barões do café de São Paulo e os coronéis da maniçoba, da babaçu, e da cera de carnaúba, no Piauí, já sentiam em seus bolsos o impacto da redução das exportações e da queda de preços advindas da crise européia e da normalização dos preços.
O capital do café migrava para as indústrias; as feições das cidades alteravam-se e uma massa de rostos ganhava as ruas, a procura de emprego e diversão.
Nos primeiros anos de 1920, chegaram os primeiros automóveis na cidade de Teresina, e estabeleceu-se a comunicação ferroviária com São Luis – MA, e o telégrafo com o Rio de Janeiro.
Enquanto isso, no cenário político nacional, a política dos coronéis do café-com-leite, entrava em decrepitude, levando à eclosão de movimentos como o Tenentismo e posteriormente a Coluna Prestes.
O anseio renovador também se manifestou nas artes e culminou com a Semana de Arte Moderna em 1922; quando a liberdade lingüística e de representação da cultura brasileira se expressou, por exemplo, na, então, polêmica estética das telas de Tarsila do Amaral.
Nesse mesmo ano, Bertha Lutz liderava a fundação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, sendo o direito ao sufrágio, a principal bandeira de luta.
Em 1921, a Academia Piauiense de Letras, através de decreto especial, admitiu como sócia Amélia de Freitas Bevilaqua, e, como patrona, Luíza Amélia de Queiroz que foi a primeira piauiense a publicar suas poesias e sua identidade nos livros Flores Incultas (1875) e Georgina ou Os Efeitos do Amor (1898).
Amélia de Freitas Bevilaqua certamente pode ser definida como uma mulher de vanguarda, liderou a revista o Lírio (Recife – PE; 1898), influenciando a criação do Jornal Borboleta em Teresina – PI. Ousou muito mais, sendo a primeira mulher a se candidatar à Academia Brasileira de Letras, em 1930, mas não foi aceita porque a maioria dos acadêmicos decidiu que ao se referir a brasileiros, o estatuto da entidade não contemplava as mulheres.
Na década de 1920, Amélia Bevilaqua já era um nome reconhecido por críticos como Sílvio Romero e Araripe Júnior, tendo várias obras publicadas pela Bernard de Fréres, importante editora da época. Ela era casada com o renomado jurista Clóvis Bevilaqua e à frente da Academia Piauiense de Letras estavam seus familiares, o que facilitou seu ingresso na mencionada entidade, contudo sem reduzir-lhe o mérito.
É presumível que a projeção literária alcançada por Amélia de Freitas Bevilaqua tenha influenciado outras mulheres, especialmente as que viviam no Piauí, a publicar seus escritos.
Nesse contexto, ocorre a superação do período lacunoso da escrita feminina piauiense que se seguiu após o fim do primeiro jornal de redação exclusivamente feminina do Piauí, Borboleta (1904 – 1906); e da revista Alvorada (1909 – 1912), onde Maria Amélia Rubim era uma das colaboradoras.
A escrita feminina ressurge camuflada não mais pelas letras iniciais de seus nomes, mas em pseudônimos, importante recurso literário que foi utilizado por várias escritoras, como Charlotte Brontë, e Dionísia Faria da Rocha.
A inglesa Charlotte Brontë utilizou o pseudônimo masculino, Currer Bell, que abandonou com o sucesso do romance Jane Eyre (1848).
O uso do codinome masculino servia para facilitar o rompimento de barreiras de conteúdo da escrita, visto que a opinião masculina era mais aceita socialmente.
No Brasil seguiu-se uma tendência de evidenciamento da feminilidade da autoria em uma posição provocativa, como por exemplo o codinome Nísia Floresta Brasileira, que ocultava Dionísia Faria da Rocha.
No Piauí o uso de codinomes florais foi comum, talvez inspirado em títulos de revistas femininas. Em 1922, Dolores e Magnólia discutiam sem consenso, sobre a criação de uma entidade em prol do voto feminino, como a liderada por Bertha Lutz. Elas publicavam uma espécie de correspondência aberta no jornal Correio do Piauhy.
Vale ressaltar que o Correio do Piauhy se constituía em um espaço de expressão das polêmicas, como a que ficou conhecida, por “o celibato das professoras”, por restringir a participação de mulheres casadas no magistério piauiense, sendo a lei publicada em 1921, no ano seguinte, já foi modificada.
No jornal O Piauhy (1926), surgiu uma espécie de “Sociedade Secreta”, onde, “Accacia”, “Bonina”, “Berenice”, “Violeta”, além de “Camélia”, “Eglantine” e “Martha”, e em 1927, “Esmeralda” e “Sonia”; citavam-se e solicitavam a emissão de opinião das outras. O cotidiano, o casamento, o sufrágio feminino, a emancipação intelectual eram temas abordados nos textos subscritos pelos pseudônimos.
Segundo Magalhães (1998), a função dos pseudônimos era a de proteger as autoras e suas famílias de críticas mal intencionadas.
Observamos que elas se queixavam da maledicência e da inveja, e Berenice, por exemplo, publicava sem o conhecimento do marido, chegando a queixar-se do casamento.
No decorrer da década de 1920 a palavra feminina, especialmente a das normalistas, ganhou afirmação social e espaço nos jornais, o que se percebe através da publicação de discursos proferidos em solenidades na Escola Normal, onde em 1927, surgiu o Jornal A Normalista, redigido por Rosa Cunha e Zilda Santos.
A partir de 1927, os pseudônimos começam a sair de cena. Por que? Talvez porque um dos redatores que utilizava o pseudônimo de Íris, tenha se afastado do Jornal O Piauhy, hipoteticamente, por questão de perseguição política, e necessidade de sobrevivência em outro Estado, o que era comum no Piauí de então. Íris era cúmplice, e conhecedora das identidades das autoras, aliás, condição exigida para a publicação de seus textos.
Percebemos que os polêmicos questionamentos sobre a condição feminina saem de cena junto com os pseudônimos, dando lugar ao discurso hegemônico e socialmente aceito para a mulher, como a missão do magistério, por exemplo.
Em 1928, Julia Gomes Ferreira, Ottilia Silva, Helena Sylvia, e Zenobia Ribeiro da Silva, eram sócias do Cenáculo Piauiense de Letras (1927 – 1932) e publicavam no periódico da entidade, A Revista, onde elas divulgavam prosas de temas bucólicos.
Em 1929, Francisca Monte Negro, com sua poesia romântica e uma veia literária amadurecida, desponta nas páginas da revista Almanaque da Parnaíba (Parnaíba – PI).
Enfim, pretendemos com nossa pesquisa romper o peso dos espinhos do esquecimento que se lançaram durante quase oito décadas sobre a escrita feminina piauiense, do período em questão.
Percebemos que as mulheres piauienses estavam a par do que se discutia no cenário nacional, e procuravam acompanhar com iniciativas semelhantes; fundando jornais e discutindo o papel social da mulher.
A divulgação da escrita feminina se fez no Piauí de forma limitada pela dificuldade de acesso aos veículos de publicação, mas com significativo protagonismo, como o pioneirismo de Luiza Amélia de Queiroz, e a criação do jornal Borboleta com redação exclusivamente feminina.
Outro exemplo do limite social à expressão feminina é o silêncio sobre as questões levantadas pelos movimentos feministas que se estabelece com recuo dos pseudônimos. Por outro lado, esse recuo é marcado por uma visualização da escrita feminina, principalmente, com o protagonismo de normalistas e professoras como Acácia e Francisca Monte Negro.
Verificamos que a escrita feminina da década de 1920 reclama por um espaço dentro das margens da história literária do Piauí, onde o silêncio se fez eco estridente pela insistência em não dizer nada.
Referências
CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. Mulheres Plurais. Teresina: FCMC, 1996.
MAGALHÃES, Maria do Socorro Rios. Literatura Piauiense. Horizontes de Leitura e Crítica Literária (1900 – 1930). Teresina: FCMC 1998.
MENESES, Maia Luiza Mota de. Amélia de Freitas Bevilaqua. Fortaleza: Henriqueta Galeno, 1982.
MORAES, Herculano. Visão Histórica da Literatura Piauiense. Teresina: COMEPI, 4º ed, 1997.
PINHEIRO João. Literatura Piauiense: Escorço Histórico. Teresina: FCMC, 1994.
QUEIROZ, Teresinha. Os Literatos e a República: Clodoaldo Freitas e Higino Cunha e as Tiranias do Tempo. 2ª ed. Teresina: EDUFPI, e João Pessoa: UFPB, 1998.
TELES, Norma. Escritoras, Escritas, Escrituras. IN: DEL PRIORI, Mary. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000.
TITO FILHO, Arimáteia. Governadores do Piauí. 3ª ed. Rio de Janeiro. Artenova, 1978.
VASCONCELOS, Eliane. Honorata Minelvina de Carneiro Mendonça. IN: MUZART, Zanidé Lupinacci. Escrituras Brasileiras do século XIX. Santa Catarina: Mulheres, 2002.
WANDERLEY, Márcia Cavendish. A Voz Embargada. São Paulo: EDUSP, 1996.
Periódicos
ALVORADA (1909)
BORBOLETA (1906)
CORREIO DO PIAUHY (1921)
DIÁRIO DO PIUHY (1912)
O PIAUHY (1926)