O mandarim sob a perspectiva do orientalismo: o (des)conhecimento do Oriente

Adriana C. da Silva, Arlindo Rodrigues, Cristiano de Sales

Até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. Foi ela que, em grande, conduziu a exegese e a interpretação dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de representá-las. O mundo enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao homem. A pintura imitava o espaço. E a representação – fosse ela festa ou saber – se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar.
Michel Foucault – As palavras e as coisas

 Introdução

Este trabalho se propõe a uma leitura da novela O mandarim, de Eça Queirós, sob uma perspectiva do orientalismo, corpo de conhecimentos acerca do Oriente desenvolvidos pelo e para o Ocidente, apresentado por Edward W. Said em Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente.

A novela nos apresenta Teodoro, um lisboeta típico, de “existência bem equilibrada e suave”, que tem a oportunidade de enriquecer com a simples eliminação de um mandarim através de um toque de sineta. Teodoro aceita a oferta, provavelmente feita pelo Diabo, e passa a desfrutar das riquezas herdadas do mandarim até que a figura deste passa a perseguí-lo. Após tentativas várias e fracassadas de se livrar do fantasma do chinês, ele decide que o meio de fazê-lo é viajando ao Oriente e dividindo sua fortuna com os órfãos do falecido mandarim. Sua estadia na China compreende dois momentos, um de tranqüilidade e desfrute das “maravilhas” chinesas, no qual até se traveste de chinês, e outro no qual se depara com a miséria e a violência da população chinesa, à qual ele pretendia beneficiar. Sua empreitada não obtém sucesso e Teodoro volta a Lisboa, onde acaba tendo que se conformar em conviver com a figura do “bojudo” mandarim.

Do ponto de vista do orientalismo, pretendemos demonstrar que a aventura de Teodoro na China pode ser metonimizada como uma empreitada colonial que é mal sucedida em função da falta de um elemento indispensável para a conquista do Oriente que é o conhecimento, ainda que produzido pelo Ocidente, acerca desse Oriente.

Contexto

Antes de partimos para o registro principal desta leitura sobre O mandarim de Eça de Queirós, optamos por um breve passeio pelo contexto histórico que permeou e que, inclusive, é despertado pelo romance do realista português. Os contextos levantados serão de Portugal e China – da segunda metade do século XIX, período da publicação de O mandarim (1880).

O acontecimento de maior relevância neste período envolvendo a China é o enfraquecimento do Império do Meio, mencionado, inclusive, por Teodoro que procurava notícias da China em artigos e jornais.

O que seria o Império do Meio?

No fim do século XIII, quando Marco Polo volta da China para Veneza vem à tona, por intermédio do viajante, a riqueza e o poderio de uma terra que parecia ser mais poderosa que a própria Europa. A verdade é que num período em que a Europa vagarosamente se livrava da Idade das Trevas, a China constituía uma civilização altamente desenvolvida. Tamanho era este requinte que acabaram se considerando o centro do Universo, por isso o Império do Meio. E embora isso só tenha vindo à luz, para o Ocidente, no século XIII, a organização do Império Chinês data do século VI a.C.

Voltando ao século XIX, período decadente para o Império do Meio, vale destacar que os acontecimentos compreendidos a partir de 1850 estão totalmente influenciados pelos acontecimentos da primeira metade do século.

Em 1839 deflagra-se a primeira Guerra do Ópio, onde a China tentava reagir à prática ilegal que estava enfraquecendo sua economia ao mesmo tempo que os ingleses queriam continuar lucrando com este comércio que estava lhes rendendo muito bem. “Os ingleses tomaram várias cidades costeiras. Quando ameaçaram subir o rio Yangtze a Nanquim, os chineses pediram paz”. (Nações …, p.10, 1987)

Com isso a China cedeu Hong Kong para a Inglaterra e comprometeu-se a pagar uma indenização de 21 milhões de dólares, além de abrir mais quatro portos para o comércio exterior.

A vulnerabilidade da China deu oportunidade aos ingleses de novo ataque, desta vez acompanhado pelos franceses.

Porém este segundo ataque insufla um levante popular, liderado por um cristão, Hong Xinchuan., que recrutou vários seguidores camponeses dando origem ao movimento “Taiping Tianguopag” que, embora não aparentasse estar preparado para resistir em campos de batalha, retomou aos poucos o território ocupado pelos europeus, dominando assim o regime interno por 11 anos. Curiosamente o regime Taiping se assemelha muito ao atual regime da China: “Devemos arar juntos e gozar em comum o fruto de nosso trabalho” (Nações …, 1987, p.10)

O regime de Hong é derrotado, não por forças imperiais, mas sim por milícias da província, que, são financiadas pelo interesse ocidental.

Aproveitando-se desta queda, o regime Quing (imperialistas) tratou de empreitar algumas articulações que culminaram na ascensão ao poder de uma antiga concubina, Cixi, que golpeou o Estado e mandou seu sobrinho,  nome mais bem cotado para o cargo máximo, para a prisão.

Superficialmente estes foram os principais fatos que influenciaram no contexto da China no momento em que O mandarim vinha à luz. Para ser mais preciso, o romance  finda entre a queda do regime Taiping e a ascensão da Imperatriz Cixi. Exato momento em que o ocidente volta a interferir no regime interno chinês.

Os mais importantes agentes e meios de cultura no século XIX em Portugal foram, segundo Joel Serrão (1980, pág. 30): “a instrução; o jornalismo; a literatura; o teatro.”

No que concerne à instrução vale ressaltar as “manchas carregadas de iletrados e as pequenas clareiras de alfabetizados” (idem), pois somente filhos de afortunados sentavam em bancos escolares, para formarem-se bacharéis e doutores, no mais a educação era para poucos.

No que diz respeito ao jornalismo, é destacável o crescimento dos diários de notícias, que de 1865 a 1880 passaram de 5.000 exemplares por dia, de tiragem, para 30.000 exemplares, e também o aumento do número de jornais em circulação em Portugal, uma ferramenta indispensável à civilização de um povo. Esta postura foi levada a tal extremo que notou-se uma, relativa, substituição do livro e grossos cartapácios  pelos tablóides diários. Portanto, a influência do jornalismo na formação dos pensamentos portugueses da época eram inquestionáveis.

A literatura, sem sombra de dúvida, representa uma da maiores heranças da cultura portuguesa no que diz respeito, não apenas, à arte, mas também aos contextos históricos, que foram explicitamente descritos nos romances e também na poesia portuguesa. O mesmo se poderia falar do teatro, embora em  menores proporções, pois sua repercussão nacional limitou-se a Lisboa e Porto.

Vale dizer que as peças não serviam diretamente como veículos de reflexão acerca da sociedade lusitana, conforme constatamos nos romances, mas deixavam pistas sobre o que realmente fazia essa sociedade rir ou chorar. Ou seja, poderia servir como parâmetro para melhor entender os desejos e sentimentos dessa sociedade. Exemplo: a peça de Luís de Araujo que ridicularizou os movimentos grevistas da época, provocando muito riso na platéia.

O orientalismo: um modo de resolver o Oriente

Podemos tomar por orientalismo as práticas e os saberes desenvolvidos pelo Ocidente – sobretudo a Europa – acerca do Oriente com o fim de resolvê-lo, de inseri-lo como “parte integrante da civilização e da cultura materiais da Europa” (Said. 1990, p. 14). Ao Ocidente é necessário identificar e estabelecer um sistema relacional com o outro, delimitando de antemão uma hierarquia nesse sistema: o Ocidente como superior e detentor dos direitos de exploração do Oriente, que figura como local de uma realização material sob a gerência do Ocidente. Essa apropriação do Oriente por parte do Ocidente além de repousar em fatores econômicos pode ser vista também como uma necessidade de auto-reconhecimento por parte do Ocidente. O Oriente é o que delimita e serve de padrão (negativo) para que o Ocidente se auto-afirme como a cultura que deve prevalecer como paradigma para o que se deve chamar de cultura.  A prática orientalista foi dominante, principalmente, no século XIX, estando presente, implícita ou explicitamente, na ciência e nas artes, sobretudo na literatura.

O orientalismo: caráter acadêmico e imaginativo

Ao longo de seu desenvolvimento o orientalismo ganhou a adesão de várias ciências, se configurando, também, como uma ciência, uma especialidade que se poderia alcançar e com ela toda uma autoridade e poder oriundos do domínio desse objeto ao mesmo tempo concreto e velado que é o Oriente. Com o orientalismo pôde-se localizar uma divisão explícita entre o Oriente e o Ocidente, o que serviu de ponto de partida para a elaboração de teorias, estudos, pesquisas e até mesmo para a composição de romances, poemas, etc. Desse modo, todo um corpus de conhecimento acerca do Oriente foi desenvolvido para que o Ocidente pudesse incorporá-lo a si, dentro de uma perspectiva ocidental, visando o domínio desse outro através de uma série de categorizações independentes dele; o Ocidente projeta para si todo um conhecimento acerca do Oriente, que só ele pode manusear e que o Oriente, como parte mais fraca, incapaz da auto-gerência, é obrigado a aceitar. Um grande exemplo de projeto de “apropriação” do Oriente é a Description d’Egypte, realizada por Napoleão. Para sua elaboração, todo um corpo de estudiosos foi deslocado para o Egito, que figurou como “laboratório, o teatro do efetivo conhecimento ocidental sobre o Oriente”( Said. 1990, em diversas). A essa operação se segue todo um “mapeamento” dos costumes orientais que vão servir de lastro para a segurança do europeu ao tratar com o oriental. Tudo está previsto. Aos olhos do Ocidente o Oriente figura como um ente estático [1].

O Ocidente congela determinado momento do Oriente, sobretudo a grandeza de seu passado, delegando a si próprio o papel de reestabelecer essa grandeza, que o oriental já não é capaz de sustentar, ou suportar.

O orientalismo também se fez presente, de maneira muito forte, nas manifestações artísticas do Ocidente – que pode ser lido como Europa -, com grande influência sobretudo na literatura. A presença do Oriente na literatura européia se deu de forma direta, através dos autores que travaram contato direto com o Oriente, e indireta, através daqueles que assimilaram os textos orientalistas. O orientalismo era a nota dominante, não faltando artistas que se aventurassem, tendo gabarito ou não, a tratar desse tema [2] .

A maneira de tratar o Oriente pode ser vista sob dois aspectos: um geral e outro particular. Pelo aspecto geral podemos entender todo um conjunto de idéias que se reuniram sob o nome de orientalismo, regidas por um padrão de superioridade européia. O aspecto particular é o que leva em consideração as obras isoladamente, ainda que permeadas por um mesmo tema. Apesar da diferença, esses dois focos agregam um certo risco na maneira de tratar com o Oriente. No primeiro, há o risco de uma distorção que pode ser causada por uma visão generalizante, que acaba por não dar conta do material tratado, e, no segundo, corre-se o risco de uma falta de precisão em relação a esse material pelo foco fechado demais. De todo modo, essas duas perspectivas apresentam-se cômodas e reducionistas, refletindo a intenção ocidental de “resumir” a cultura oriental em compêndios, o que vem ressaltar o caráter estático, já citado, que o Ocidente quer atribuir à cultura do Oriente.

O orientalismo: moeda de “negociação” com o Oriente

A junção entre o sentido acadêmico e imaginativo do orientalismo apresenta uma outra concepção, mais materialmente definida, sobretudo no âmbito político, que é o materialismo como um discurso que autoriza ou desautoriza a leitura do Ocidente. O orientalismo se torna um estilo ocidental de gerência, de manipulação do oriente. Entretanto, o orientalismo acaba se tornando uma norma que não permite outra leitura que não a sua. Desse modo, o europeu se vê “aprisionado” num circulo que gira em torno de uma “verdade absoluta”, a verdade orientalista, que não permite contestações. Apesar disso, não se deve pensar que o ocidental entrou acidentalmente nesse círculo. O discurso orientalista se enraíza na sociedade ocidental, figurando como pano de fundo de uma época, sobretudo pelo papel político que exerce. Não se deve esquecer que o sistema econômico desse período é baseado na exploração de colônias e que as mais produtivas colônias se encontravam no Oriente. As diversas facetas do orientalismo ao mesmo tempo em que se constituem, constituem um discurso orientalista concreto o suficiente para mesmo entre os mais liberais deixar de ser considerado. A prática imperialista necessita de um discurso que a justifique – no caso o discurso orientalista – e o discurso (orientalista) adquire tal independência que necessita (ou impulsiona) da prática imperialista para se completar cada vez mais. Por fim, o que se pode dizer é que em dado momento se tornou impossível pensar a relação Ocidente/Oriente fora do viés orientalista, dada atmosfera tão natural que se tornara o orientalismo.

O mandarim – aventura e fracasso no Oriente

Depois dessa breve explanação acerca do conceito de orientalismo, passaremos agora à leitura d’O mandarim sob a ótica dessa concepção. Nossa meta é tornar evidente possíveis relações entre a narrativa de Eça de Queirós e o orientalismo, já que ambos são contemporâneos e este certamente subsiste à concepção daquela. Em relação a essa noção, podemos notar já no prólogo da novela, que de certo modo justifica a inscursão de um autor realista por veredas, talvez, “fantásticas”, o Oriente  como espaço propício para o sonho, para a fantasia:

PRÓLOGO
1º AMIGO (bebendo conhaque e soda, debaixo de árvores, num terraço, à beira-d’água)
Camarada, por estes calores do Estio que embotam a ponta da sagacidade, repousemos do áspero estudo da Realidade humana… Partamos para os campos do Sonho, vaguear por essas azuladas colinas românticas onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as ruínas do Idealismo… Façamos fantasia!…
2º AMIGO
Mas sobriamente, camarada, parcamente!… E como nas sábias e amáveis alegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma Moralidade discreta…
(COMÉDIA INÉDITA)(p. 5)

Conhecer o oriental

Teodoro era um típico lisboeta de classe baixa, ambicioso e ciente de que jamais poderia realizar suas ambições. Entretanto, essa possibilidade lhe é dada justamente através do contato com o Oriente. Bastaria tocar uma sineta e eliminar um mandarim que vivia distante, na China, e uma riqueza sem igual ficaria ao seu dispor. A própria maneira como o Oriente lhe é apresentado já esboça uma espécie de visão orientalista; o Oriente, ou melhor, a riqueza proveniente do Oriente lhe é apresentada em circunstâncias especiais, revestidas de uma aura de magia e misticismo. E esse é o modo mesmo de um europeu médio encarar o Oriente, como local de exotismos, do estranho, do diferente e, por que não, de maldição, já que, pelo menos  supõe Teodoro, é o Diabo que lhe “apresenta” o Oriente: “Veio-me à idéia de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo todo o meu raciocínio se insurgiu resolutamente contra esta imaginação. Eu nunca acreditei no Diabo – como nunca acreditei em Deus.”(p. 14) É através de um livro obscuro que a China e a proposta de riqueza lhe são apresentadas. Eis um trecho do capítulo intitulado Brechas das almas:

No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha? (p. 11)

Teodoro, por fim, toca a campainha e elimina o mandarim, herdando toda a sua fortuna. É assim que se dá o seu conhecimento do Oriente, um Oriente – o mandarim – desconhecido que é fonte de riqueza e prosperidade para o Ocidente – o próprio Teodoro. Essa apropriação por parte de Teodoro da riqueza do mandarim pode ser lida como a apropriação que milhares de europeus fizeram das riquezas de um outro espaço explorado e do qual tinham um conhecimento, quando muito, superficial.

Entretanto, esse contato entre Oriente e Ocidente não se dá de maneira pacífica. Uma vez tocado e usufruído o Oriente deixa seqüelas que pedem reparo, que exigem justiça. Teodoro se vê então assombrado pela figura do mandarim – que descobre se chamar Ti-Chin-Fu -, o próprio Oriente cobrando sua justificação. Essa ameaça que o Oriente exerce sobre Teodoro tem origem no seu desconhecimento mesmo do Oriente. Desconhecimento num sentido orientalista [3] , que prevê o conhecimento, o “resumo” do Oriente como forma de domínio. É esse desconhecimento que leva Teodoro à China.

Projeto

Foi uma manhã, depois de um destes excessos, à hora em que nas trevas da alma do debochado se ergue uma vaga aurora espiritual – que me nasceu, de repente, a idéia de partir para a China!(p. 44)

Tudo isto, por vezes, me aparecia como um programa indefinido, nevoento, pueril e idealista. Mas já o desejo desta aventura original e épica me envolvera; e eu ia, arrebatado por ele, como uma folha seca numa rajada.(p. 45)

Seu projeto para a China era a redenção com Ti-Chin-Fu através de “favores” prestados à família do mandarim, que Teodoro imaginava se encontrar na miséria. A pretensão de Teodoro de levar “sua” fortuna à China, embora soasse como um ato de desprendimento, tinha um fundo egoísta, seu objetivo era remover de sua vida o fantasma de Ti-Chin-Fu (e por que não, do Oriente?), bem como usufruir de mais uma aventura que o dinheiro poderia lhe proporcionar. Embora estivesse disposto a compartilhar sua fortuna com a família do mandarim, Teodoro não tenciona desfazer-se dessa fortuna; antes, pretende legitimá-la:

 

Partiria para Pequim; descobriria a família de Ti Chin-Fu; esposando uma das senhoras, legitimaria a posse dos meus milhões; daria àquela casa letrada a antiga prosperidade; celebraria funerais pomposos ao Mandarim, para lhe acalmar o espírito irritado; iria pelas províncias miseráveis fazendo colossais distribuições de arroz; e, obtendo do imperador o botão de cristal de mandarim, acesso fácil a um bacharel, substituir-me-ia à personalidade desaparecida de Ti-Chin-Fu – e poderia assim restituir legalmente à sua pátria, se não a autoridade do seu saber, ao menos a força do seu oiro. (p.45)

O que seria essa pretensão senão a necessidade européia de se impor, de ampliar domínios. Não bastava restituir a prosperidade à família de Ti-Chin-Fu, era necessário substitui-lo, tomar-lhe o lugar, afinal, ele não era um bacharel? Não poderia, então, ser mandarim? Não tinha em si toda a autoridade que um europeu tem em relação a um oriental e que não deve nunca deixar de ser explícita? Não possuía, na condição de europeu, a autoridade para “restaurar uma região de sua barbárie presente, à sua antiga grandeza clássica; instruir o Oriente (para seu próprio benefício) nas maneiras do moderno Ocidente” (Said. 1990, p.94)

E quais os meios de que dispunha o bacharel para tal tarefa? Qual o conhecimento concreto acerca da China que Teodoro possuía?

– O meu prezado hóspede sabe o chinês? – perguntou-me de repente, fixando em mim a pupila sagaz.
– Sei duas palavras importantes, general: «mandarim» e «chá».
Ele passou a sua mão de fortes cordoveias sobre a medonha cicatriz que lhe sulcava a calva:
– «Mandarim», meu amigo, não é uma palavra chinesa, e ninguém a entende na China. É o nome que no século XVI os navegadores do seu país, do seu belo país… (p.50)

Como detentor de uma parcela da China, Teodoro passa a usufruir dos gozos que esse atributo pode lhe proporcionar. Não é sem motivo o apoio que recebe, a bajulação com a qual é tratado, a disposição dos que o cercam para ajudá-lo a cumprir seu objetivo. Entretanto, uma vez que “apropriara-se” da China a idéia de repartir sua fortuna com os herdeiros de Ti-Chin-Fu vai esvaindo-se da mente desse “turista”, que não hesita em desfrutar dos prazeres e regalias que a sua posição lhe dão direito. Chega mesmo a travestir-se de chinês:

A minha face amarelada, o meu longo bigode pendente favoreciam a caracterização – e quando na manhã seguinte, depois de arranjado pelos costureiros engenhosos da Rua Chá-Cua, entrei na sala forrada de seda escarlate, onde já rebrilhavam as porcelanas do almoço sobre a mesa de xarão negro, – a generala recuou como à aparição do próprio Tong-Tché, Filho do Céu! (p. 54)

A sensação de domínio do Oriente passa a afigurar-se plena em Teodoro, deixando à mostra toda uma concepção do modo de ser oriental. Que maneira melhor de dominar senão o conhecimento das mais profundas sensações que o dominado pode ter?

E, pelas misteriosas correlações com que o vestuário influencia o carácter, eu sentia já em mim ideias, instintos chineses: – o amor dos cerimoniais meticulosos, o respeito burocrático das fórmulas, uma ponta de cepticismo letrado; e também um abjecto terror do imperador, o ódio ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da tradição, o gosto das coisas açucaradas… Alma e ventre eram já totalmente um mandarim. Não disse à generala: – Bonjour, Madame. – Dobrado ao meio, fazendo girar os punhos fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o chin-chin… (p. 54-55)

No entanto, será que esse “conhecimento” que Teodoro julgava possuir seria realmente suficiente para exercer seu poder sobre a China?

Crise

…ele chega ao Oriente primeiramente como um europeu ou um americano, e depois como indivíduo. E ser um europeu ou um americano nessa situação não é de modo algum um fato inerte. Queria e quer dizer estar consciente, ainda que vagamente, de se fazer parte de uma potência com interesses definidos no Oriente, e, mais importante, de que se pertence a uma parte da terra com uma história definida de envolvimento no Oriente quase desde os tempos de Homero. ( Said. p.23)

Chega o momento de Teodoro levar a cabo seu projeto inicial para a China. Após uma longa temporada a família Ti-Chin-Fu é localizada. Ainda que contrariado e levado mais pelas circunstâncias, ele parte em busca da redenção, da legitimação de sua fortuna. Entretanto, o fantasma do mandarim já não o assolava, Teodoro já havia “conquistado” a China, já pertencia à realidade chinesa, tinha encontrado tais gozos na China que suas intenções iniciais permaneciam distantes, quase apagadas. A notícia da localização da família do mandarim lhe provoca um choque e ele parte então para a sua missão, distribuir uma parte de sua riqueza a um bando de miseráveis nos confins da China, mas “porque não ficaria ali, naquele amável Pequim, comendo nenúfares em calda de açúcar, abandonando-me às sonolências amorosas do Repouso Discreto, e pelas tardes azuladas, dando o meu passeio pelo braço do bom Meriskoff, nos terraços de jaspe da Purificação ou sob os cedros da Templo do Céu?…”(p. 70)

Mas não ficou. Foi para o interior do país, onde experimentou uma outra faceta da China: agressiva e hostil, incapaz de reconhecer a superioridade de sua pessoa e as “boas intenções” que o levaram até ali. Foi saqueado, agredido e rechaçado pelo povo que pretendia beneficiar. O dinheiro com o qual pretendia se firmar perante esse povo foi insuficiente para satisfazê-lo, o “diabo estrangeiro” deveria ser destruído. Todo o seu poder cai por terra diante da miséria que o cercou. Obrigado a fugir, vai encontrar auxílio junto aos padres lazaristas, numa espécie de espaço europeu, onde pôde enfim respirar os ares de sua terra.

O repúdio popular às suas intenções vai trazer à tona mais uma vez o seu orgulho europeu, fazendo aflorar as “fronteiras” inconciliáveis entre o Oriente e o Ocidente:

Quando me punha a pensar que viera desde os confins do Ocidente para trazer a uma província chinesa a abundância dos meus milhões, e que apenas lá chegara fora logo saqueado, apedrejado, frechado – enchia-me um rancor surdo, gastava horas agitando-me pelo quarto, a revolver coisas feras que tentaria para me vingar do Império do Meio. (p. 83)

Teodoro é tomado pelo sentimento de decepção diante da incapacidade de compreender o Oriente. Todo o seu saber sobre o Oriente, baseado num lugar comum de informações, se mostra insuficiente para lidar com a realidade chinesa. Não é o poder, advindo da fortuna, que fracassa e sim o (des)conhecimento acerca da China que leva Teodoro ao fracasso. Antes, é a incapacidade de compreender a revolta dos orientais diante de sua “superioridade” que faz com que ele retroceda em suas intenções. O despreparo de Teodoro é  o responsável pelo seu fracasso na “conquista” da China. Ao contrário de Napoleão, ele não estabelece diretrizes para sua atuação, um roteiro de conquistas, inclusive precedido de leituras que o preparassem para o “confronto” com o oriental. Em suma, o seu conhecimento generalizado e insuficiente sobre a China é a fratura primeira na sua máquina de conquista.

Retomando o conceito de orientalismo, como um corpus de conhecimentos acerca do Oriente produzidos pelo e para o Ocidente, com o fim de simplificação desse Oriente para um modo de operar ocidental, poderíamos dizer que Teodoro – como orientalista, ou guiado pelos preceitos gerais do orientalismo – fracassa ao se deparar com uma situação incontrolável, insubordinável aos padrões europeus e eurocêntricos. E, no final, o Oriente apenas não comprovara a premissa geral de bárbaro e inferior.

Mas o Oriente é algo com o qual se tem que aprender a conviver, a aceitar, em suas diferenças, em sua inferioridade. Que é o que Teodoro vai fazer ao retornar a Portugal. Mesmo tentando reassumir a pobreza como forma de redenção, o Oriente permanece, a figura bojuda de Ti-Chin-Fu, continua a assombrá-lo. Não há como renegar o Ocidente. Principalmente as riquezas que o Oriente provê ao Ocidente. Por mais que tente se livrar da figura do mandarim, do Oriente, Teodoro não tenciona largar a fortuna do mandarim. A sua condição de ocidental, de europeu, justifica, em última instância, essa apropriação pois “de maneira bastante constante, o orientalismo depende, para sua estratégia, dessa superioridade posicional flexível, que põe o ocidental em toda uma série de relações possíveis com o Oriente, sem que ele perca jamais a vantagem relativa. E por que deveria ter sido diferente, especialmente durante o período de extraordinária ascendência européia, do final da Renascença até o presente?”(Said, p. 19)

Referências

NAÇÕES DO MUNDO: CHINA. Rio de Janeiro: Cidade cultural, 1987.

QUEIRÓS, Eça. O mandarim. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura)

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

SERRÃO, Joel. Temas oitocentistas. Lisboa: 1980. Volume I.

 

[1] “De um certo modo, as limitações do orientalismo são, […], aquelas decorrentes de se desconsiderar, essencializar e desnudar a humanidade de outra cultura, outro povo ou região geográfica. Mas o orientalismo foi além disso: considera o Oriente como algo cuja existência não apenas está a vista, mas permaneceu fixa no tempo e no espaço para o Ocidente. O sucesso descritivo e textual do orientalismo foi tão impressionante que períodos inteiros da história cultural, política e social do Oriente são considerados como meras respostas ao Ocidente. Este é o agente e o Oriente é o reagente passivo.” (Said, p. 117)

[2] “… o orientalismo impôs os seus limites sobre o pensamento a respeito do Oriente. Até os escritores mais imaginativos de uma época, homens como Flaubert, Nerval ou Scott, eram coagidos no que podiam experimentar do Oriente, ou no que podiam falar sobre ele.” (Said, p.54)

[3] “O conhecimento do Oriente, posto que gerado da força, em um certo sentido cria o Oriente, o oriental e seu mundo.” (Said. p. 50) “O orientalismo, portanto, é um conhecimento do Oriente que põe as coisas orientais na aula, no tribunal, prisão ou manual para ser examinado, estudado, julgado, disciplinado ou governado.” (Idem. p. 51)