Os paradoxos no “Sermão do Mandato”

Jessé Gabriel da Silva

O APARTAR-SE DE CRISTO SEGUNDO VIEIRA

O amor forte separou Cristo dos homens. Com mesma força, porém força que cativa e não aparta, trata Vieira desse episódio bíblico que se poderia chamar de mistério da fé. Discorrendo sobre um momento tão profundo e reflexivo, que foi o tempo de Jesus se despedir dos homens para ir ao Pai, Vieira cria novas imagens a partir do texto bíblico e leva o leitor/ouvinte a repensar a narrativa dos evangelhos. João, o discípulo amado de Jesus que repousara no peito do mestre na santa ceia, foi de onde partiu Antônio Vieira para produzir esse belíssimo sermão. De João, o autor segue a dialogar com vários textos bíblicos, contudo sempre retornando ao texto do discípulo a quem Jesus amava.

O amor que aparta. Um tema antitético em sua essência. Quando diz o pregador que “a mesma razão de duvidar nos dará a razão da dúvida”, a presença dos termos opostos reproduzirá a antítese durante todo o sermão. Nesse inicial “xadrez de palavras” pode-se perceber o quão antitético é esse foi esse ilustre prosador. No Sermão da Sexagésima, Vieira exclama: “Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz?” Paz que Vieira não deu a palavra nenhuma.

Estas são algumas ligeiras considerações, que serão retomadas adiante. O presente ensaio pretende apenas esboçar, ainda que mediocremente, certos aspectos ponderáveis do discurso de Antônio Vieira no Sermão do Mandato. Fruto do engenho desse intelectual tão ilustre que foi das letras luso-brasileiras, o sermão não só retoma imagens análogas da relação de Cristo com os homens na Bíblia, como estabelece novas imagens. Partindo sempre das “causas intensas que produzem efeitos contrários”, procurar-se-á estabelecer relações entre o amor de Cristo e o extremo do paradoxo.

O AMOR PARADOXO

Um amor tão grande, capaz de separar. Um extremo que gera antítese: esse é o ponto em que Vieira se fixa e onde ele segue até o final do sermão. Paradoxo que, apesar de o autor negá-lo como paradoxo, permanece firme durante o texto inteiro. E a narrativa prossegue circularmente, partindo sempre do texto do evangelista João. Assim, em contínuo diálogo com o versículo bíblico, o ilustre prosador de quando em vez escorrega a outras passagens da Bíblia, sempre a fim de persuadir sobre o extremo do amor de Cristo para com os homens. Extremo que é representado pelo ausentar-se de Jesus Cristo, como se o ato de Cristo ir ao Pai fosse reduzido a um apartar-se dos homens. Deste modo, percebe-se por quais caminhos o grande orador conduz sua leitura e interpretação do evangelho. E tudo se volta a essa teimosia barroca que os contrários têm em permanecer juntos.

“Intérprete fantasioso dos textos bíblicos”, no dizer de Bosi, Vieira parece construir uma leitura antitética de João 13:1: “Ora, antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que era sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.” Outros leitores talvez fixassem sua atenção nos próximos versículos, onde se dê, quiçá, o clímax desta passagem do evangelho. Antônio Vieira, contudo, sobre certa influência do pensamento barroco, vê aí o maior exemplo de amor extremo. Paradoxo que, no momento em que afirma o prosador barroco que o amor pelos homens pedia que Cristo ficasse, contradiz a própria Bíblia. Isso porque, desse jeito, Jesus estaria desmentindo o seu mandamento (Mateus 22:37).

Através da leitura, o discurso focaliza-se nos contrários, sendo o “texto saudoso e suavíssimo” o fulcro do Sermão do Mandato. Contrários extraídos da Bíblia através do pregador constituem toda a “fineza” que foi Cristo, amando os homens, separar-se deles. O que aparentemente poderia apenas restringir o amor a um mero extremo, de fato, trata-se de uma criação de Vieira sobre as Escrituras, que prova não só o talento desse magnífico jesuíta, como mostra que não há um ponto final na Bíblia, um amém; não obstante o livro do apocalipse Ter condenado àqueles que ajuntassem palavras à profecia (Apocalipse 22:18).

Essas novas imagens são levadas pelo pregador aos ouvintes com tamanha eloqüência que fica impossível não se deixar convencer. Esse artífice de palavras, de tão sutil, persuade até com falácias. Quando o semeador tem como semente a palavra de Deus, quando o semeador sabe fazer uso dessa semente em outros solos com a perícia semelhante à de seu Senhor, o esperado não pode ser senão em maravilhoso jardim, indiscutivelmente encantador. Quão grande é esse amor, para florescer tanto? Só Vieira o pode dizer. Trabalho magnífico que parece abstrair o leitor, tirá-lo do enredo que o levaria á Santa Ceia para repensar a relação que o Senhor teve com seus discípulos na terra; ainda que ambos os caminhos se tornariam aos últimos momentos de Jesus na terra.

De certa forma, esse paradoxo parece ser conduzido ao extremo. Vieira vai até a relação de causa e efeito para explicar tal afeto. De onde ele afirma que “As causas excessivas produzem efeitos contrários. E é justamente explicando tal fato que se vai encontrar aqueles pares de palavras tão queridos dos autores cultistas: “gritar” e “emudecer”; “ver” e “cega”; “alenta”, “vivifica” e “mata”. Tudo isso em função de explicar que o amor excessivo separa. Continuando com os pares de palavras, o autor segue até os Cantares de Salomão, no versículo que diz: “porque o amor é forte como a morte.” Trecho que dialoga bem com o “xadrez de palavras” do barroco. Havendo nesse intertexto recursos suficientes para que a retórica de Vieira conduza o leitor/ouvinte a uma interpretação paradoxal do amor de Cristo, quando a visão do mesmo amor será um contrário com ares de mistério.

Outras passagens bíblicas serão evocadas ao longo da pregação. Sempre confrontando os paradoxos, sempre trazendo à tona novas leituras, sempre focalizando a relação amor/paradoxo. Voltando-se ao Gênesis para encontrar Cristo na figura de Adão. Nisso, encontrar-se-á uma nova contradição: o homem que veio tirar o pecado do mundo em seu amor assemelha-se àquele que no mundo introduziu o pecado. Assim, quando o amor divino parece-se com o humano, compreende-se uma certa humanização do divino; o que vai buscar outra contradição em Coríntios 15:40 que diferencia corpos celestes (divindade) de corpos terrestres (homem). Mas Cristo na figura de Adão já remete o leitor/ouvinte ao choque de opostos. Adão, o meio de introdução do pecado no mundo; Cristo, a expiação. Fato que chama a atenção, certamente tal associação não poderia Ter sido feita ao acaso, apesar de a Bíblia em muitos trechos já ter comparado as duas personagens.

Também personagem do Gênesis, Jacó é da mesma forma comparado a Jesus, porém a um Jesus amante. Contudo, agora não se trata mais de contradição evidente: Jacó simboliza Cristo partindo dos céus para encontrar sua igreja na terra. Por isso “Jesus amante”. Todavia salienta Vieira que Jacó não deixou a esposa por amor da esposa, como o fez Jesus Cristo. Aqui, é que se vai encontrar os opostos. No início, Cristo se assemelha a Jacó; no final, difere. É como se esse diferir simbolizasse o separar-se Cristo dos homens. Eis tudo se volta a essa tão sacra separação. É possível entender, nessas relações, o uno de que fala Bosi em História Concisa da Literatura Brasileira: “o uno subordina, por sua vez, os vários aspectos a um sentido”. O que deveras acontece no Sermão do Mandato, onde todas as analogias e relações intertextuais, voltam-se para o amor de Cristo.

É percebida uma ligeira circularidade no Sermão do Mandato. Ao discorrer sobre o amor de Cristo, há sempre um retorno ao texto “suavíssimo”de João. O próprio autor afirma: “o verdadeiro entendimento desta amorosa implicação será a matéria deste discurso…” Nesse trecho do sermão, Vieira anuncia o seu ponto de apoio, o qual estará presente durante todo o texto. O próprio versículo, que é matéria do sermão, será inúmeras vezes repetido, reiterando sempre a intenção. Contudo, Sabe-se que esse constante repetição nada mais é do que um recurso da oralidade, pois que tal sermão fora pregado na Igreja de Santo Antonio dos Portugueses, no ano de1670.

A mesma cicularidade, que fará o leitor/ouvinte cair sempre no texto bíblico supracitado, relaciona-se com o que Vieira pregava no Sermão da Sexagésima. Um só assunto deve o sermão considerar, nada mais que uma matéria. Por isso é que o texto apresentará essa “unidade” da qual trata Bosi em sua obra mencionada acima. Essa unidade, sobrevoa o espaço para retornar posteriormente ao mesmo ponto, esse magnífico buscar os céus estando no chão, não só como propriedade do barroco se afigura, mas também como ótimo recurso para manter o público atento. Unidade que faz com que o pregador percorra as amplas campinas da palavra e volte ao paradoxo do amor extremo.

E este é o extremo do amor de Cristo pelos homens: tornar-se paradoxo, ainda que Vieira o negue. Porém o ser, não sendo, não é de alguma forma paradoxo? E assim prossegue o amor que contradiz a própria Escritura; amor que transcende o amor do Pai pelo mundo, é o amor pela Esposa. Esposa que era de todo interesse de Vieira enaltecê-la, sendo ele clérigo… Mas, ora, ser o amor do filho maior que o do Pai? Talvez fosse tudo explicado no Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus, onde a maior glória de um pai e ver o filho superá-lo. Compreender esses contrários parece a maior “fineza”. Extremo, não paradoxo, é esse paradoxo extremo.

Há, ainda, uma distinção entre amor forte e unitivo. Esta distinção cristaliza-se no trecho em que o amor unitivo é caracterizado pela vinda se Cristo à terra, enquanto que simboliza o amor forte o apartamento do mesmo Cristo. Assim, faz-se novamente o “xadrez de palavras” sobre a oposição unitivo/forte. Oposição que se dá também no plano das idéias; sabendo que os efeitos, cujas causas são os dois tipos de amor, encontram-se igualmente em relação de oposição. Amor forte que, nos Cantares de Salomão, à morte é comparado. A morte que, é separação, será posta em outro “xadrez” quando associada ao adjetivo “unitivo”. Destarte, o paradoxo está oculto e ao próprio amor subjaz esse jogo. Portanto o amor, sendo paradoxo, gera paradoxo.

Como buscou-se mostrar, nas diversas relações antitéticas que faz o discurso sob a figura do extremo do amor de Cristo para com a humanidade, o mesmo amor extremo é o paradoxo. Simbolizando essa figura em sua essência, o amor não só gera, como é um choque de imagens e/ou idéias opostas. E isso acontece no decorrer do sermão nas várias analogias e, ainda, intertextualidades estabelecidas pelo autor, onde sobeja essa figura tão querida pelos poetas ee prosadores barrocos. O amor é o símbolo supremo, como supremo sentimento e signo de mais alto valor, dessa relação intensa dos contrários figurando juntos. De tal forma, o amor forte se fundirá com o extremo paradoxo, encontrando-se o maior exagero, de caráter barroco, com a maior fineza de Jesus Cristo Nosso Senhor.

O CÁLICE DA AUSÊNCIA

A partir de certo trecho da parte V do sermão, outro episódio bíblico sustentará o clima intenso dos extremos da paixão de Cristo: é o episódio do horto, onde o Senhor Jesus agoniza. Vieira expõe ao leitor, nesse trecho, um Cristo agonizante; todavia mais agonizante pelo ausentar-se do que pelo morrer. Um Cristo tomado se paixão, angustiado por não querer deixar seus discípulos. Cristo amante, mas agora de um amor unitivo, que teme o ausentar-se. Ausência que e refutada por ele, quando diz: “Meu Pai: Se possível, passe de mim este cálice!” (Mateus 26:39) Tal cálice funciona como o signo da agonia de Cristo no Sermão do Mandato.

“Assi apartado, ou arrancado, começa a orar ao Padre.” Aí começa também a agonia. Cristo, na iminência de sua separação dos homens, põe-se a orar e pedir ao Pai que lhe afaste o cálice. Mas qual cálice? Qual era sua agonia? Seu temor? A morte? Mas não previa a sua ressurreição em João 2:19? Não reergueria o templo em três dias? Ia para o Pai e nisso não há problema. O que lhe afligia, Vieira explica quando trata do trecho que diz: “calix iste”: “aquele iste é distintivo, é demonstrativo , e é relativo. Enquanto distintivo, distingue um cálice do outro: enquanto demonstrativo, demonstra o cálice presente, e não futuro: enquanto relativo, refere-se ao que fica dito imediatamente antes.”

O “cálice presente” é o cálice da ausência. Cálice da agonia de Cristo. Contudo, onde está agora a maior fineza de Cristo? Momentos antes de ser preso, Jesus pede ao Pai que lhe seja afastada a agonia da ausência. Figurava ali o amor unitivo. Cristo, oscilando entre o amor unitivo e o amor forte, obra do acaso? Por acaso também teria Vieira escolhido tal episódio? Aqui parece se encontrar uma grande fineza: Cristo rejeita a ausência –eis o amor unitivo; tem sede no calvário —eis o amor forte. E tudo retorna a esse uno que se faz presente em todo o texto. Vieira subordina a parte ao todo, aspecto bem característico do barroco, segundo Wölfflin.
Reaparecendo, nesse episódio, a oposição unitivo/forte, o paradoxo do amor de Cristo se torna ainda mais forte. “Porque o amor é forte como a morte” (Cant.8:6). Nesse texto bíblico está a explicação do fato de Jesus ter sede no calvário. Tinha sede de morrer, porque era amor forte; rejeitava o cálice da ausência, porque era unitivo. Amor indiscutivelmente extremo esse da paixão de Nosso Senhor, que se transubstancia no cálice que estava na mão do Senhor. Ora, Vieira questiona em seu ilustre sermão: “Que cálices eram logo estes na morte, e paixão de Cristo, tão unidos, que compunham um só cálice, e tão distintos, que se dividiam em dous?” Não seria, pois, esse antitético cálice uma outra representação do amor paradoxo? Aqui é percebido por que Cristo agoniza somente no calvário.

Outra leitura a ser feita é encontrar, na figura de Cristo agonizante, a imagem do homem, desequilibrado e inseguro nas suas veredas. Insegurança que se poderia admitir provir de seu amor. Um amor dividido, personificação da dúvida. Tendo incorporado esse amor antitétco, a impressão que temos e de um Cristo desesperado imerso na sua dúvida. Porém, Vieira não acrescenta a parte do evangelho que diz: “Todavia, não seja como eu quero, e, sim, como tu queres.” Teria o pregador esquecido este detalhe por acaso?

Esquecendo tal momento de racionalidade de Jesus, Vieira subordina Cristo ao amor paradoxal, desprezando a missão que o mesmo tinha, que era a de ir ao Pai. A presença desse forte símbolo ressurge outra vez no episódio do calvário. Jesus padece no madeiro, traspassado de chagas, e morre sem agonizar? Sem agonizar? Quem não se lembra da famosa sentença: “Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?” Novamente aparece a já mencionada subordinação. Novamente o paradoxo se sobressai.

Eis a maior fineza de Vieira, esse magnífico xadrez onde o amor é o tabuleiro e as peças a um só tempo. Amor bebido nos cálices do horto, amor paradoxalmente inebriante que confunde os sentidos até de um Deus encarnado. Assim, Vieira transcria este belíssimo episódio sob o signo da antítese. Sempre retornando ao “texto suavíssimo” , “nunca assaz entendido”. E quão fantástico é esse entendimento da parte de Vieira, que deslumbra tanto com seus contrastes. Cristo como passivo a tal amor, é o que se conclui este tão singelo raciocínio. Amor como figura maior persistente na pregação de Vieira.

SOB O SIGNO DA ANTÍTESE

Um sentimento ambíguo, um constante choque de palavras e idéias, esta é a síntese de toda essa circularidade barroca que compõe o Sermão do Mandato. Vôos admiráveis fez esse verdadeiro mago da palavra chamado Antônio Vieira. O amor simbolizando o paradoxo, o paradoxo extremo. Cristo figurando aquele que incorpora o próprio paradoxo, por muitas vezes deixa de ser o filho unigênito de Deus para se transformar o que traz o signo consigo.
Como no calvário foi crucificado, Vieira lhe impõe uma nova cruz: o paradoxo. Esse novo estigma de Jesus, parece tomar grandes proporções e se tornar mais forte do que tudo. O xadrez parece ininterrupto. Assim como os fariseus levantaram um Cristo sob o signo da cruz, Vieira vestiu no Mestre o extremo amor como símbolo de paradoxo. Visão espetacular de da relação Deus/homem.

Retornando ao texto “saudoso e suavíssimo”, Vieira encontra inúmeras relações com os demais textos bíblicos, que se voltam todos ao texto do discípulo querido do Senhor Jesus. Esse mesmo, o mais próximo, é que tratará da ausência de Cristo. Impressionante é perceber como, em Vieira, há paradoxo até na escolha dos textos bíblicos. Por que João? Por que não Mateus, Marcos, ou Lucas? Certamente não haveria outro evangelista mais capaz de gerar paradoxo no discurso de Vieira. Eis aqui o motivo daquele texto suavíssimo.
Por fim, este ensaio buscou mostrar as várias relações estabelecidas entre o amor de Jesus Cristo, significando paradoxo no discurso de Vieira, e a forte presença de tal amor ao longo do sermão. Presença forte desse choque de idéias opostas que, abandonando o signo da cruz, apresenta o cristianismo sob novo signo: o signo da antítese.

REFERÊNCIAS

A BÍBLIA SAGRADA. trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil,1969.

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1969

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997.

VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. Reprodução facsimilada. São Paulo: Editora Anchieta, s.d.