Augusto dos Anjos: o escarro e o espasmo

Tiago Hermano Breunig

Augusto dos Anjos se situa na saída do século XIX – cuja razão perdeu sua razão: o racionalismo característico do materialismo, do mecanicismo e do positivismo que atravessaram o século XIX conflui à negação de si, da alma e de Deus, ostentando todo o pessimismo daquele século – e deparado com ele, o homem moderno, abandonado a si mesmo, cuja condição a ciência positivista pretendia explicar através do meio, do clima e da raça aos quais ele estaria subordinado.

Assim a ciência – dualizada pela capacidade de libertar e instaurar verdades, destituída de culpa, uma vez que não pretende responder as questões da filosofia, que só ganha espaço no positivismo no que serve ao progresso da ciência – serve de ensejo aos anseios humanos, aliando-se à política.

Esta forma híbrida de ciência e política é criticada por Nietzsche – filósofo alemão contemporâneo a Augusto dos Anjos, tendo tido por este dedicado um soneto – pelo debate inibitório causado entre ambas virtudes, de modo que fiquem impossibilitadas de se desenvolverem:

o que em tais mestiços adoece e degenera mais profundamente é a vontade: eles não conhecem mais a independência no decidir, o ousado prazer no querer – duvidam até em sonhos da “liberdade de vontade”. (…) Para se engalar e enganar, essa doença dispõe dos mais belos trajes; e a maior parte, por exemplo, daquilo que hoje se expõe nas vitrines como “objetividade”, “cientificidade”, “l’art pour l’art”, “conhecimento puro, livre da vontade”, é apenas ceticismo ornamentado e paralisia da vontade [1]

Nietzsche presentifica os conceitos científicos condizentes com a política de homogeneização que pretenderiam explicar a condição humana segundo o meio, o clima e a raça – não que ele estivesse criticando o ato de subjugação que reside nessa política, se compreende que “a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração” [2], mas que a moral necessite sua justificativa, fundamentando-se na ciência – ao perguntar: “Não parece haver, entre os moralistas, um ódio à floresta virgem e aos trópicos? E uma necessidade de desacreditar a todo custo o ‘homem tropical’, seja como doença e degeneração do homem, seja como inferno e automartírio próprio?” [3], questionando os processos de homogeneização que varreram o mundo ocidental a partir do século XIX, equivalentes aos nacionalismos exacerbados do início do século XX pautados pelos princípios do positivismo, visando o progresso, personificados em Hitler, Mussolini, Vargas, Salazar…, representantes do cume de um processo iniciado com a República.

Augusto dos Anjos, quando absorve o vocabulário científico – e às vezes filosófico – para corrompê-lo, ou ao menos explicitar sua corrupção, refere-se ao cientificismo positivista e determinista europeu – daí a recorrente comparação a Euclides da Cunha, como efetuada por Gilberto Freyre num ensaio sobre o poeta [4]. É neste sentido que são significados os seus versos íntimos: “a mão que afaga é a mesma que apedreja”, “apedreja essa mão vil que te afaga”, “escarra nessa boca que te beija!” [5]– em que o poeta efetua a síntese do seu processo de criação poética, o escarro da ciência positiva, referindo-se às palavras proferidas pela própria boca, que constituem, por sua vez, o cerne da degeneração e depreciação de si – geograficamente situadas.

Apenas no século XX o Brasil começa a pensar sobre si mesmo à parte da ciência européia que nos destinaria ao fracasso em decorrência de nossa constituição referente à meio, clima e raça, e esta, mestiça, atribuída agora de um fator positivo – figurando como precursor o próprio Gilberto Freyre – como que contribuindo com a análise de Euclides da Cunha, que relega a característica ao homem mestiço não de um fraco, como queria a ciência, mas antes de tudo um forte [6].

Em Nietzsche já se evidencia a contradição das propriedades do discurso científico que impulsionariam as políticas de homogeneização – as mesmas que impulsionaram o exército brasileiro sobre Canudos – desditas, nele, como desdizem as últimas duas linhas d’ Os Sertões de Euclides da Cunha as conclusões desta ciência [7]:

O homem de uma era de dissolução e de mestiçagem confusa, que leva no corpo uma herança de ascendência múltipla, isto é, impulsos e escalas de valor mais que contraditórios, que lutam entre si e raramente se dão trégua – esse homem das culturas tardias e das luzes veladas será, por via de regra, um homem bem fraco: sua aspiração mais profunda é que um dia tenha fim a guerra que ele é(…) – Mas se numa tal natureza a contradição e a guerra atuam como atração e estímulo de vida mais –, e se, além dos sua impulsos fortes e inconciliáveis, também foi herdada e cultivada uma autêntica mestria e sutileza na guerra consigo, ou seja, no autodomínio e engano de si: então surgem esses homens espantosamente incompreensíveis e inimagináveis, esses enigmas predestinados à vitória e à sedução (…). [8]

Nietzsche prevê as conseqüências deste processo – confirmadas pela história do século XX: mas se a ideologia por trás dele corresponde às aparências na Europa, aqui descrevem erroneamente a realidade brasileira, refletindo esta incompatibilidade em Euclides da Cunha. A mesma perplexidade pode ser atribuída a Augusto dos Anjos: paradoxalmente deslumbrado com a ciência proveniente do Iluminismo, cujos pensadores influenciaram o positivismo de Augusto Comte, que institui civilizações mais avançadas que outras em decorrência do seu desenvolvimento científico, justificando a subjugação dessas outras civilizações menos avançadas:

Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo. [9]

Augusto dos Anjos não perfaz o trajeto de Nietzsche – mas o de Euclides da Cunha, sem chegar ainda às conclusões da nossa sociologia. Augusto foi mais pessimista, como só poderia sê-lo um perscrutador do seu tempo e espaço – aqui sim sua poesia converge à filosofia de Nietzsche.

Enfim, Augusto – observador arguto – olha para a ciência positivista e vê para além dela a morte: a morte como decorrência quase óbvia do racionalismo daquele século que veria ao seu findar as duas grandes guerras como conseqüência das implicações políticas de suas ideologias e, no seu limite, a bomba:

Tal a finalidade dos estames! –
Mas ele viverá, rotos os liames
Dessa estranguladora lei que aperta
Todos os agregados perecíveis,
Nas eterizações indefiníveis
Da energia intra-atômica liberta! [10]

Era a estrangulação, sem retumbância,
Da multimilenária dissonância
Que as harmonias siderais invade…

Era, numa alta aclamação, sem gritos,
O regresso dos átomos aflitos
Ao descanso perpétuo da Unidade! [11]

Seus versos predicam mesmo a morte proveniente da fissão nuclear e da fusão atômica, o espasmo e, enfim, o silêncio.

Referências

ANJOS, Augusto dos. Obra Completa: volume único. org. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: para uma filosofia do futuro. 2ª ed. tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

 

1. Friedrich Nietzsche. Alem do bem e do mal, p. 113.

2.Idem. p. 171.

3. Idem. p. 95-96.

4. Cf. Nota sobre Augusto dos Anjos in Augusto dos Anjos. Obra completa.

5. Augusto dos Anjos. Obra completa. p. 280.

6. Cf. Euclides da Cunha. Os Sertões. p. 91.

7. Cf. Idem. p. 435.

8. Friedrich Nietzsche. Op. cit. p. 98.

9. Augusto dos Anjos. Op. cit. p. 286.

10. Idem. p. 196.

11. Idem. p. 196.