Traços estilísticos em Os que bebem como os cães, de Assis Brasil

Irisvelto da Silva, Messias Santana, Rafael da Silva

O piauiense Francisco de Assis Almeida Brasil nasceu em 18 de fevereiro de 1932, na cidade de Parnaíba. A partir de 1943, passou a morar em Fortaleza, onde concluiu seus estudos e, posteriormente, contribuiu com a imprensa local. Seu primeiro texto literário foi o apólogo O poste e a palmeira, escrito aos quinze anos, baseado num texto análogo de Machado de Assis. Seu primeiro livro foi Verdes mares bravios, publicado em 1953. Em 1949, viaja para o Rio de Janeiro, forma-se em Jornalismo pela PUC-RJ e começa a trabalhar como crítico literário no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Contribuiu com o Jornal de Letras, O Globo, Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa e Revista O Cruzeiro. A consagração como escritor só veio quando ganhou o seu primeiro Prêmio Nacional Walmap em 1965, com a obra Beira Rio, Beira Vida. A partir dessa obra, dedica-se inteiramente à literatura, publicando ensaios, ficção e crítica literária. Em 1975, ganha novamente o Walmap, com o romance Os que bebem como os cães.

Assis Brasil, atualmente membro da Academia Piauiense de Letras, pode ser considerado como integrante da terceira geração modernista (Geração de 45). Sua produção literária apresenta duas vertentes: uma conservadora, que mantém os mesmos estilos literários da tradição de não-ruptura e uma progressista, que busca um certo ruptura com o conservadorismo, como ocorre em Beira Rio, Beira Vida (1965), Os que bebem como os cães (1975) e Deus, o Sol, Shakespeare (1978). As duas últimas, juntamente com O aprendizado da Morte (1976) e Os crocodilos (1980), constituem o chamado Ciclo do terror (conjunto de obras que tratam de questões ideológicas, da violência e da natureza destrutiva do homem).

No período da Ditadura Militar, decorrente do Golpe de 64, foram instauradas algumas regras, dentre as quais a proibição de reuniões com mais de três pessoas e o discurso político nas universidades, além de censura à imprensa e substituição da Constituição pelos Atos Institucionais. Nesse contexto, Assis Brasil publicou a maioria de suas obras.

O romance Os que bebem como os cães, por exemplo, narra a estória de Jeremias, um preso que sofreu lavagem cerebral e perdeu a memória. Sem saber o motivo de sua prisão, tenta se adaptar à rotina torturante do cárcere, em condições subumanas. Algemado dentro de uma cela, com as mãos para trás, recebe uma sopa com droga, para que não tenha consciência do tempo. Para tomá-la, abaixa-se e sorve-a, igualmente a um cão. No pátio da cadeia, local do banho, observa o comportamento dos outros presos, que gritam os nomes de seus entes queridos e, por esta ousadia, são punidos pelos guardas com mordaça. Com o passar do tempo, os presos cometem suicídio esfregando os pulsos num muro da prisão, acontecimentos que fazem com que, aos poucos, o personagem se lembre de sua identidade e de sua vida antes de ser preso.

A obra é uma prosa de ficção dramática, narrada, em 3ª pessoa, por um narrador extradiegético. A fricção do romance com o real é máxima, pois os fatos descritos aconteceram na época da Ditadura Militar, ou seja, a realidade apresentada foi iconizada pelo autor.

Os capítulos da obra são A celaO pátio e O grito, que se repetem sucessivamente. Todos estão interligados, dando uma idéia de circularidade, mas a narrativa não regride, ou seja, quando se inicia um novo capítulo A cela, após os acontecimentos do capítulo O grito, a personagem retorna apenas à cela, mas vive outras experiências. É possível observar que, no final de alguns capítulos, o autor já insere o início do capítulo seguinte. Desse modo, percebe-se que se trata de uma direção discursiva linear na macronarrativa e uma direção discursiva não-linear espiral na micronarrativa.

A participação da recepção pode ser considerada média ou máxima, uma vez que a obra é, aqui aberta, ali semi-aberta. Provavelmente, muitos leitores a deixaram de ler por causa do ritmo lento da narrativa: o dia-a-dia de um preso desmemoriado que tenta relembrar seu passado. A repetição dos capítulos (A cela, O pátio, O grito), acentua esse ritmo lento, sob um clima tenso, massacrante. Os leitores sofrem com o personagem, ficam tristes, sentem nojo e torcem por ele; daí que, ao se envolverem com a obra, tentam compreendê-la, de modo que o livro mantém uma relação dialógica e polêmica com a recepção. Na verdade, na época em que a obra foi escrita (1975), a temática era ainda mais polêmica, pois o país vivia a Ditadura Militar. Sob este aspecto, o romance pode ser encarado como uma denúncia contra o poder constituído e a favor das vítimas. “O homem – diz Assis Brasil – não pode, não tem o direito de violentar o seu semelhante”.

Não há, no texto, uma quantidade excessiva de adereços, o que caracteriza o estilo sóbrio. A narrativa é constantemente interrompida pelas digressões da personagem e do próprio narrador, marcando um ritmo lento e uma concentração da narrativa digressiva dissertativa, uma vez que narrador e personagem dissertam e refletem sobre os acontecimentos. Há, assim, predominância de atitude discursiva linear e a coloquialidade pode ser classificada como média.

Uma das principais marcas estilísticas encontradas na obra foi a iteração, como podemos observar nos seguintes trechos:

A escuridão é ampla e envolvente (p. 05)
A escuridão é ampla e envolvente (p. 10)

(…) a natureza é sábia. É sábia e cruel. (p. 07)

(…) Que a natureza sábia o adaptasse a não ter medo… (p. 08)

Voltou a deitar-se de lado, apoiado sobre um dos ombros: era a posição mais correta, para um descanso parcial. A natureza sábia e cruel voltava a agir: a escuridão, antes ampla e envolvente, começava a ficar algo cinza, algo esmaecida… (p. 11)

A porta grande não foi aberta, apenas uma portinhola em baixo, onde deixava algo parecido com um prato. A natureza sábia e cruel lhe transmitiu logo um cheiro diferente – um cheiro cálido, mas não identificador. (p. 12)

E tentou gritar de qualquer maneira: a natureza sábia e cruel lhe impunha tal gesto. (p. 15)

(…) E o que tinha a fazer era esperar que a escuridão fosse cedendo aos poucos. (p. 15-16)

E esperou novamente que lhe trouxessem o prato, para que, como um cão, sorvesse a coisa quente e estranha. Os sentidos já pareciam viver em função disso: a mãe natureza, cruel e sábia. (p. 17)

Assim, concluiu: era noite, e como o frio apertava na espinha agora, concluiu: era madrugada, e como o cheiro do ar entrava em suas narinas, (…) concluiu: a manhã estava próxima, e como o estômago reclamava o vazio estertor, concluiu: faz mais de vinte e quatro horas que não me alimento. (p. 06)

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(…) Levanta os olhos: a fileira dos homens esfarrapados do outro lado, a água, o barulho da água. O banho. UMA VEZ POR MÊS.
Uma vez por mês.
Assustou-se. O vizinho de fila lhe dera a informação: o banho no pátio era apenas uma vez por mês. (p. 17)

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– Vivam, homens.
E mais alto:
– Vivam, homens, pelo amor de Deus!
(…) ouviu que alguém repetia suas palavras, com o mesmo ímpeto e coragem:
– Vivam, homens! (p. 67)

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(…) Jeremias, você não pode se lamentar pelos outros.

Não pode, não pode, não pode. (p. 105)

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As botas, as botas lá fora, como um reflexo, um relâmpago.
(…)
As botas, as botas de ferro. Mais próximas, mais próximas, na porta da cela. (p. 105)

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Os guardas se aproximavam: há um fervor em seus sentidos, uma ânsia, uma angústia.
Que venham, que venham do inferno, não sou um judas para entregar meus companheiros. Seguirei com eles, estou do lado deles. Que venham, que venham. (p. 135).

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Também pode ser observada a marcante presença de metáforas pleonásticas:

(…) O que os outros faziam, ela fazia: como não podia entrar dentro do tanque, salpicava a água das torneiras no corpo. (p.13)

E levantou a cabeça resoluto, vivaz, feliz e gritou um grito de seu âmago, como se fosse a última coisa que faria:
– Vivam, homens. (p. 67)

Agora era esperar a volta ao pátio, encarar o muro de frente… (p. 100)

Sabia que dormira por algum tempo – mais palavras, mais perguntas, sonhara um sonho entrecortado de coisas reais e abstratas. (p. 134)

(…) Sorrir um sorriso silencioso e cúmplice. (p. 137)

Outros itens estilísticos que aparecem com grande freqüência na obra são as expressões metafóricas e as marcas tipológicas:

A porta, a claridade que entra, os soldados que não podiam ser encarados, a presença da farda amarela, as botas luzidias, o metal das vozes:
– Tirem as algemas.
– Coloquem o esparadrapo. (p. 17)

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ESPERANÇA – a palavra que o conduzia a viver e a esperar novamente pelo pátio? Sim, trinta dias se passaram, trinta dias dentro de uma única palavra. (..) (p. 24)

[…]
ESPERANÇA – e a eternidade poderia escorrer, se esvair, pelos meandros mágicos desta simples palavra.
E esperou. Não cinco minutos, ou dez, ou meia hora, mas apenas o hiato de sua percepção num determinado momento no pátio. (p. 25)

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Já se habituara ao sabor da sopa, e isso queria dizer TEMPO. Já identificara o sal, o óleo, um sabor azedo, um sabor acre. E isso queria dizer TEMPO. A boca já não estava grossa nem pastosa e os lábios adquiriam a resistência do couro para suportar o vai-e-vem da mordaça. (p. 29)

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O esparadrapo foi arrancado de sua boca e ele tentou logo gritar a palavra Deus, como para consolidar em sua mente – a sua aceitação, após longos anos no deserto, era difícil e cruel – mas foi impedido pela mão pesada que mergulhou sua cabeça em baixo da torneira.
– Ninguém fala.
A voz não tinha cor, mas penetrava na carne e feria. (p. 40)

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As pálpebras pesavam, a cabeça por vezes caía sobre o peito.
Não posso dormir agora.
Só mais um instante.
E então soube que os hiatos da memória foram causados pelo sono, pelo sono natural ou do entorpecimento – Queria pensar que isso fosse a realidade. TINHA QUE SER A REALIDADE. (p. 58-59)

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Estava pronto para voltar à cela. E se lembrou do ratinho companheiro, a presença pequenina e confortadora.
Deus já terá voltado? – pensou e sorriu no aperto da mordaça. Ele me espera para que eu reparta com a sua fome a minha refeição de condenado. Mas troquei o alimento pelo grito, pelo desabafo – ele compreenderá isso? (p. 68)

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Tenho que buscar o valor mais vivo da palavra Dulce: esperança, mas de que? Para que? Um nome de mulher – a menina de tranças perdida no tempo, nos escaninhos do cérebro. Dulce, minha mãe, Matilde, que outros nomes posso ter na memória? (p. 81)

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Recebeu um empurrão para o tanque e sua cabeça foi mergulhada novamente sob a ducha.
Veio a ordem, direta como um tiro:
– Faça o seu trabalho. (p. 87)

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Em toda a obra foi localizada apenas uma gíria, num trecho do capítulo O pátio, no momento em que Jeremias foi tirado da cela para tomar banho:

O esparadrapo foi arrancado de sua boca e ele tentou logo gritar a palavra Deus, como para consolidar em sua mente – a sua aceitação, após longos anos no deserto, era difícil e cruel – mas foi impedido pela mão pesada que mergulhou sua cabeça em baixo da torneira.
– Ninguém fala.
A voz não tinha cor, mas penetrava na carne e feria.
– Quem falar perde a bóia.
O barulho da água ensurdecia. (p. 40)

Também foram identificadas apenas duas quase recriações vocabulares. Num trecho de A cela, Jeremias tinha gritado no pátio e foi ameaçado de ficar sem comida:

(…) Mais do que nunca teria de esperar, beber aquela sopa, esperar, sorver como um cão o alimento, caminhar pela cela, esperar pelo ratinho, medir o tamanho das paredes – não veria mais a luz do pátio? Não sentiria na pele o ar fresco? A água enganadora e reconfortante?
Mas não podia ficar sem tomar banho, sem fazer suas necessidades no pátio, e mais cedo ou mais tarde os guardas apareceriam.
Quando? Em que dia? Em que horas?
Não podia saber porque ainda não conseguira medir o seu tempo, ou seu não-tempo, a sua não-vida. (p. 69).

Os vocábulos não-tempo e não-vida foram elaborados pelo autor, a partir de duas palavras já existentes, para expressar a incerteza de Jeremias sobre o tempo em que estava preso e sua revolta contra a vida na prisão, que não considerava vida. Ademais, os nomes de personagens na obra parecem escolhidos conscientemente pelo autor:

Tenho que buscar o valor mais vivo da palavra Dulce: esperança, mais de que? Para que? Um nome de mulher – a menina de tranças perdida no tempo, nos escaninhos do cérebro. Dulce, minha mãe, Matilde, que outros nomes posso ter na memória? (p. 81).

Dulce é um nome de origem latina e significa doce. Jeremias queria um conforto para si, queria alguém doce para lhe ajudar. Já Matilde é de origem alemã e significa guerreira. Jeremias também queira lutar contra a condição na qual se encontrava.

Nunca ouvira com tanta nitidez a voz de sua mulher. Ela estava ali na cela ao seu lado, apontando-lhe o dedo acusador – para que se importar com os outros se já vivemos com tanta dificuldade? Jeremias, você não pode se lamentar pelos outros.
Não pode, não pode, não pode.
Sim, não posso sem tirar de mim mesmo. (p. 105)

Neste trecho, Jeremias se lembra, na cela, de que sua mulher lhe aconselhava a não se importar com os outros. Jeremias é um nome hebraico e significa enviado por Deus. É, também, uma referência ao profeta Jeremias, que, depois de ver a cidade de Jerusalém ser destruída, escreveu o livro das Lamentações.

Uma outra observação importante diz respeito à utilização, muito freqüente, do discurso indireto livre, no qual o narrador une seu discurso à fala ou ao pensamento da personagem, sem travessão ou qualquer marca para identificar uma mudança. Neste trecho, retirado do capítulo A cela, Jeremias reflete sobre o que aconteceu com os outros presos no pátio. No último parágrafo, a fala de Jeremias e também do narrador:

Os homens já deviam ter pensado em tudo isso e desistido – todos haviam lutado para saber quantos dias passavam na cela e quantas vezes iam ao pátio. E foram desistindo – o grito fora a esperança inicial, os nomes amados, o nome de Deus – o último recurso da paciente e severa acomodação.
Eles haviam desistido, resistido, e por fim se acomodaram naquela relação harmoniosa de palavras gritadas, palavras subjetivas.
Eu preciso ir além, pois o homem se revolta porque não se submete. (p. 47)

Outra marca estilística detectada foi a fragmentação da linguagem:

A faina dos homens tem que ser seguida, não pela sua glória – ele já cansaram de glórias e medalhas, egoísmos e vaidades, pedestais de bronzes solitários.
Resta-lhes uma única arma:
o sangue que redime do passado vago
do presente conturbado
do futuro incerto
Por quanto tempo ainda os homens se sacrificariam perante aquele muro, pétreo e frio? (p. 117).

Neste trecho, Jeremias pensa sobre o sacrifício dos companheiros. A partir do segundo parágrafo, o autor escreve enunciados fragmentados, um abaixo do outro, representando o drama dos presos.

Hoje é dia de meu aniversário, tenho quarenta e dois anos, me chamo Jeremias, sou professor de literatura, tenho uma mulher e uma filha, minha mãe ainda está viva, a casa em que moramos é alugada, tenho um jardim onde cultivo flores, hortências, margaridas, tenho um quintal cheio de mangueiras, todo dia saio de casa pela manhã e vou para a escola, não tenho carro, pego o ônibus das nove horas – volte cedo hoje, meu filho, é seu aniversário, Tudinha vai fazer um bolo, ela já está uma moça,
mas por que agitou os estudantes?
Hoje é meu aniversário, tenho quarenta e dois anos, estou ficando velho, faço exercícios pela manhã e à noite, nada de exagero, olhe o coração, vou ao ginásio uma vez por semana, Tudinha gosta de nadar, ela está uma moça, uma bela moça, no fim do ano levo os alunos para o ar livre, Sócrates fazia assim,
não queremos saber de seus amigos ou de sua família. Diga de uma vez: agitou ou não os estudantes? (p. 132)

Jeremias se lembra de sua identidade e de sua vida, do motivo de sua prisão e da lavagem cerebral que sofreu. Segundo os especialistas, uma pessoa que perde parcialmente a memória recorda-se aos poucos de sua identidade: as lembranças ressurgem, desconexas e paulatinas. O autor utilizou adequadamente da fragmentação da linguagem para representar a recuperação da memória da personagem.

iteração, a metáfora e a fragmentação da linguagem são, portanto, as principais marcas estilísticas no romance Os que bebem como os cães. O texto é bastante objetivo, denuncia a violência do homem contra o homem e sensibiliza o leitor para o drama do personagem, sem deixar de lado o caráter experimentalista e inovador na dimensão estrutural e na exploração da dimensão psicológica dos seres de ficção, envolvendo, em alto grau de complexidade, o tempo e o espaço narrativos.

Referências

BRASIL, Assis. A volta do herói. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1983.

______. Beira rio, beira vida. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1975.

______. Deus, o Sol, Shakespeare. Rio de Janeiro: Nórdica, 1978.

______. O aprendizado da morte. Rio de Janeiro: Nórdica, 1978.

MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à Estilística. 3. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.

NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1952. v. II.

SAMPAIO, Airton. Curso de Estilística da Língua Portuguesa. Teresina: UFPI, 2003/1. Anotações de aula.

SANTOS, Luís Alberto Brandão. Sujeito, tempo e espaço ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da Literatura. 6. ed. São Paulo: Ática, 1987.