Um diálogo com “Raízes do Brasil”

Mariana Santos Resenes

O livro O Ateneu, de Raul Pompéia, editado em 1888, é considerado pela crítica um dos melhores romances de nosso século XIX. Por tratar de características que estavam e estão tão arraigadas em nossa sociedade, ele cria paralelos com a importante obra histórico-sociológica de Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasil. O presente trabalho procurará, então, explorar alguns desses paralelos, tais como: a crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social, o patriarcalismo e o personalismo.

Um sério problema que atinge o indivíduo que nasce e se cria em uma estrutura familiar forte é sua crise de adaptação ao mundo exterior, o qual se faz hostil a ele, uma vez que se vê desprotegido, desamparado, ou seja, completamente despreparado a viver em um ambiente onde a rivalidade, a individualidade, a competição, o egoísmo e a ambição (valores anti-familiares) reinam. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, os âmbitos familiares excessivamente estreitos são condenados por circunscreverem demasiado os horizontes da criança dentro da paisagem doméstica:

“Ainda hoje persistem, aqui e ali, mesmo nas grandes cidades, algumas dessas famílias “retardatárias”, concentradas em si mesmas e obedientes ao velho ideal que mandava educarem-se os filhos apenas para o círculo doméstico” (HOLANDA, 1995, p.143).

O personagem Sérgio d’O Ateneu passa por semelhante situação: em um dado momento, é retirado do seu aconchego placentário e inserido numa realidade adversa. Esse constrate é exposto logo na primeira página do livro:

“(…) Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamnete na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente, do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso.” (POMPÉIA, 1996, p.13).

Outra patente correlação entre as obras citadas é o patriarcalismo: caráter dominante no povo brasileiro, amplamente explorado pelo historiador Sérgio Buarque. Esse autor defende que tal elemento teve sua origem no meio rural, em que o poder se concentrava de maneira absoluta no senhor de engenho, a autoridade máxima. Depois, por se acreditar que o patriarcalismo fornecia o melhor modelo de coesão e harmonia do corpo social, ele foi transposto ao meio urbano quando prosperou o crescimento das cidades. “Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens.” ( HOLANDA, 1995, p. 82)

Na obra literária, o patriacalismo está bastante bem retratado na figura de Aristarco, dono e diretor do internato, onde o menino Sérgio passa dois anos de sua vida. Tudo se fazia consoante a vontade e o arbítrio caprichoso e despótico do “patriarca”. Há falas do mesmo que comprovam isso: “Demais, o meu colégio é apenas maior que o lar doméstico”; “(…) para os rapazes dignos eu sou um pai!” (POMPÉIA, 1996, p. 24, 28); bem como relatos do menino: “A cada entrada, o diretor (…) fazia girar a cadeira e soltava interjeições de acolhimento, oferecendo episcopalmente a mão peluda ao beijo contrito e filial dos meninos” (POMPÉIA, 1996, p.25). Esse caráter de dominação e subordinação entre governantes e governados, monarcas e súditos tem vínculo com o próprio vocábulo família ao se buscar a sua etmologia, ou seja, analisando-o diacronicamente:

(…) a própria palavra “família”, derivava de famulus, se acha estreitamente vinculada à idéia de escravidão, e em que mesmo os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi. (HOLANDA, 1995, p.81)

A terceira ligação (e talvez a mais marcante) entre Raízes do Brasil e O Ateneu a ser aqui trabalhada e já citada anteriormente consiste no personalismo exacerbado.

A ‘inteireza’, o ‘ser’, a ‘gravidade’, o ‘termo honrado’, o ‘proceder sisudo’, esses atributos que ornam e engrandecem o nobre escudo, na expressão do poeta português Francisco Rodrigues Lobo, representam virtudes essencialmente inativas, pelas quais o indivíduo se reflete sobre si mesmo (…).” (HOLANDA, 1995, p. 38)

Na obra de Raul Pompéia, o acentuado personalismo evidencia-se nas personagens Ângela, Melica e, sobretudo, em Aristarco. Nesse último, o fato de deter uma posição de relevo – diretor do internato – propicia um sentimento de superioridade, radicalizado por ele numa intensa autoadmiração, autocontemplação bem narcisitas:

“(…) à sacada, Aristarco mostrava-se. Na expressão olímpica do semblante transpirava a beatitude de um gozo superior. Gozava a sensação prévia, no banho luminoso, da imortalidade a que se julgava consagrado. (…) não era simplesmente a alma do seu instituto, era a própria feição palpável, (…) idêntico com as letras que luziam em auréola sobre a cabeça. As letras, de ouro; ele, imortal: única diferença. (…) E vinha-lhe um êxtase de vaidade. (…) Quantos afagos de bajulação à efígie de um homem eminente! (…) A suprema correção, a envergadura imponente no talhe, a majestade dominadora da presença, fundia-se tudo numa mesma umbigada de empáfia. Os rapazes olhavam com o prazer do soldado que se orgulha do comandante. O mestre, invejável, desempenado, brilhante para a festa, como se houvesse engolido um armador. (POMPÉIA, 1996, p. 22, 111, 151)

O egocentrismo ultra-exagerado de Aristarco chega ao cômico quando, em uma de suas nebulosas aulas de astronomia, mesmo percebendo o erro de indicar o Cruzeiro do Sul apontando para o norte, não o retifica, receoso de comprometer sua autoridade (sua imagem). Outra passagem que conota o ridículo, o risível é a exposição do busto de Aristarco: em princípio, um seu fervoroso desejo; mas, posteriormente, no decorrer da homenagem, uma ameaça ao prestígio de sua pessoa, uma vez que, ao seu ver, deslocava-lhe o foco.

Da identificação do homem com a sua estátua é bem curto o passo que leva ao fetiche; por isso, Aristaro, ao perceber que os louros iriam cingir o monumento, mas não a sua própria testa, desespera-se contra o busto, aquele rival de bronze imperecível, que o transcenderá. “Que vale a estátua se não somos nós?” (BOSI, 1988, p.39)

Melica, a filha de Aristarco, parece herdar o personalismo do pai: valendo-se de sua posição hierárquica e do próprio sexo, vangloriava-se ante os rapazes do internato, pondo-se em um pedestal e tratando-os com extremo desdém. Cria, como nas palavras de Mário de Andrade, “um falso mundo de orgulho e de adoração de si mesma” (ANDRADE, 1974, p. 175).

Já em Ângela, empregada da casa de Aristarco, o personalismo dava-se por outra vertente: a moça, visando destacar-se, realçar-se, tentava uma maior aproximação, um mais estreito contato com os internos.

Gostava de arregaçar as mangas para mostrar os braços, (…).
Consciente da formosura, Ângela abusava. (…) Convidava à adoração (…) Depois, à contemplação confiada; (…). Dominava então pela oferta abusiva, de repente; abatia-se à derradeira humilhação, para atrair de baixo, como as vertigens. (POMPÉIA, 1996, p.76, 77) (…) uma sensualidade talvez um bocado preocupada demais em se manifestar sensual. (ANDRADE, 1974, p.175)

Diante do que já foi exposto, não há dúvidas quanto ao Ateneu ser um microcosmo da sociedade ou, no discurso de Dr. Cláudio (um professor da instituição) “não é o internato que faz a sociedade; o internato a reflete. A corrupção que ali viceja, vai de fora”. (POMPÉIA, 1996, p. 145). Logo na primeira frase do livro, isso fica bem demonstrado ao leitor com a fala do pai de Sérgio à porta do Ateneu, advertendo-o: “Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta”. (POMPÉIA, 1996, p. 13). De fato, a luta faz-se árdua para o menino que se encontra envolto em preconceitos, segregações sócio-econômicas, competitividade, massacre dos mais fracos pelos mais fortes, hipocrisias, vinganças e demais angústias.

Sem perder de vista que uma obra literária faz-se completa em si, é independente, responde por ela mesma, tamanha a sua potencialidade, não se pode excluir a possibilidade de uma interferência/influência da biografia de seu autor – o que se constata n’ O Ateneu. Raul Pompéia foi interno no famoso Colégio Abílio (no Rio de Janeiro), comandado pelo austero, rígido Abílio César Borges – o Barão de Macaúbas. No romance, Aristarco, o diretor d’O Ateneu, denota, a priori, em seu próprio nome, o “governo dos melhores”, de e para a aristocracia tal qual o regime monárquico de D. Pedro II, tão impetuosamente combatido por Pompéia. Defensor assíduo da república e do abolicionismo, ele incorporou uma radical postura militante por essas causas. Postura essa que justificaria no final do livro o incêndio da instituição com atroz repúdio ao sistema vigente: a destruição do Ateneu sob o olhar vencido de Aristarco. A vingança pessoal do autor, que Mário de Andrade atribuiu como a razão do desencadeamento dos fatos na história, não se limita à purificação daquela instituição corrupta e corrompida. A ira, o furor de Pompéia é, na verdade, contra a vida, o mundo – ferocidade nervosa de um homem que provou ser inadequado e contrário ao injusto e podre sistema vigente. A vida é luta, é torpeza, é mácula. O mundo, sob sua óptica, apodreceu: é preciso purificá-lo com o fogo! Mediante as várias e pungentes frustrações sofridas pelo escritor, ele finda sua vida. No Natal de 1895, redigiu o seguinte bilhete: “À Notícia e ao Brasil declaro que sou um homem de honra”. Datou, assinou e deu um tiro no coração.

Referências

ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. 5 ed. São Paulo: Martins, 1974.

BOSI, Alfredo. Céu, inferno: ensaios da crítica literária e ideológica. vol. 4. São Paulo: Ática, 1988.

COUTINHO, Afrânio. “Simbolismo, Impressionismo, Modernismo”. In COUTINHO, Afrânio e COUTINHO, Eduardo de Faria. A Literatura no Brasil. 4v – 3 ed. – Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF – Universidade Federal Fluminense, 1986.

HOLANDA, Sério Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

GOMES, Eugênio. “Raul Pompéia”. In COUTINHO, Afrânio e COUTINHO, Eduardo de Faria. A Literatura no Brasil. 4 v – 3 ed. – Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF – Universidade Federal Fluminense, 1986.

POMPÉIA, Raul d’ Ávila. O Ateneu. 16ª ed. São Paulo, Ática, 1996.

BARBOSA, João Alexandre. Os discursos do dr. Cláudio. In Revista Cult. São Paulo, nº 30, ano III.

Os grandes artistas: Romantismo e Impressionismo. Vol. 4 – 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.