Estratégias para a construção do posicionamento crítico do narrador em Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco

Priscila Pereira Paschoa

Introdução

Amor de Perdição, romance de Camilo Castelo Branco, escrito em 1861, conforme o aponta o autor na dedicatória do livro (p.11), é uma obra que chama a atenção não somente pelo enredo em torno do qual ela se constrói, uma tragédia passional entre dois jovens proibidos de se unirem por exigência das famílias, mas principalmente pela maneira como os fatos e situações são apresentados ao leitor, que se coloca como um apreciador de um relato aparentemente voltado apenas à reprodução de uma história verídica conhecida pelo narrador-autor: a tradição de feitos aventurosos da família deste, relatada a ele por ocasião de sua estada na casa de uma tia, Dona Rita Emília, depois de ele ter ficado órfão de pai e mãe, aos dez anos de idade. Observe-se que a precisão de datas, fatos históricos, genealogias e costumes da sociedade portuguesa dos séculos XVIII e XIX propiciam ao leitor compreender a narrativa como uma produção orientada para uma retratação fiel à realidade da qual ela advém. Mas a essas marcas devem-se somar outras, tais como, fundamentalmente, o processo narrativo, o discurso empregado, as focalizações construídas e, dentro dessas particularidades, os indícios que apontem para a possibilidade de um determinado posicionamento do narrador, no caso da obra de Camilo, uma postura de observação analítica em relação a convenções sociais do meio em questão, para que se possa realizar uma leitura suficientemente crítica da obra. Considerando o cunho genealógico-(auto)biográfico do romance e a necessidade de uma leitura preocupada com dados não explícitos no texto, no decorrer da introdução, dos vinte capítulos e da conclusão em que o livro se divide, por meio de intervenções do narrador onisciente, que julga atos das personagens, conduzindo, assim, a opinião de quem lê, esse relato vai adquirindo uma singularidade que permite enxergar a obra toda como um grande construto ficcional que apresenta uma retratação não neutra e, assim, persuade o leitor até a última página, para ele inferir o desfecho da história de amor proibido.

Com a preocupação de verificar como se dá a construção do ficcional-crítico, tendo em vista o caráter histórico que o autor mesmo atesta no final do livro, em “Da família de Simão Botelho vive ainda, em Vila Real de Trás-os-Montes, a senhora D. Rita Emília da Veiga Castelo Branco, a predileta dele. A última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi Manuel Botelho, pai do autor deste livro” (CASTELO BRANCO, 1993, p.118), este artigo procurará analisar aspectos da narrativa que a sustentem como obra literária, a recriação particular de um mundo exterior. Em seguida, apresentar-se-á uma proposta de como trabalhar com Amor de Perdição numa sala de aula de nível universitário, atentando para a necessidade de analisar e interpretar também dados relevantes que passam despercebidos na seqüência do enredo.

Amor de Perdição: uma novela ultra-romântica?

Considere-se, primeiramente, a origem da narrativa: a história da família do narrador-autor. Detecta-se no romance um narrador onisciente que se manifesta, na introdução, em primeira pessoa e, no decorrer dos vinte capítulos e da conclusão, na maioria das vezes, em terceira. Pensando em Amor de Perdição como uma obra literária e atentando para a intrusão do narrador, que julga atos das personagens, surge um questionamento sobre as implicações da intervenção: o que significam, do ponto de vista da construção do livro enquanto obra literária e do impacto provocado no leitor com o uso do referido recurso?

A escolha de Camilo do uso da primeira e depois da terceira pessoa deve-se à pretensão de criar a ilusão de verdade, com vistas à crítica a relações sociais convencionalizadas, para que o leitor (destinatário extradiegético) receba a história tal como realmente ocorrida. Na introdução, o relato em primeira pessoa mostra-se como um suporte buscado pelo narrador para conseguir demonstrar a veracidade dos fatos, pois a transcrição do assentamento da cadeia da Relação do Porto, acerca de um parente do narrador, acaba transpondo para o romance um documento que testemunha ou confirma as aventuras a serem relatadas, com a revelação de como o narrador descobriu a história que começaria a contar. Nos vinte capítulos e na conclusão, o uso da terceira pessoa concretiza a “realidade” dos fatos, ao precisar datas, citações de documentação histórica, descendências e outros parentescos, costumes da sociedade da época e circunstâncias diversas pelas quais passam as personagens (com a apresentação de diálogos e de cartas trocadas entre os protagonistas).

Na tentativa de tornar a história mais convincente, o narrador conduz a opinião do leitor não somente quando se coloca em primeira pessoa, mas também – e principalmente – em terceira, pois é ao longo dos capítulos que se vão manifestando intervenções do narrador, que se coloca de maneira crítica diante de atos das personagens e de certas situações nas quais se enquadram: “Teresa de Albuquerque devia ser, porventura, uma exceção no seu amor” (p.26). São vários os outros exemplos que podem ser aqui citados, a começar no primeiro capítulo, à página 19, quando se narra a formação acadêmica de Domingos Botelho: “Formara-se Domingos Botelho em 1767, e fora a Lisboa ler no Desembargo do Paço, iniciação banal dos que aspiravam à carreira da magistratura”. Veja-se que o acontecimento é julgado como “banal” pelo narrador. No início do segundo capítulo, algumas atitudes de Simão são classificadas como “arrogantes”: “Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra arrogantes convicções da sua valentia” (CASTELO BRANCO, 1993, p.24). Do mesmo capítulo, outra passagem em que se verifica uma intervenção na qual o narrador não consegue se conter em sua apreciação é:

Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos. O amor aos quinze anos é uma brincadeira; é a última manifestação do amor às bonecas […]. (p.26)

Sob o prisma de uma reflexão metalingüística, pode-se considerar essa intervenção como dotada de humor, levando o leitor até mesmo ao riso, pois ridiculariza-se uma atitude amorosa, o amor aos 15 anos, que faz parte, justamente, do ponto central do romance narrado. Ao mesmo tempo em que o narrador procede a apreciações críticas e coloca-se como uma entidade um tanto distante dos acontecimentos, um ser intratextual que, detendo os fatos, tem a capacidade de apresentá-los e julgá-los de modo a mostrar-se digno de credibilidade, ele parece assumir, em determinados momentos, os problemas das personagens, como demonstrado mais adiante, neste estudo.

Assim, nos próximos capítulos, também serão encontradas outras passagens que marcam a intervenção do narrador, sendo que, a exemplo do início do capítulo 4, “O coração de Teresa estava mentindo. Vão lá pedir sinceridade ao coração!”, essas construções atuam diretamente na condução da opinião do leitor em relação aos sentimentos, num primeiro momento, “escondidos” das personagens e não só na observação das atitudes dessas entidades. O narrador acaba manifestando-se, portanto, de maneira parcial. Esse tipo de intervenção instaura-se como uma quebra da seqüência aparentemente descomprometida do narrador segundo a qual são trazidos os acontecimentos. No momento da quebra, o leitor compreende ou passa a enxergar a existência de dois tipos de condução da narrativa no que se refere à tentativa de demonstrar a autenticidade dos acontecimentos: ora o narrador expõe suas impressões pessoais sobre as sensações das personagens, levando a se pensar em até que ponto quem lê a história não poderia ser manipulado a ter as mesmas impressões que esse narrador, ora ele relata um dado momento, fazendo transparecer diretamente as vozes das personagens, tanto por diálogos quanto por cartas.

A partir do primeiro capítulo, conforme mencionado, há descrições bastante subjetivas acerca das personagens, pois a imagem delas é construída de acordo com a visão do narrador onisciente. Sabe-se que um narrador onisciente intruso procura suprimir ou minimizar ao máximo a voz das personagens (FRANCO Jr., 2003, p.41). No entanto, não é somente isso que acontece em Amor de Perdição, pois, apesar da postura de “julgar” ou comentar a vida, os costumes, os caracteres, a moral, o narrador permite às personagens se exporem. Há, então, duas perspectivas particulares para conferir a verossimilhança: a intervenção explícita e a implícita, como se pode notar nestas passagens:

Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra arrogantes convicções da sua valentia. (p.24) (Grifos deste artigo)

Nos cinco subseqüentes dias recebeu Simão regularmente cartas de Teresa, umas resignadas e confortadoras, outras escritas na violência exasperada da saudade. (p.62)

Esta é a carta que leu Simão quinze dias depois do seu julgamento: […] (p.84)

Diferentemente dos dois primeiros trechos, no da página 84, não há intervenção explícita, em virtude de o narrador trazer, com uma neutralidade aparente, ou seja, sem a explicitação de juízos de valor, o conteúdo da carta. Na página 62, o conteúdo da correspondência mantém-se tal qual Teresa o produziu, mas, antes de expô-lo, o narrador faz algumas observações quanto ao estado da personagem.

À página 68, numa outra carta, o narrador mostra com maior clareza ainda sua “interferência”. Veja-se como ele evidencia as escolhas dos trechos que devem ser expostos ao leitor:

Ao anoitecer, Simão, como se estivesse sozinho, escreveu uma longa carta, da qual extratamos os seguintes períodos: […].

Como se pode notar no excerto acima, embora consiga impor à narrativa a autenticidade dos fatos, o narrador deixa evidenciar sua parcialidade, e isso causa a impressão de que o leitor não deve saber de tudo, mas apenas daquilo que o narrador deseja que ele saiba. Essa situação aproxima-se do que Todorov (apud Barthes, 1972, p.235) chama de “tempo da escritura” e “tempo da leitura”: entre a introdução e os capítulos, marcam-se dois diferentes tipos de tempos narrativos que indiciam uma obra na qual a esfera da enunciação exerce um certo domínio sobre a da história, em virtude do posicionamento do narrador.

Em seguida à introdução, no primeiro capítulo, nota-se uma forte evidenciação genealógico-autobiográfica que vai desenvolver-se, também minuciosamente, no segundo capítulo e na conclusão. Por este motivo, compreende-se que predomina no romance um tempo cronológico, linearmente distribuído. No início, esse tempo tende ao vertiginoso, abrange algumas décadas, situando a origem de Simão; logo em seguida, atém-se ao presente, construindo a narrativa com os detalhes de cada um dos dias focalizados em que se passa a história. Os acontecimentos ocorrem entre Viseu, Vila Real de Trás-os-Montes, Lisboa, Cascais, Lamego e Coimbra. O deslocamento das personagens entre essas cidades reflete a complexidade das situações que as envolvem, mas não determina as ocorrências. As referências aos lugares variados permitem ao leitor ter uma visão mais ampla da moral vigente e do provincialismo da sociedade portuguesa da época, na qual a tradição familiar e a preocupação com a reputação prevalecem sobre o indivíduo. Os detalhes atestam uma narrativa predominantemente lenta, que abre espaço para as personagens exporem, de maneira direta, seus pensamentos. Isso se encontra tanto nos diálogos, presentes em todos os capítulos, inclusive, na conclusão, quanto nas cartas, que expõem a voz de uma personagem, quando para isso não há diálogos, como no capítulo 2. Quanto ao enredo, conforme assinala Campedelli (1993, p.5) no estudo introdutório à 17ª. edição do livro, organizada pela Editora Ática, dois quartos do romance constam de uma lenta narração sobre o namoro entre Simão e Teresa, a separação do casal por desentendimentos familiares, a obstinação de Teresa, mantendo-se fiel a Simão, não cedendo ao casamento com Baltasar. O capítulo 10, na opinião de Campedelli, pode ser considerado o clímax da narrativa, pelo fato de se dar a morte de Baltasar. Dessa maneira, do capítulo 11 em diante, os acontecimentos se precipitam, preparando o desenlace trágico.

Há, em Amor de Perdição, as categorias fundamentais de personagens: protagonistas, antagonistas e figuras secundárias. Os primeiros são representados por Simão Botelho, de 17 anos de idade, filho de Domingos Botelho, corregedor de Viseu; Teresa de Albuquerque, de 15 anos, filha de Tadeu de Albuquerque, inimigo do pai de Simão; e Mariana da Cruz, apaixonada por Simão, filha de João da Cruz, ferrador humilde de Viseu. Os antagonistas são, primeiramente: Domingos Botelho e Tadeu de Albuquerque, que se opõem à aproximação e ao casamento dos filhos, e Baltasar Coutinho, o “morgado de Castro-Daire” (p.29), primo de Teresa, a quem ela estava prometida. Em relação aos pais dos protagonistas, o narrador ressalta-lhes o comportamento rancoroso, inflexível e tirano e, ainda, ridiculariza-os, no intuito de os levarem a significar a hipocrisia, que ostentam em nome da honra, da palavra, do que representam socialmente. Baltasar, também pertencente à mesma casta aristocrata (“igualmente nobre da mesma prosápia”, p.28), atua como uma espécie de cúmplice do tio no afastamento de Teresa e Simão. Em razão de tais interesses, ele pode ser interpretado como ambicioso, mesquinho, vil e hipócrita, como sugerido pelas passagens seguintes, às respectivas páginas 30 e 31:

– Casada!… interrompeu ela. Mas Baltasar cortou-lhe logo a réplica deste modo:
– Casada com algum famoso ébrio ou jogador de pau, valentão de aguadeiros, distinto cavalheiro, que passa os anos letivos encarcerado nas cadeias de Coimbra…

– Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas últimas palavras: eu hei de, enquanto viver, trabalhar por salvá-la das garras de Simão Botelho. Se seu pai lhe faltar, fico eu. Se as leis a não defenderem dos ataques do seu demônio, eu farei ver ao valentão que a vida sobre os aguadeiros não o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio Tadeu Albuquerque.

Além disso, outro fator que contribui para se chegar a tal conclusão sobre o caráter de Baltasar é o fato de ele ter encomendado a pessoas de sua influência a morte de Simão:

Os dois criados de Baltasar, quando o tropel do cavalo parou, recordaram as ordens do amo, no caso de vir a pé Simão. (p.42)

As principais personagens secundárias são: João da Cruz, que é absolvido de um homicídio, com o auxílio do corregedor Domingos Botelho; e D. Rita Preciosa, mãe de Simão, uma mulher da Corte, refinada, que humilha o marido.

Constituído por entidades como as mencionadas, o romance possui elementos suficientes para compor um quadro da sociedade portuguesa do século XIX, de maneira que cada personagem assumirá um perfil característico de cada uma das mais evidentes figuras sociais da época:

  • Simão: explosivo, indolente e apaixonado por uma garota de 15 anos, é o estudante que, inicialmente, adota, em Coimbra, os ideais igualitários da Revolução Francesa;
  • Teresa: a mocinha que luta contra o pai pelo amor a um estudante defensor de idéias liberais;
  • Mariana: a jovem apaixonada que sofre em silêncio por um amor não correspondido de um rapaz que ama outra mulher;
  • Tadeu de Albuquerque: fidalgo autoritário de Viseu que, ao deter todos os direitos de pai sobre a filha, decide criar uma série de empecilhos para afastá-la de seu verdadeiro amor;
  • Domingos Botelho: fidalgo de Vila Real de Trás-os-Montes, depois juiz de fora de Cascais; tinha prestígio, mas pouco dinheiro;
  • Baltasar Coutinho: fidalgo de Castro-Daire, que consegue seus intentos em razão de seu dinheiro;
  • João da Cruz: camponês rústico, que acaba se tornando o protetor do protagonista quando este volta para a cidade de Viseu, em busca da amada.

Assim descritas, as personagens colocam-se dentro de espaços determinados pelo narrador no romance, de modo que, especialmente os amantes, conferirão à narrativa um sentimentalismo por vezes acentuado, principalmente nas cartas. Em qualquer uma das correspondências entre o casal, percebe-se uma valorização das emoções pelo autor:

[…] Vive, Teresa, vive! Há dias, lembrava-me que as tuas lágrimas lavariam da minha face as nódoas do sangue do enforcado. […] (p.86)

É já o meu espírito que te fala, Simão. A tua amiga morreu. (p.114)

Se, por um lado, o narrador-autor determina o lugar, o papel e a atuação das personagens no romance, por outro, ao inserir as correspondências, ele faz com que estas ganhem voz, a ponto de não se manifestarem apenas como meios de comunicação entre as personagens, mas como um importante recurso retórico que intensifica o teor passional e dramático da história. Trazendo emoções e confissões de Simão e Teresa, os textos transformam as personagens também em narradores. Sob este aspecto, Amor de Perdição tem, portanto, vários narradores, incluídos num texto em que o autor intercala narração, diálogos e monólogos (cartas) de maneira densa e ágil.

No sentimentalismo observado nas citações, um detalhe a se destacar é a pontuação das cartas: o autor consegue demonstrar convincentemente a identidade de cada produtor dos textos, por meio de sinais específicos de pontuação: as reticências. Assim, os escritos de Teresa sempre contêm várias reticências, o que não ocorre nas cartas de Simão.

Morrerei, Simão, morrerei. Perdoa tu ao meu destino… Perdi-te… Bem sabes que sorte eu queria dar-te… […] (p.108, carta de Teresa)

Os referidos sinais fazem transparecer um discurso repleto de exaltações, de sentimentalismo exagerado, o que está mais próximo, na obra de Camilo, da mulher (Teresa) do que do homem (Simão). Os textos de Simão não trazem tal especificidade, embora outras cartas de personagens masculinas, na narrativa, como a de Dr. Botelho (p.99), também tenham algumas reticências.

A linguagem de Camilo é aguda nos detalhes que articula e ressalta, como a paixão declarada dos protagonistas por meio das cartas:

As palavras únicas de Teresa, em resposta àquela carta, significativa da turbação do infeliz, foram estas: […] (p.108);

Nos cinco subseqüentes dias recebeu Simão regularmente cartas de Teresa, umas resignadas e confortadoras, outras escritas na violência exasperada da saudade. (p.62),

e minuciosa ao descrever os sentimentos mais encobertos, como nos relatos em que se enfoca o comportamento de uma determinada personagem:

– Tenho dito, rapariga; aqui te entrego o nosso doente; trata-o como quem é, e como se fosse teu irmão ou marido.
O rosto de Mariana acerejou-se quando aquela última palavra saiu, natural como todas, da boca de seu pai. (p.55)

Sendo assim, a linguagem do autor é equilibrada. No prefácio à segunda edição do romance, Camilo argumenta sobre a grande acessibilidade do público à sua linguagem: “Rapidez das peripécias, a derivação concisa do diálogo para pontos essenciais do enredo, a ausência de divagações filosóficas, a lhaneza de linguagem e o desartifício das locuções”. Analisando as duas classes sociais em que as personagens se dividem na obra, povo (representado por João da Cruz e Mariana) e aristocracia (presente em Simão, Teresa e seus familiares), depreende-se que o autor empresta uma fala viva e espontânea aos populares e uma retórica mais sentimental e trágica aos protagonistas:

– Eu tinha ali à mão o martelo, e não me tive que não pregasse com ele na cabeça do macho, que foi logo p’ra terra. O recoveiro de Carção, que era chibante, deitou as unhas a um bacamarte, que trazia entre a carga, e desfechou comigo, sem mais tir-te nem guar-te – “Ó alma danada! – disse-lhe eu – pois tu vês que o teu macho me aleijou esta égua, que custou vinte peças a seu dono, e que eu tenho de pagar, e dás-me um tiro por eu te atordoar o macho!?” (p.38-39, fala de João da Cruz)

– Vista-se como quem é: lembre-se de que ainda tem os meus apelidos – disse com severidade o velho. (p. 49, fala de Tadeu de Albuquerque)

Não receies nada por mim, Simão. […] A desgraça não abala a minha firmeza, nem deve intimidar os teus projetos. São alguns dias de tempestade, e mais nada. Qualquer nova resolução que meu pai tome dirta-ei logo, podendo, ou quando puder. […] Ama-me assim desgraçada, porque me parece que os desgraçados são os que mais precisam de amor e de conforto. […] (p.54, carta de Teresa)

Além das referidas particularidades, o autor também usa várias vezes o discurso indireto livre, para assumir ou tomar para si um sentimento de uma determinada personagem e expressá-lo com o ardor que mais sensibiliza o leitor: “Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas de vida conventual. […] Que desilusão tão triste e, ao mesmo tempo, que ânsia de fugir dali!” (p.53).

Apesar do destaque conseguido com uma obra que se projeta sobre uma situação amorosa, cabe aqui salientar, no entanto, que Camilo não escreveu narrativas baseadas somente na temática do amor, mas obras humorísticas nas quais a linguagem se ocupa de satirizar violentamente certos comportamentos humanos, como em A Espada de Alexandre (1872) e em Anos de Prosa (1896).

No que concerne a dados macrotextuais, pode-se pensar no motivo de se chamar Amor de Perdição de romance, e não de novela. Embora o autor tenha classificado suas obras como romances, alguns críticos literários, como Jacinto do Prado Coelho (1946), referem-se a elas como novelas ou “novelas romanescas”, histórias passionais para entreter a imaginação do leitor. Ao longo de seu livro sobre produções de Camilo, o estudioso português avalia que a diferença fundamental entre ambas as categorias está no tratamento linear da narrativa, nas cenas sucessivas e na conclusão fechada. Os romances abordam um mundo mais multifacetado, com personagens mais contraditórias e complexas. Tal como a novela, o romance contém vários núcleos narrativos. Veja-se o que afirma outro autor, Mendonça (1967, p.15), para o qual a distinção está no emprego dos referidos núcleos: no romance, estes são atualizados simultaneamente, enquanto na novela a atualização é sucessiva. Nessa categoria literária, há uma continuidade do fluxo narrativo pela permanência de uma ou mais personagens, pela conservação do espaço ou do ambiente. A novela é fundamentalmente dinâmica e anti-analítica, narra a ação dentro de uma estrutura objetiva, plástica e horizontal, e a esse plano se restringe. Mendonça ainda explica que, nesse tipo de narrativa, é necessário ir caminhando sempre mais para dentro, mais em direção ao significado dos gestos e das palavras, adensando a substância de que vai sair o resultado final do desfecho. Coelho (1946, p.601) considera ainda que as produções de Camilo, embora possam ser chamadas de novelas, têm traços de romance que levam a distingui-las como “novelas romanescas”: o objetivo de conseguir a sensação de veracidade da história, submetendo, assim, o leitor aos efeitos da empatia. Para o estudioso, predominam os seguintes traços de uma novela: a pobreza de descrições, o ver geralmente de fora as personagens, a carência de análise psicológica sutil, a falta de uma atmosfera social, a ação exterior, a predileção pelas situações patéticas e pelos caracteres de exceção (temperamentos impulsivos, capazes de heroísmo ou no declive da perversidade e da loucura), a “derivação concisa” da narrativa para os momentos culminantes, a vibração lírica, os considerandos marginais, as introduções e os epílogos, os próprios rasgos peculiares do estilo. O autor ainda salienta que, em contraste com as personagens do romance realista, os heróis camilianos subtraem-se de um modo geral às contingências sociais e orgânicas; seguem o seu destino independente num mundo em que avultam os problemas morais da honra, do amor e do dever.

Se não se examinar o discurso que Camilo utiliza para relatar atitudes das personagens, ou seja, se forem avaliadas apenas as ações do romance, e não a maneira como elas são narradas, as afirmações dos autores mencionados até poderão ser bastante condizentes com Amor de Perdição, mas é mais importante avaliar o texto em si, pois é nisso que está o traço que mais identifica o tipo de realização romanesca de Camilo: um romance que, em virtude do enredo cujo tema é extremamente comum à literatura de todos os tempos, o amor proibido, leva a pensar em uma obra voltada tão-somente para os fatos (a morte dos três amantes e o final infeliz) e o sentimento de decepção causado por eles no leitor, que se tornou sensível aos problemas narrados. Sob essa noção, a obra seria chamada de novela “ultra-romântica”, mas não é bem isso o que se verifica no texto e nem é isso o que importa a Camilo, pois em consonância ao que ele sugere nos prefácios, o “romance” produzido atesta uma tendência à estética realista, o que se percebe em flagrantes da vida das famílias da sociedade portuguesa. Camilo defende no prefácio à segunda edição (p.14) que “o romance, tendendo a apelar da iníqua sentença que o condena a fulgir e apagar-se, tem de firmar sua duração em alguma espécie de utilidade, tal como o estudo da alma, ou a pureza do dizer”. O autor entende Amor de Perdição como um “romance romântico, declamatório, com bastantes aleijões líricos, e umas idéias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo”. É interessante que, logo depois desse trecho, preocupado com a recepção de seu escrito pelas famílias, Camilo chama-o de “novela”, provavelmente pelo fato de referir-se à persuasão conseguida junto ao público, curioso, assíduo às leituras. Tanto no prefácio à segunda quanto no da quinta edição, Camilo afirma uma preocupação intensa com a linguagem, salientando que a retórica atrai o leitor e leva ao sucesso do livro:

Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5ª. edição do Amor de Perdição quase esgotada (p.16);

O que eu queria era […] o prazer ainda de ser tão lustroso na linguagem, quanto, em diversas circunstâncias, podia ser (p.14);

É certo que tenho querido imprimir em alguns de meus livros o cunho da utilidade com o valor da linguagem sã e aleijada à expressão de idéias […] (p.14).

Além disso, há também, nas intrusões do narrador, uma análise do caráter das personagens, aspecto que Coelho esclarece não ter encontrado em Amor de Perdição: “Claro que Baltasar conhecia o segredo de Teresa. Seu tio, naturalmente, lhe comunicara a criancice da prima, talvez antes de destinar-lha esposa” (p.30). Note-se o agudo senso crítico do narrador no julgamento da postura de “criancice” de Teresa. Como cerne de tal interferência, está a focalização detalhada de convenções sociais como estratégia para a construção do posicionamento crítico do narrador. À página 29, isso fica bem claro, numa das pausas reflexivas do romance, em primeira pessoa inclusive, sobre as pretensões de Tadeu de Albuquerque em relação à filha e a vida social da moça:

[…] Aí está Teresa que parece ser única em si. […] Também o penso assim, posto que a fixidez, a consciência daquele amor, funda em causa independente do coração: é porque Teresa não vai à sociedade, não tem um altar em cada noite na sala, não provou o incenso em outros galãs […].

Acerca de Simão Botelho, nunca diante de sua filha Tadeu de Albuquerque proferiu palavra, nem antes nem depois do disparate do corregedor. O que ele fez foi chamar a Viseu o sobrinho de Castro-Daire, preveni-lo do seu desígnio, para que ele em face de Teresa, procedesse como convinha a um enamorado de feição, e mutuamente se apaixonassem e prometessem auspicioso futuro ao casamento. (p.29) (Grifos deste artigo)

Apesar de extensas, as citações são necessárias ao presente artigo, para que se possa confirmar, no texto de Camilo, as depreensões aqui defendidas. No primeiro trecho sublinhado, marca-se a voz, em primeira pessoa, do narrador interventor. Na segunda citação, tem-se um exemplo de convenção social pormenorizada, que pode demonstrar o posicionamento crítico do narrador, permitindo, assim, verificar ainda mais o predomínio da observação sobre as ações e, em decorrência disso, um romance com tendência à análise social, e não simplesmente uma novela ultra-romântica.

Se a identificação de gêneros for realmente importante, é no interior do texto que se devem buscar particularidades, a fim de se obter uma definição da respectiva categoria literária. Pensando nisso, depois das “características impreteríveis” de uma novela, vistas nos estudos de Coelho e de Mendonça, é apresentada, neste momento, a visão de outros autores quanto a esse gênero. Massaud Moisés (1977, p.190-6, apud RIBEIRO, 1978, p.21) avalia como primeiro aspecto estrutural da novela a pluralidade dramática, pois é construída por uma série de unidades ou células ligadas entre si, e cada uma tem um fim em si própria, significando dizer que apresenta começo, meio e fim, relacionando-se, entretanto, com as demais para garantir a unidade. Sob esse ponto de vista, Amor de Perdição pode ser chamada de novela, pois cada um de seus capítulos tem uma certa autonomia, haja vista que cada qual traz uma explanação ou um episódio diferente, sob uma estrutura de começo, meio e fim um tanto perceptíveis. Por exemplo, no fim do capítulo 2 (p.27), o narrador indica que no capítulo seguinte está o motivo da “peripécia” que forçará Teresa a escrever uma carta na qual ela conta a Simão a causa de o pai mandá-la a um convento:

[…] No seguinte capítulo se diz minuciosamente a peripécia que forçara a filha de Tadeu de Albuquerque a escrever aquela carta de pungentíssima surpresa para o acadêmico, convertido aos deveres, à honra, à sociedade e a Deus, pelo amor.

Repare-se que, embora ainda continue referindo-se a Teresa, o narrador dará início a um novo capítulo, para focalizar um outro aspecto, no caso, as pretensões de Tadeu de Albuquerque em relação à filha e a relação mal sucedida desta com o primo Baltasar. Com se observa, as divisões em capítulos assemelham-se a um texto que, para estar bem articulado, relacionando diferentes enfoques numa unidade global de sentido(s), também requer divisões, por sua vez, em parágrafos. Desse modo, os capítulos funcionam como grandes blocos ou segmentações. Isso não deixa de ser uma preocupação do autor com a organização do texto.

Finalmente, adotando o entendimento de Ribeiro (1978, p.28), que, no intuito de elaborar uma definição mais abrangente de novela, estudou concepções defendidas por teóricos entre os mais importantes, como os apresentados anteriormente, Amor de Perdição já não pode ser compreendida como novela. Veja-se a definição:

A narrativa que apresentar, mais ou menos sempre presentes, uma história interessante e comovente, predomínio da ação sobre os caracteres, pluralidade e sucessividade dramática, personagens não muito complexos, exposição sucessiva e linear dos acontecimentos, ritmo acelerado, liberdade de tempo e de espaço e com abertura de ser continuada. (Grifo deste artigo)

Entre os traços que se podem elencar para conceber a obra mais como romance do que como novela estão: em primeiro lugar, não há o predomínio da ação sobre a observação de meios e caracteres, pois, como se verificou, Camilo tende para um tom realista, ao trazer críticas sociais na focalização do posicionamento de Teresa como filha que sempre obedece ao pai; Simão não é uma personagem de um só tipo de comportamento (plana), mas redonda, pois muda de atitude ao conhecer Teresa: de estudante revolucionário ele passa a ser um universitário estudioso em Coimbra, ou seja, regenera-se por causa da amada; assim também Mariana, jogando-se ao mar, comporta-se de uma maneira que surpreende o leitor, já que ela parecia, desde o início, bastante contida em virtude da educação dada pelo pai, camponês que vê seu lugar na sociedade como o de uma pessoa que não se deve misturar a famílias de classe (mais) alta; o ponto de chegada ou o destino da obra encontra-se no final do romance e não no fim de cada um dos capítulos.

A respeito do predomínio da observação sobre as ações, à página 32, capítulo 3, por exemplo, há uma outra passagem em que o narrador se coloca claramente como avaliador de fatos e situações: “Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de Tadeu de Albuquerque”. Trata-se de uma análise sobre o caráter da personagem, ao mesmo tempo em que o narrador a apresenta, assim como o faz Machado de Assis em Dom Casmurro com Capitu e em tantos outros de seus romances. Tece-se, dessa maneira, um perfil das personagens, sendo que as ações serão apenas meios para o narrador-autor compor plenamente a observação crítica da realidade. Então, a verdade imaginativa não se sobrepõe à observada, o que confirma Amor de Perdiçãocomo uma obra um tanto diferente daquilo que se lê em boa parte das análises encontradas em manuais de cursinhos pré-vestibular, na Internet e em vários outros meios, incluindo até textos de estudiosos de literatura.

A obra em questão centra-se, portanto, em uma estrutura narrativa presa a uma seqüência de tensões que culminará num conflito trágico, ponto final do romance, captado pelo narrador-autor, que, em terceira pessoa, projeta-se diretamente de fora para dentro na narrativa. Pela retenção de seu olhar, da personagem e da ação, os heróis patológicos (extremamente voltados a valores do mundo que os cercam) estão em uma sociedade monetária, que não aceita o amor entre Simão e Teresa. Os dois precisam combater o mundo para alcançar a salvação.

Sendo o tema central nas narrativas de Camilo o amor, padrões de comportamento e regras sociais são rompidos com a exacerbação de tal sentimento. Manifesta-se uma transgressão em torno do amor, e a paixão justifica condutas variadas, inclusive o enlouquecimento (de Mariana), a clausura (de Teresa) e a transformação de um homem de bem em criminoso (o assassinato cometido por Simão). Explora-se a contradição entre o eu, que se pretende guiar pelos sentimentos, e os limites, que muitas vezes impedem a concretização desses sentimentos, num mundo repleto de personagens talhadas de forma maniqueísta, voltadas para o bem ou para o mal, sem se desviarem de seus propósitos.

Depois de verificar os principais traços da narrativa que fazem de Amor de Perdição uma obra literária, é preciso, neste momento, refletir sobre como trabalhar com tais detalhes, em uma sala de aula de nível universitário e, mais ainda, sobre como avaliar certos trechos da obra – dados microtextuais que passam despercebidos na seqüência narrativa -, haja vista que os alunos, agora, não mais são meros aprendizes de elementos básicos de produções literárias como um todo macrotextual, mas estudantes de uma linguagem particular, detalhada.

Tem-se uma produção que, há muito, tornou-se “clichetizada”, ou seja, parece não admitir mais nenhum tipo de análise, em virtude dos incontáveis estudos e especulações que já se fizeram sobre o livro, principalmente em cursinhos pré-vestibular e, de maneira mais desenfreada, na Internet, disponível a todos. Diante disso, um aluno universitário deve estudar o que não está tão evidente, pois, como estudante da linguagem, ele precisa entender como funciona o discurso literário em si e não permanecer em análises superficiais repetitivas e inquestionáveis. No próximo segmento, aqui grifado, por exemplo, convém avaliar que o narrador toma a fala da personagem Baltasar (inicialmente discurso indireto), impingindo-lhe depois um discurso metafórico que revela uma concepção do próprio narrador (discurso indireto livre): “Generoso até ao perdão, o morgado de Castro-Daire, compondo o rosto com gesto grave e melancólico, dirigiu-se a Teresa, e pediu-lhe desculpa da frieza que ele disse ser como a das montanhas, que têm vulcões por dentro e neve por fora” (p.36). Diz-se discurso indireto livre pelo fato de não haver indício evidente de que a oração subordinada adjetiva, em grifo, tenha sido proferida por Baltasar. Se tivesse sido a personagem quem a pronunciara, para assinalar tal ocorrência, o narrador poderia ter inserido um adjunto adverbial de conformidade, resultando em “segundo ele” ou, também, em “para ele”: “[…] que ele disse ser como a das montanhas, as quais, segundo ele/ para ele, têm vulcões por dentro e neve por fora”. As personagens têm exposta sua realidade interior, com seus pensamentos e sensações bastante acentuados. É uma maneira de o narrador projetar, no romance, a observação às personagens e a seus pensamentos e valores.

Ainda pensando no discurso, também é importante estudar mais detidamente outros índices específicos da narração, tais como: pronomes de primeira e segunda pessoa (relação “eu”/ “tu” no processo de enunciação); os demonstrativos (pronomes, advérbios,… “este”, “aqui”), na ostentação da instância da enunciação ou proximidade com quem fala; adjetivos qualificados (“bom”/ “mau”; “belo”/ “feio”..) expressando juízo de valor ético ou estético pelo narrador; a categoria do verbo (o presente em primeira pessoa/ performativo e o passado apessoal e constativo); certas formas modais de verbos e advérbios (imperativo/ subjuntivo ou ordem, desejo; o imperfeito como dúvida sobre a continuidade da ação); ambigüidade na percepção do leitor pelo uso de termos modalizados como “talvez”, “sem dúvida” etc.

Um outro ponto a ser estudado, em uma sala de nível universitário, é a crítica feita pelo autor, no interior do romance, à página 58, a alguns procedimentos de romancistas que enfocam um problema de uma personagem, especificamente relacionado à falta de dinheiro. Para o narrador, esse problema prejudica a imagem da personagem em relação ao público, pois se refere à classe social baixa, a hierarquia, e, assim, acaba por rebaixar o herói. O narrador deve, então, tentar ofuscar o referido traço de negatividade, a exemplo de Balzac, na generalização dirigida a toda uma sociedade, vendo que o problema, ao colocar a personagem no mundo dos plebeus, poderia diminuir a importância dela enquanto figura de um indivíduo na sociedade e, em decorrência disso, na narrativa. De acordo com o que sugere o escritor português, para persuadir o leitor da grandiosidade dos heróis de romances, as referidas entidades não devem ter problemas financeiros. No caso, Camilo focaliza Simão:

E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe idéias aflitivas que os romancistas raras vezes atribuem aos seus heróis. Nos romances todas as crises se explicam, menos a crise ignóbil da falta de dinheiro. Entendem os novelistas que a matéria é baixa e plebéia.[…] Balzac fala muito em dinheiro; mas dinheiro a milhões. Não conheço, nos cinqüenta romances que tenho dele, um galã num entreato da sua tragédia a cismar no modo de arranjar uma quantia com que pague ao alfaiate, ou se desembarace das redes que um usurário lhe lança, desde a casa do juiz de paz a todas as esquinas, donde o assaltam o capital e juro de oitenta por cento. Disso é que os mestres de romances escapam sempre. […] (p.58)

Num momento de total “escape” às circunstâncias narradas, o narrador-autor passa a argumentar sobre a situação descrita, que ele enxerga bem conduzida em romancistas como Balzac e evitada por novelistas. A crítica aqui levantada, bastante explícita na obra de Camilo, é um dos tópicos que podem ser desenvolvidos por universitários, a fim de se compreender de maneira adequada o posicionamento tão “arrojado” do narrador, na quebra da seqüência da narração, e as implicações desse procedimento narrativo. Repare-se que, depois da passagem, que é um parágrafo, o narrador continua se colocando de modo a influenciar a opinião do leitor a respeito do conflito que está sendo relatado: “Pois eu já lhes fiz saber, leitores, pela boca de mestre João, que o filho do corregedor não tinha dinheiro. Agora lhes digo que era em dinheiro que ele cismava, quando Mariana lhe trouxe o caldo rejeitado” (p.58). Às vezes, o narrador parece assumir, de maneira mais evidente, a voz de uma personagem, querendo resolver seus conflitos. É o que se coloca nas interrogações imediatamente seguintes, referentes à situação de João da Cruz e Mariana, dirigidas ao leitor. No trecho destacado, também ocorre uma mudança de foco narrativo, que passa da terceira para a primeira pessoa, salientando uma atitude particular de Camilo de escrever suas obras não se projetando apenas como um contador de uma história ocorrida e de apresentador de situações conflituosas que requerem acima de tudo reflexão, mas como uma entidade que constrói uma circunstância, para se posicionar favoravelmente a um procedimento narrativo que ele, escritor, detecta nos romances em geral. Logo, o herói não deve ser rebaixado pelo fato de passar por uma situação típica de indivíduos de classe social baixa.

O que se depreende da crítica é uma perspectiva diferente de enfoque narrativo assumida por Camilo, se comparado a autores como Balzac, Eça de Queirós e Machado de Assis. Em descrições pormenorizadas do ambiente e das condições financeiras e socioculturais das famílias, o escritor francês preocupa-se em produzir obras voltadas para questões sociais, ou seja, da sociedade em geral. Eça também tece uma visão crítica da sociedade (a portuguesa) de seu tempo (fim do séc. XIX), mas a focaliza segundo um ponto de vista que totaliza uma classe a que o escritor sabia pertencer e do que não derivava orgulho. Já Machado, por meio de arquitetados episódios que enfocam a sociedade carioca também do século XIX, assume uma perspectiva filosófica, uma contenção reflexiva, muitas vezes irônica, para a possível resolução dos conflitos de tipos específicos de indivíduos que ele recria. Finalmente, Camilo adota uma atitude de escritor “participante” dos episódios ou histórias que produz: ele trata os conflitos de suas personagens como se fossem seus, e o faz, no caso de Amor de Perdição, por meio de um narrador que intervém na apresentação dos sentimentos das personagens, de suas vontades e atitudes.

A passagem da página 58 permite perceber o desenvolvimento, ao longo de Amor de Perdição, de um conflito entre o indivíduo e o mundo, de modo que a dificuldade de uma personagem é tomada como um problema particular, que precisa ser resolvido no âmbito de atuação dessa personagem. O herói é levado a passar por situações dificultosas (pelo crime, pelo pecado), para realizar-se subjetivamente, em oposição à objetividade do mundo. Quando impedido de se realizar por meio da consumação do seu amor perante a sociedade, ele é obrigado a seguir por caminhos baseados numa alienação que se volta para a subjetividade do seu mundo interior: morte, suicídio, convento, prisão, loucura etc. Dessa maneira, elevam-se as personagens, que crescem espiritualmente, na tentativa de superação de seus infortúnios, adversidades, e rebaixa-se o mundo, preso a convencionalidades. No entanto, nos dois casos, o autor realiza uma apreciação crítica. As personagens protagonistas deslocam-se do mundo, que deve ser, a qualquer custo, transposto. A ruptura do homem com o mundo é sua principal forma de escape daquilo que mais o agride e oprime. Assim como Simão é punido com a prisão pelo assassinato de Baltasar Coutinho, Teresa é enviada ao convento, onde, diante da perspectiva de irrealização de seu amor, simplesmente, desiste de viver. O auto-aniquilamento culmina na morte, que, na concepção cristã de ascensão, é uma forma de redenção final, de salvação. Há uma ironia, então, no título da obra, quando o autor demonstra acreditar que somente na morte, na possibilidade de encontro do par amoroso fora desse mundo regido por leis e códigos sociais, está a verdadeira e única salvação. Os trechos a seguir confirmam tal postura:

Morrerei, Simão, morrerei. Perdoa tu ao meu destino… Perdi-te… Bem sabes que sorte eu queria dar-te… e morro, porque não posso, nem poderei jamais resgatar-te. Se podes, vive; não peço-te que morras, Simão; quero que vivas para me chorares. Consolar-te-á o meu espírito… Estou tranqüila… Vejo a aurora da paz… Adeus até ao Céu, Simão. (p.108, carta de Teresa)

Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão! (p.115, última carta de Teresa)

Em atenção aos dois trechos anteriores, expressão de uma personagem feminina que se manifesta por cartas, pode-se avaliar, ainda, num estudo acadêmico, a imagem e os questionamentos da mulher na sociedade portuguesa do século XIX, sob a ótica da obra Amor de Perdição, com base no gênero epistolar. Ao todo, o narrador apresenta nove trechos de correspondências escritas por Teresa. Neles, a filha de fidalgo demonstra descontentamento com o dever de obedecer ao pai, que lhe dita regras e lha proíbe de se relacionar afetivamente com pessoas que não pertençam à mesma classe social que sua nobre família. A jovem tenta fugir do primo Baltasar, a fim de realizar seu intuito de casar-se com o homem que ama. Na primeira carta, ela conta sua obrigação de ir para um convento por imposição do pai. Sob esse aspecto, identifica-se uma atitude comum anos atrás: a de mandar as filhas para a clausura, quando elas tivessem descoberto o amor e tentado desobedecer às idealizações dos pais quanto a casamentos que dessem continuidade à condição de nobreza da família. Detecta-se nessa primeira correspondência uma forte resistência às convenções e uma insistente disposição em prosseguir a relação amorosa com Simão. Na segunda, Teresa demonstra um outro dado referente a sua educação e a seus princípios: sua religiosidade. Recorrendo à fé como uma maneira de fortalecer a crença de que a vontade almejada será realizada, ela se coloca como uma pessoa medrosa. A submissão ao pai (que não a deixa sair do quarto), a piedade aos pobres, a preocupação com o próximo são outros detalhes apreendidos da referida carta. Na terceira, predomina a tentativa de fazer parecer a Simão que ela se mantém resistente às provações do convento. Entre a quarta e a quinta cartas, Teresa se contradiz: antes pede a Simão que vá para Coimbra, a fim de fazer com que o pai esqueça a ligação entre eles; já na próxima correspondência, a moça pede a Simão que não a desampare e, para isso, que não vá para Coimbra. A resistência de Teresa parece, neste ponto da narrativa, diminuir, juntamente com a consciência que ela vai adquirindo de que a prisão, na maioria das vezes, impede as pessoas de provocarem, no mundo exterior, as mudanças que elas desejam para si. Em um trecho de epístola do capítulo 19, Teresa explicita que se veria numa boa situação com a morte do pai, pois finalmente conseguiria ficar com seu amado: “Em dez anos terá morrido meu pai e eu serei tua esposa […]” (p.108). Na mesma página, outra carta aponta com mais evidência o percurso de degradação pelo qual começou a passar Teresa, a partir de sua entrada no convento: conforme seus escritos, ela estava chegando à morte. A última carta, bastante longa, ao mostrar-se como uma despedida comovente, finaliza a degradação. A jovem vê que, não sendo feliz na vida terrena, somente o conseguiria depois da morte. Analisando as cartas, o que se constata é um enfraquecimento da protagonista, como se o amado nada tivesse conseguido realizar para recuperá-la. E é justamente essa impotência diante da força da nobreza poderosa que uma carta de Simão deixa evidente: “Não esperes nada, mártir – escrevia-lhe ele. – A luta com a desgraça é inútil, e eu não posso já lutar. […] Salva-te, se podes, Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande desgraçado. […]” (p.108).

Como se observa, são estudos em torno desses aspectos que deveriam ser desenvolvidos em sala de aula e não a insistência, por exemplo, em saber o que foi real e o que foi ficção na construção da obra, o que não leva a nenhum resultado produtivo, pois isso se baseia simplesmente em detecções que não trazem um questionamento, não têm um fundamento, uma razão. O importante é investigar elementos (ficcionais ou históricos, não importa de que natureza) que estabeleçam relações de sentido na narrativa, a ponto de permitirem compreender mecanismos de articulação de dados, como se estes fossem ingredientes de uma grande receita que, por meio de uma composição bem estruturada, equilibrada, dará forma a uma produção particular, singularizada, no caso, literária. As análises, em nível acadêmico, precisam ser questionadoras, reflexivas, e não meras detecções, como se fazia e ainda se faz no ensino médio e/ ou cursinhos pré-vestibular, que trazem informações prontas (“embaladas”), rotuladoras, inquestionáveis.

Conclusão

Conforme as observações realizadas anteriormente, o que se pode inferir sobre os aspectos que fazem de uma obra inicialmente autobiográfica uma produção literária? Na realização autobiográfica, que não se distingue nitidamente da biográfica, de acordo com a visão de Bakhtin (2000, p.165), a relação consigo mesmo, com o “eu-para-mim”, não é um elemento constitutivo e organizado da forma artística, porque transparecem menos as modalidades de acabamento, a atividade transfiguradora do autor, a posição que, no plano dos valores, situa-o fora do herói; não existe uma fronteira clara para delimitar um caráter; não há uma ficção romanesca marcada por sua conclusão e pela tensão que exerce. Em Amor de Perdição, o autobiográfico existe como uma possibilidade de projeção para o ficcional, que predomina nos seguintes arranjos: além da forma (ô), composta por uma introdução, vinte capítulos e uma conclusão, forma essa que demonstra a preocupação com o texto, com a distribuição dos fatos em blocos textuais coerentemente relacionados entre si, também na seleção e na condução dos fatos ao leitor, nos julgamentos realizados em relação a alguns personagens e a suas atitudes, ou seja, no posicionamento de parcialidade de quem narra, no relato de episódios originalmente verídicos.

Não se deve tomar a obra apenas em sua macroestrutura, ou seja, considerando apenas o enredo, dados superficiais, mas é necessário observar o que “quer dizer” o texto nos fatos que ele traz, como se constrói o discurso, como é a linguagem (rebuscada ou com vocabulário simples, metafórica, irônica, reflexiva, detalhista,…), que tipo de focalização é realizada, como se coloca o narrador, entre outras apreensões que possam conduzir a uma leitura crítica. Quanto aos aspectos vistos, admite-se que o autor utilizou-se da história da família, tal como ele o aponta no fim do romance, para construir uma obra analítica em relação a convencionalismos da sociedade portuguesa do século XIX. Por tudo isso, Amor de Perdição é um romance em que o narrador-autor faz de uma história verídica uma possibilidade de construir uma crítica aparentemente sutil à sociedade a qual pertenciam seus familiares, personagens centrais da narrativa.

Pensando no objetivo de contribuir parcialmente para desfazer a visão ingênua de leitores da Literatura portuguesa que compreendem Amor de Perdição como apenas mais uma “novela passional” de Camilo Castelo Branco, o que deve prevalecer dos pontos principais apresentados na seção antecedente é a necessidade de uma análise do texto em si e, juntamente com esse intuito, ter um porquê em tudo o que se for analisar, ou seja, a obra literária deve conduzir a uma pesquisa literariamente coesa e coerente capaz de mostrar aspectos que estão “por trás” do explícito no texto. Então, é preciso partir da superficialidade para a profundidade, e isso se faz por meio do texto, observando as estratégias discursivas empregadas, como a focalização detalhada de convenções sociais como estratégia para a construção do posicionamento crítico do narrador.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A autobiografia e a biografia. In: ___. Estética da criação verbal. 3.ed. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.164-181.

BARTHES, Roland. Análise estrutural da narrativa. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1972. 285 p.

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CASTELO BRANCO, Camilo. Amor de Perdição. São Paulo: Ática, 1993. 118 p.

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RIBEIRO, Dulce Fritsch. Aspectos da novela. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), 1978. p.7-28. (Dissertação de Mestrado; orientador: Prof. Dr. Ir. Elvo Clemente).