Representações transitivas: observações relativas às possibilidades representacionais dos sujeitos da migração em “Marco Zero”, de Oswald de Andrade

Egídio Nascimento

Em linhas gerais, o fenômeno de migração pode ser descrito como um processo de deslocamento de sujeitos entre fronteiras (sejam política-geográficas, culturais ou lingüísticas), de modo que o próprio deslocamento constitua significado tanto no ponto de origem quanto no ponto de destino desse processo. Isso, grosso modo, definiria o fenômeno de migração se não houvesse, no fenômeno, nuances que determinam diferentes formas de migração – diferentes categorias nas quais os sujeitos em deslocamento ou deslocados se inserem, e pelas quais representam-se ou são representados no mundo.

Ainda que Edward Said, em Reflexões sobre o Exílio e Outros Ensaios, trate da condição de exílio como categoria diferente da categoria do imigrante, considerando para tanto que, ao exilado, não houve alternativa para sua expatriação, enquanto ao emigrado, “há sempre a possibilidade de escolha, quando se trata de emigrar”[1], observa-se entre ambas as categorias prerrogativas comuns bastante significativas enquanto processo de deslocamento de sujeitos entre fronteiras. Uma das singularidades observadas diz respeito a uma visão contrapontística que o sujeito do deslocamento possui em relação aos dois (no mínimo) espaços distintos por ele conhecidos – um deslocamento que, por sinal, permite ao sujeito deste processo ter uma consciência de dimensões simultâneas[2]. É dessa consciência de dimensões simultâneas (entre culturas), e dessa visão contrapontística (entre diferenças de espaços de significação) que Said estipula um topos ao exilado, cuja forma é uma memória em que ambas as dimensões dialogam, se entretecem, e comunicam-se como fatos reais de realidades distintas[3]. Logo, qualquer que seja o processo de deslocamento do sujeito (obrigatório, como no caso do exilado, ou não, como no caso do imigrante), haverá sempre tal consciência e visão contrapontual, já que, inevitavelmente, comparações entre um antes (como ponto de origem) e um depois (como ponto de destino) se farão existir através do sujeito deslocado. Essa prerrogativa, comum tanto ao exilado quanto ao imigrante, sincroniza experiências múltiplas do sujeito em deslocamento, ou deslocado, às diferenças percebidas entre um ponto e outro, entre uma cultura e outra. A memória, nesse sentido, é fundamental para que, a partir dela ou através dela, o sujeito constitua um novo léxico de significados, constitua uma realidade dialógica entre dimensões diferentes de conhecimento acessados por ele.

Para se determinar, porém, com exatidão a categoria em que se insere o processo de deslocamento do sujeito, é necessário compreendermos o significado da ausência que o sujeito determina enquanto emigrante, e o significado que a presença dele estabelece enquanto imigrante. Ressalta-se que tanto a ausência quanto a presença que tal sujeito provoca em seu processo de deslocamento surgem pertinentemente numa memória social como um efeito de uma historicidade localizada no sujeito, ou seja: no ponto de origem, a ausência do sujeito implicará numa ausência de historicidade localizada no sujeito e reconhecida pelos demais sujeitos que no ponto de origem permaneceram; no ponto de destino, a presença do sujeito representará a presença da historicidade localizada nele e reconhecida (etnicamente ou lingüisticamente) pelos demais sujeitos entre os quais esse sujeito se estabelece. Seria, através de uma memória social, um primeiro aspecto do significado que a ausência/presença do sujeito deslocado produz. Com efeito, seria.

Abdelmalek Sayad em A Imigração ou os Paradoxos da Alteridade trata, como sociólogo, de outras condicionantes que se revelam no processo de deslocamento do sujeito emigrante/imigrante. Sua análise é imprescindível para se ater de modo relevante ao fenômeno migracional. No ensaio “O que é um Imigrante?”[4], Sayad estuda e analisa várias facetas da migração argelina à França, estabelecendo questões bastante apropriadas ao que representou, representa, e representará a imigração de argelinos (ou qualquer outro grupo de sujeitos que tenham origem em nações “subdesenvolvidas”) à França (ou à qualquer nação detendora de poder político e financeiro). Tratando especificamente desta imigração, Sayad explora de modo convincente o papel do Estado em atribuir significado ao imigrante. No caso da França, Sayad menciona:

“Enquanto a expansão econômica [da França], grande consumidora de imigração, precisava de mão-de-obra imigrante permanente e sempre mais numerosa, tudo concorria para assentar e fazer com que todos dividissem a ilusão coletiva que se encontra na base da imigração. Com efeito, emanando de todos os horizontes políticos e sociais (…) só se viam então – e isso durante décadas – proclamações e declarações que, todas, desejavam ser tranqüilizadoras; fossem quais fossem os sentimentos que se pudesse alimentar e as opiniões que se pudesse ter em relação aos imigrantes, não se parava de afirmar que eles eram necessários, quando não indispensáveis, para a economia e até mesmo para a demografia francesas. O resultado disso tudo foi que todos acabaram por acreditar que os imigrantes tinham seu lugar durável, um lugar à margem e na parte inferior da hierarquia social, é verdade, mas um lugar duradouro; (…)”[5].

O que condiciona, num primeiro momento, a aceitação por parte do país (França) que recebe o imigrante, é o valor que o mesmo possui enquanto mão-de-obra, enquanto capital humano e força de trabalho. Em contrapartida, e já analisando o significado da ausência deste mesmo sujeito de deslocamento no seu ponto de origem (no caso, a Argélia), Sayad, no ensaio “O ‘Pecado’ da Ausência ou Efeitos da Emigração”[6] revela um sistema no qual a oposição entre um mundo da emigração e um mundo da imigração constitui-se em peça chave para o produto do domínio que se têm sobre o dominado[7]; “produto” pois é resultado de forças antagônicas (políticas e financeiras), e, como resultado, estabelece uma ordem de migração específica: dos países pobres aos países ricos. Nesse sentido, as motivações que levam um sujeito a emigrar também serão aquelas que, numa dada circunstância econômica e social, levam um país a recebê-lo como imigrante (no caso, legal). De qualquer forma, o emigrante não deixa seu lugar de origem senão por uma expectativa de que fora existam elementos (ou circunstâncias) que dentro do seu universo não há. Motivações à parte, mesmo porque tal questão está fora de nossa alçada, o importante é saber que nenhum fenômeno de migração é gratuito, tanto no que se refere ao plano dos sujeitos deste processo quanto ao que se refere ao plano político nacional e internacional.

É muito pertinente esclarecer nesse momento, o que diferencia o estrangeiro do imigrante, isso de acordo com a análise que Sayad faz no ensaio “Imigração e Convenções Internacionais”, pois:

“Um estrangeiro, segundo a definição do termo, é estrangeiro, claro, até as fronteiras, mas também depois que passou as fronteiras; continua sendo estrangeiro enquanto permanecer no país, mas apenas até as fronteiras. Depois que passou a fronteira, deixa de ser um estrangeiro comum para se tornar um imigrante. Se “estrangeiro” é a definição jurídica de um estatuto, “imigrante” é antes de tudo uma condição social. Se todos os imigrantes, no sentido pleno do termo, são necessariamente estrangeiros (…) muitos estrangeiros que moram e trabalham na França não são contudo imigrantes; (….)”[8]

Revela-se, embora não diretamente, uma diferença entre ser estrangeiro e ser imigrante num dado plano nacional, uma diferença que é condicionada não por um estatuto jurídico (pois ambos, sob esse aspecto, são estrangeiros ou não-nacionais), mas por uma condição social. O estrangeiro, como Sayad irá expor no mesmo ensaio, por mais que trabalhe e viva num dado plano nacional, não será considerado imigrante, pois sua origem constitui-se em um valor sobre o qual a imagem dele se espelhará. Trocando em miúdos: o estrangeiro é considerado como tal (e não como imigrante) desde que seu país de origem seja um país rico ou poderoso politicamente; por outro lado, o imigrante será sempre imigrante se, além de trabalhar e viver num dado plano nacional, vier a esse plano nacional de um país tanto pobre quanto fraco politicamente (periférico). Cito:

“Lembrar isto, lembrar as definições sociais do imigrante e do estrangeiro, é lembrar a relação de dominação que foi estabelecida entre sistemas socioeconômicos diferentes, entre países e continentes desigualmente desenvolvidos e que retraduz de forma idêntica no fenômeno da emigração/imigração. Não se entenderia nada sobre a natureza desse fenômeno, ou seja, sobre o modo de geração da população que se tornou “disponível” para emigrar, sobre o significado profundo de acordos concluídos entre os países de emigração e os países de imigração, sobre o modo como são recrutados os emigrantes e como serão tratados mais tarde enquanto imigrantes, se não lembrássemos que a imigração consagra a relação de dominação que a produziu e que a mantém.
De todas as negociações que são feitas dessa forma entre, por um lado, os países pertencentes ao “pólo norte” – países ricos e poderosos, industrializados e desenvolvidos – e, por outro lado, os países pertencentes ao “pólo sul” – países pobres e dominados, com a chamada economia “tradicional” (…) as negociações de mão-de-obra talvez sejam as que revelam mais claramente sua natureza assimétrica. (…)”[9]

Isso implica, por fim, que além da historicidade localizada no sujeito da migração como memória em que realidades distintas se comunicam e se entretecem, há também como significado do processo de deslocamento (ausência/presença) um sistema sócio-político que o legitima em categorias diferenciadas de representação (estrangeiro/imigrante). Esse sistema, bastante peculiar na sua amplitude cultural, permite que diferenças sócio-políticas entre nações (mais desenvolvidas e menos desenvolvidas) se reiterem nos sujeitos da migração, os localizando em diferentes planos de importância e significado. Nesse sentido, passamos a tratar não apenas do processo de deslocamento, que é uma primeira etapa deste ensaio, como também do processo de identidade e identificação, pois é o meio pelo qual diferenças num dado plano são determinadas.

Se pensarmos, principalmente, no sujeito da imigração, no imigrante[10], vamos entendê-lo como “identidade” diferenciada em um dado plano nacional ao qual ele é um não nacional ou “estrangeiro”. “Identidade”, porque além da historicidade que ele acarreta enquanto memória de um dado lugar (outro), ele também singulariza a imagem deste lugar. Mas isso – como irá expor Homi K. Bhabha em O Local da Cultura, – seria qualificá-lo a partir de uma totalidade representacional. O problema está particularmente, e desde o momento em que se projeta uma totalidade representacional sobre um sujeito, na facilidade com que este mesmo sujeito será marcado pela estereotipia[11]. Conforme Homi Bhabha:

“Para a identificação, a identidade nunca é um a priori, nem um produto acabado; ela é apenas e sempre o processo problemático de acesso a uma imagem de totalidade. As condições discursivas dessa imagem psíquica da identificação serão esclarecidas se pensarmos na arriscada perspectiva do próprio conceito de imagem, pois a imagem – como ponto de identificação – marca o lugar de uma ambivalência. Sua representação é sempre espacialmente fendida – ela torna presente algo que está ausente – e temporalmente adiada: é a representação de um tempo que está sempre em outro lugar, uma repetição.
A imagem é apenas e sempre um acessório da autoridade e da identidade; ela não deve nunca ser lida mimeticamente como aparência da realidade. O acesso à imagem da identidade só é possível na negação de qualquer idéia de originalidade ou plenitude; o processo de deslocamento e diferenciação (ausência/presença, representação/repetição) torna-a uma realidade limiar. (…)”[12]

Ainda tratando da representação do outro (como diferença), Bhabha comenta que:

“O lugar do Outro não deve ser representado, como às vezes sugere Fanon, como um ponto fenomenológico fixo e oposto ao eu (…). O Outro deve ser visto como a negação necessária de uma identidade primordial – cultural e psíquica- que introduz o sistema de diferenciação que permite ao cultural ser significado como realidade lingüística, simbólica, histórica. Se, como sugeri, o sujeito do desejo nunca é simplesmente um Eu Mesmo, então o Outro nunca é simplesmente um Aquilo Mesmo, uma frente de identidade, verdade ou equívoco.”[13]

O processo de identidade e identificação, ligado intimamente à alteridade[14], ou seja, à diferença, possui em sua base estruturas pelas quais se “cristaliza” em imagens. As imagens, bastante problemáticas para aqui tratarmos com profundidade[15], reivindicam e são um campo de representação no qual pode ou não haver um diálogo de diferenças não essenciais, porém, e muitas vezes, artificiais (como a estereotipia, por exemplo).

Finalmente é a partir desta introdução (quase sumária) sobre os aspectos relativos às representações dos sujeitos da migração que analisaremos, agora, o romance de Oswald de Andrade, Marco Zero.

A análise empreendida estabelece três categorias para representação das personagens não nacionais constantes nos dois volumes de Marco Zero (A Revolução Melancólica e Chão): a categoria do imigrante, a do colono, e a do estrangeiro. Antes de abordá-las, faremos uma rápida apresentação do livro analisado.

A pluridiscursividade e dissonância em Marco Zeroefetivam uma dialogicidade interna através da qual há a revelação do contexto social concreto.[16] Uma vez que na pluridiscursividade o embate entre discursos[17] (não nacional X não nacional; nacional X não nacional) se realiza de forma direta, fica evidente os limites que determinam os discursos enquanto diferenças:

“Jango pensava na mística com que os amarelos recobriam o seu feudalismo econômico.
– O colono que vocês mandam para cá é um escravo.
– Japão grande cooperativa, dono imperador.
Kana permanecia quieto (…).
Ficava risonho de repente como um capitão vitorioso.
– Você está à disposição não de São Paulo, mas de Yamato Damashi, isto é, do Grande Japão. Você não passa de um capítulo de luxo da espionagem amarela. Há outros na guerra paulista. Outro dia explodiu o laboratório químico onde se trabalhava com fulminato de mercúrio…
– Munto pra cachão… non?
– Veja como você sabe! Pois bem, morreu o químico e ofereceram-se doze japoneses que estão fabricando o explosivo com a mais moderna das técnicas, chuveiro, cabinas isoladas, capas de borracha… São técnicos de guerra do Estado-Mairo Japonês…
– Quem foi que disse? quem foi que disse? Doze… munto mentira, munto mentira… tudo são parantadores de batatinha, non? Noroeste, pescadores litoral… non? Japão tudo já xabe guera!
(…) Jango exclamava:
– Vocês precisam é levar uma surra!
– Japão garantido ganha Guerra Mundial.
– Vocês têm que bater a China, a Rússia, os Estados Unidos…
– Vence os três!
– E toma conta da terra!
– Non, garantido non. Japão non quer tera. Só ordem… non?
– A ordem amarela… (…)”[18]

Essa passagem, na qual a personagem nacional Jango e a personagem não nacional Kana dialogam, é significativa dada a inter-relação dos dois discursos nela presentes. Jango, como tantas outras personagens nacionais (daria para fazer uma lista delas), “observa” a diferença que a personagem Kana representa pelo viés do que o constitui como não nacional. Dessa forma, Jango, através do discurso “nacional”, pontua o discurso do outro como antagônico, e não só assim: Jango pontua a ameaça que o mesmo discurso representa enquanto possibilidade de uma “ordem amarela”, de outrem, cuja força é superior. Esse estranhamento entre as personagens, condicionado pela tensão que, por sua vez, é provocado pelo embate entre discursos, determina lugares diferenciados a cada uma, sendo que a divergência se estabelece na exotopia que lhes é própria[19]. É necessário que se diga que, na “qualidade” de ser nacional, a personagem Jango determina-se por uma positividade cuja forma é o que Benedict Anderson, em Nacão e Consciência Nacional, irá chamar de nation-ness[20]. Logo, a contrapartida é regida por uma “negatividade” expressiva: o próprio discurso do outro (em relação ao de Jango) já se manifesta (antes mesmo de sua enunciação) como antagônico, por não somente partir de um não nacional, mas como também por partir de um já dado lugar através do qual a personagem Kana é representada, olhada, conceituada. Esse lugar, que no seu devido tempo exploraremos melhor, é pré-fundado pelas personagens nacionais sobre as não nacionais (principalmente japonesas) através de uma imagem totalitária que se opera a partir de um viés étnico-racial. Kana constitui uma diferença na sua “imagem” étnica, dando origem (em termos imagéticos) a polarização nacional/não nacional. Kana, enquanto personagem, é um produto acabado – ao menos, no que se refere a grande parte do olhar das personagens nacionais, porque fala a partir de seu lugar não nacional, e – principalmente, porque fala a partir de seu lugar de “imigrante” japonês. Muito interessante, por exemplo, é a passagem na qual personagens nacionais determinam seu próprio lugar de positividade em relação ao lugar do não nacional:

“O Grupo Escolar havia sido salão de baile nos tempos idos, quando o imigrante japonês invadira o litoral sul do Estado, encaminhando-se para a formação de seus quistos raciais.
As salas abriam janelas no edifício chato, alongado. Pela estrada passava o atropelo das culturas sertanejas, conduzidas em carroças por pretos ativos. A diretora afirmara em reunião que o professorado primário era uma tropa de choque da nacionalidade. E sugeria que se fizesse chamada patriótica, indicativa da origem de cada aluno. Eufrásia Beato estava de pé, num corpinho branco:
– Kioto Nassura…
– Sou basirera…
– Sakueto Sakuragi…
– Sou basirero…
– Josué dos Santos…
– Sou piracicabano!
– Massau Muraoka…
O pequenino bonzo de gravarua fitava a professora com os olhos entreabertos e longos.
-Massau, você sabe que também é brasileiro? Você é paulista, diga, vamos! Diga só para contentar a Dona Eufrásia.
O menino estourou em lágrimas ante a sala surpresa. (…)”[21]

Observar esse primeiro indício de totalidade representacional no romance (totalidade, pois o lugar do nacional em sua positividade já é pré-dado e definido, como também, e de igual modo, o lugar do não nacional define-se a partir do – e em oposição ao – nacional), nos leva erroneamente a acreditar numa estereotipia recorrente nas personagens. Se, é verdade, em grande parte do romance as personagens (principalmente não nacionais) são estereótipos vazios de subjetividade, isso se deve a uma leitura geral que desconsidera o olharestabelecido entre as personagens. Kana, por exemplo, e a partir do momento em que guarda o segredo da relação que seu patrão, Conde Alberto de Melo, tem com uma francesa, ganha, do patrão, uma confiança que nenhuma outra personagem, no romance inteiro, depositou nele (por ser japonês):

“… Neste momento numa jaqueta irrepreensível de criado, Kana veio passar grandes copos de uísque, com nacos de gelo dentro. (…) Quando o criado saía, o oficial observou que o japonês constituía um dos problemas mais graves do país.
– Nunca tive criado melhor – fez o conde. – Os japoneses são ótimos… Não troco Kana por ninguém….
– Eu, pelo contrário, desconfio muito dessa gente….”[22]

Em relação à personagem Conde Alberto de Melo, temos uma mudança de olhar muito significativa sobre Kana, visto que no princípio do romance, e por uma narração indireta, essa personagem pontua:

“O homem de marfim [Conde Alberto de Melo], encurajado no seu banco, sentiu-se tomado duma consciência espetacular do perigo. Uma idéia o obsedava. Fitou em frente o vulto impassível do piloto japonês [Kana}. Queria fugir da idéia. A tempestade aumentava. O pequeno aparelho tcheco talvez não resistisse. O céu turvo afogara tudo em uma neblina molhada. Só a calma do piloto imóvel não precipitava a catástrofe. O antigo criado da casa do Jardim América era hoje o piloto Kana. Só a sua fleuma detinha o cataclisma. A visibilidade era nula. Kana servia o café matinal à Felicidade Branca no quarto [esposa do Conde Alberto de Melo]. E viera aquela idéia de espioná-los. Nenhuma intimidade se estabelecera entre a patroa e o japonês. Ele se tornara um obsedado em segui-los até que um dia tinha-o visto entrar sem bater. O japonês podia suicidar-se com ele. – Talvez amasse a sua mulher!
– Poca gasolina, nô?
(…) Se vivesse… da alma de um amarelo podia esperar tudo. (…)”[23]

Desse modo, a representação de Kana é transitiva enquanto ponto de mudança do olhar de um nacional – Kana não deixa de ser japonês, porém o aspecto do olharque lhe é dirigido é que muda, o transforma. Da representação totalitária que antes incidia nele, como uma identidade acabada, produto de uma identificação estereotipada, Kana passa a possuir uma representação e um lugar diferenciado no discurso do outro.

Uma outra personagem bastante peculiar e bastante relevante na trama do romance é a personagem Nicolau Abramonte; peculiar não apenas porque encontra-se no lugar de não nacional e, assim, porque encontra-se em uma negatividade opositiva em relação ao lugar do nacional, mas também, e principalmente, porque sua estereotipia é marcada não por uma “imagem” étnica (já que é italiano/europeu), mas por seus “modos”, ou para ser exato, por seu “comportamento”. Além disso, há na personagem um deslize entre categorias[24].

Nicolau Abramonte é um imigrante italiano que enriqueceu, se tornou prefeito, e não muito depois, banqueiro. Nessa trajetória, e para todas as personagens nacionais, incluindo o narrador, Nicolau Abramonte é marcado como uma “ameaça”, como se antagônico aos interesses dos nacionais, principalmente aos interesses (e conceitos) da família Formosa. O olhar que lhe é destinado, é um olhar consensual, através do qual há, para ele, um lugar fixo, determinado por uma estereotipia recorrente. Para ilustrar, seguem algumas passagens que transcreveremos abaixo:

“Nicolau Abramonte, a barriga sacudindo no colete de berloques, andava de chapéu na cabeça dentro de casa. Comia finóquio e blasfemava. Nas oficinas nascentes, como no campo antigo de onde viera, explorava até os ossos os parentes pobres, os compadres, o próximo em geral.
Era inimigo da sociedade.”[25]

“D. Filomena recomendara ao marido que mandasse tirar o retrato do Coração de Jesus entronizado na casa nova. Acorrendo de avental, e vendo na porta o bigodinho loiro na cara redonda de Vitalino, perguntou se era o fotógrafo. O novo gerente do Banco Abramonte sentiu-se varado de ódio e pensava já em se queixar daquela criada intempestiva, quando soube que se tratava da própria dona da casa. 
Ficou sozinho na sala de visitas, onde duas litografias… se penduravam altas, nas molduras de purpurina. (…) Vitalino examinou com o olhar o gosto novo-rico que estardalhava nas cortinas de veludo verde-claro com babados de ouro. O resto tinha sido comprado na primeira casa de presentes da cidade.
– Cafajestada!”[26]

“(…)
Uma moça alta, de olhos vivos e ingênuos, apareceu com a cachorra ao colo. Sem cumprimentar [o Vitalino], gritou:
– Ludovica, tem visita aqui. Eu acho que é o homem…
A frase perdeu-se lá dentro. Pareceu a Vitalino que a pequena dissera: – O homem a quem papai deu emprego… – Teve vontade de pegar a pasta e sair. A cachorra o agredia. Para uma, era o fotógrafo, para outra, o cavador. De fato, sua vida estava definitivamente enroscada nas mãos grosseiras do italiano que tivera aquela estranha e sinistra idéia de convidá-lo para jantar. Queriam que ele servisse de cobaia. A família imigrante queria fazer dele um ensaio a recepção das visitas que não haviam de faltar. (…)”[27]

“Ter sido escorraçado pelo Abramonte! – Vocês me pagam! – [Lírio de Piratininga] Penetrou num café popular das docas. Aquela capa de D. Filomena era um símbolo. Ele conhecera a impermeabilidade da raça branca no contato conjugal. Quando chegara à Jurema, Nicolau Abramonte usava sapatos vermelhos de búfalo e Ludovida calças compridas com crochê. O sobretudo claro, o jaquetão impecável, as pochetes da mesma cor das gravatas tinham imposto à família uma preocupação nova na indumentária, e até na higiene. Era negro mas negro da Casa Grande que ensinara o imigrante a tomar banho. (…)”[28]

Há tantas passagens nas quais Nicolau Abramonte é apresentado, e representado, como um “grosso” e “sem educação”, que seria fácil legitimar esse lugar de imigrante, na sua estereotipia, como comum a todas as representações de imigrantes italianos. No entanto, se faz necessário algumas ressalvas, isso porque o olhar que parte dos nacionais, é sempre, e de modo constante, condicionada pela posição social que estes ocupam na trama, ou seja, condicionada pela classe de possuidores de capital (ou aspirantes a) na qual se encontram. Essas personagens nacionais, como Coronel Bento de Formosa, Vitalino, Lírio de Piratininga, e Felicidade Branca, entre tantas outras, se “vêem” incomodadas pela presença de Abramonte fora do seu lugar estipulado dada a sua condição de imigrante – ou seja, pela presença dele entre os detentores de capital e não na sua “qualidade” e lugarde imigrante, que é a de mão-de-obra nos cafezais paulistas. Do contrário, (se o olhar parte de um nacional cuja classe social não é a dos possuidores de capital financeiro ou político), teríamos um outro olhar bastante significativo:

“[Padre Beato] Encontrara Monsenhor Palude. Encontrara os Abramonte. Encontrara o Major Dinamérico Klag. Gente de primeira ordem.”[29]

“Gente de primeira ordem” constitui-se em uma representação de classe social, o que é curioso, pois coloca personagens não nacionais como Monsenhor Palude e Abramonte na mesma ordem das personagens nacionais como o Major Dinamérico Klag (“um paulista de quatrocentos anos”), e não em categorias diversas. Portanto, o lugar de personagens não nacionais e nacionais se conjuga, não por uma questão migracional, mas por uma questão socioeconômica. É, de fato, uma exceção, visto que em todo o restante do romance, não há essa conjugação como preponderante das categorias estabelecidas entre nacionais e não nacionais.

O que determina, de fato, a relação e dissensão entre nacionais e não nacionais (e aqui retomando toda a introdução pertinente ao assunto), é o esquecimento. Curiosamente, nenhuma das personagens não nacionais possui memória enquanto prerrogativa de uma estadoanterior à migração. Isso é uma característica relevante no romance para se determinar a negatividade do lugar em que o imigrante, como tal, se encontra, frente a positividade do lugar em que o nacional se determina (pois possui memória e constitui na sua historicidade um significado próprio). A exceção, e isso por uma razão bem específica, fica por conta da personagem Salin Abara, já que a mesma, imigrante “turca”, contrapontuou as duas dimensões (citadas na introdução) na sua historicidade:

“(…). A religião do Brasil era uma festa de procissões, altares vistosos e novenas. Ele [Salim Abara] viera de um sentimento tribal semítico, onde uma série de máximas constituía a moral. Com isso trazia a bestialidade milenária do negócio. Abriu venda de pinga numa encruzilhada. Coito de assassinos, pouso de morféticos, fiado de colonos e sitiantes. Engordara, chegara à Bartira. Naquele lugarejo do litoral sul, tinha tido anos atrás a primeira noite da terra desconhecida. (…) No país em formação, fora o turco que pede 70 para deixar por 40. Conheciam-no nas fazendas e nas vilas. Pensava no longo oceano. A mulher tinha ficado em Beirute, onde havia camelos nas ruas. Quando D. Zilé surgiu, afogou a beleza oriental na fartura da terra. Se abrasileiraram. Vieram os filhos [Jorge Abara, Latife Abara]. Cresceram e estudaram. Ela permanecia no balcão. Descabelada, matinê, sapatos folgados, barriga flácida, balançando no vestido, os dedos gordos cheios de anéis. (…) Na memória de Salim Abara passou uma briga feroz que tivera com Idílio Moscovão. (…) O japonês chegara também pelo mar, percorrera as mesmas estradas penosas e desertas. Mas trazia a cooperação, e o dumping. Enquistava-se na terra do caboclo. Salim avisara:
– Lasbão! Non bega mizade co’essa raça! Deus te livre!”[30]

Porém, não há voz própria a Salim Abara; há, aliás, uma justaposição do discurso do narrador (enquanto coordenador do enredo) e da historicidade da personagem. A memória, nesse sentido, se sobrepõe ao enunciado, determina-o como campo em que dimensões simultâneas se entretecem: a da religião (em seu duplo) e a de localidade (Beirute x Brasil). É, salvo engano, a única passagem em todo romance em que temos uma consciência explícita de dimensões simultâneas (entre culturas), e uma visão contrapontística (entre diferenças de espaços de significação).

Podemos, agora, abordar a questão das categorias de migração, uma vez que estamos pautados pela narrativa de Marco Zero. Nossa hipótese é a de que as categorias imigrantecolono, e estrangeiro são distintas entre si por dois critérios[31]. Primeiro: pelo critério sócio-cultural (tanto imigrantes quanto colonos tendem a pertencer a estratos mais baixos por possuírem parca educação formal enquanto que os estrangeiros possuem melhor nível social e educacional, não sendo poucos, entre eles, os que exercem ocupações que exigem especialização). Segundo: por um critério econômico (a fixação e posse da terra, distingue colonos de imigrantes, já que os primeiros adquirem lotes e estabelecem pequenas propriedades fundiárias, enquanto os segundos vendem sua força de trabalho tanto no campo quanto no espaço urbano).

Pelo critério sócio-cultural, encontramos facilmente na personagem Nicolau Abramonte características (já abordadas) que a determinam enquanto imigrante. O deslize entre categorias que antes foi mencionado a respeito desta personagem, refere-se ao fato de que a mesma se revela como “estranha” e “estrangeira” na sua posse econômica e política, ou seja, se constitui à parte do critério econômico determinada a ela (a de mão-de-obra, por exemplo). Kana, de igual modo, terá um deslize entre categorias, como podemos observar na passagem transcrita abaixo:

“Felicidade Branca estava num tailleur ferrugem, o chapéu alto e pequeno terminando a cabeça clara num véu. Considerava aquele homem [Robério Spin], quase calvo de costas, um advogado incapaz, como os outros, de obter o divórcio. O casamento devia ser indissolúvel. As francesas também deveriam deixar de existir. Fora sempre contra o divórcio! Não sentia vocação para a desonestidade. Um caso de família firmara nela a noção de recato e de responsabilidade social. Mas não poderia se casar mais, enquanto o marido podia afrontar a sociedade em companhia de uma criatura de bordel. Cachorro! Estava de calças, uma manhã, quando o copeiro japonês entrara sem avisar no quarto para lhe servir café. O advogado fez uma mesura e saiu sobraçando um volume grosso. Kana, em vez de ser despedido, passara a chofer e agora era o piloto do avião particular do conde. Era um japonês fino, educado na Inglaterra. Mas isso não justificava a atitude do marido. (…)”[32]

A formação educacional de Kana, como um japonês instruído na Inglaterra, sobressai na análise de Felicidade Branca, como um lugar diferenciado (e estranho) ao sujeito da migração e, principalmente, ao sujeito da imigração japonesa. Kana, em sua multiplicidade funcional, não está na categoria de colono, primeiro por não possuir terra, nem propriamente na de imigrante, já que sua formação educacional assim não o dispõe.. Logo, Kana encontra-se próximo à categoria de estrangeiro, via educação e conhecimentos, embora no nível mais baixo desta categoria, pois ele não deixa de estar no lugar de imigrante, já que por sua negatividade étnica/racial, constitui-se antagônico ao nacional. É ele uma das personagens não nacionais mais interessantes para ser analisada, isso porque figura como incógnita do ponto de vista dos nacionais.

Esses dois exemplos de deslize entre categorias não invalidam em absoluto as categorias já citadas, mas pelo contrário, as reafirmam enquanto exemplos de singularidades constatadas a partir do todo estudado. Inclusive, e por outro lado, poderíamos fazer uma lista de uma dezena de personagens não nacionais que se enquadram perfeitamente nas categorias e nos critérios já citados. Não a tomamos, no presente ensaio, porque elas não representam uma transitividade representacional que aqui é tema, ao contrário de Kana, Nicolau Abramonte, e de Salim Abara, cujas qualidades intrínsecas nos dispusemos a estudar.

REFERÊNCIAS 

ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. S.P.: Ática, 1989.

ANDRADE, Oswald. Marco Zero I A Revolução Melancólica. S.P.: Globo, 1991.

______. Marco Zero II Chão. S.P.: Globo, 1991.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética (A Teoria do Romance).S.P.: HUCITEC, 2002.

______. Estética da Criação Verbal. S.P.: Martins Fontes, 2000.

BHABHA, Homi K. Local da Cultura. B.H.: UFMG, 2003.

CAPELA, Carlos E. S. “Literatura e Imigração: convergências.” em Anais do Congresso Internacional ABRALIC-BH, B.H. : ABRALIC, 2003. (ed. em CD-Rom).

SAID, Edward. Reflexões Sobre o Exílio e Outros Ensaios. S.P.: Companhia das Letras, 2003.

SARTRE, Jean-Paul. O Imaginário. S.P.: Ática, 1996.

SAYAD, Abdelmalek. A Imigração ou Os Paradoxos da Alteridade. S.P.: EdUSP, 1998.

 

[1] SAID, Edward. Reflexões sobre o Exílio e Outros Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; p. 54.

[2] “A maioria das pessoas tem consciência de uma cultura, um cenário, um país; os exilados têm consciência de pelo menos dois desses aspectos, e essa pluralidade de visão dá origem a uma consciência de dimensões simultâneas, uma consciência que – para tomar emprestada uma palavra da música – é contrapontística.” idem. p. 59.

[3] “Para o exilado, os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem inevitavelmente contra o pano de fundo da memória dessas coisas em outro ambiente. Assim, ambos os ambientes são vividos, reais, ocorrem juntos como no contraponto. Há um prazer específico nesse tipo de apreensão, em especial se o exilado está consciente de outras justaposições contrapontísticas que reduzem o julgamento ortodoxo e elevam a simpatia compreensiva. (…)” idem, ibidem. p. 59.
SAYAD, Abdelmalek. A Imigração ou Os Paradoxos da Alteridade. São Paulo: USP, 1998; pp. 45-72.

[4] SAYAD, Abdelmalek. A Imigração ou Os Paradoxos da Alteridade. São Paulo: USP, 1998; pp. 45-72.

[5] idem. p. 47.

[6] idem. pp. 105-136.

[7] “Por durar tanto, por se generalizar a ponto de se tornar um dado estrutural de todos os países desenvolvidos e, mais fundamentalmente, por se institucionalizar sob a forma intrínseca entre um mundo da emigração (que tende a se confundir com o mundo subdesenvolvido) e o mundo da imigração (mundo identificado com o mundo desenvolvido) e, dessa forma, por se universalizar, a imigração acabou por se constituir em sistema.” idem. p. 105.

[8] idem. p. 243. Grifo nosso.

[9] idem, ibidem. p. 245.

[10] Sayad trata do sujeito de migração, como um sujeito que participa de duas ordens, como emigrante e imigrante, sem desvincular uma da outra. Como nosso propósito é tratar especificamente da representação do imigrante em Marco Zero, demos prioridade na análise para somente uma das ordens, na qual o imigrante se encontra como não nacional.

[11] “O estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do Outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e sociais.” BHABHA, Homi K. Local da Cultura. B.H.: UFMG, 1998; p. 117. Itálico do autor.

[12] idem, ibidem; pp. 85-86. Grifo nosso, itálico do autor.

[13] BHABHA, Homi K. Local da Cultura. B.H.: UFMG, 1998; p. 86. Itálico do autor.

[14] Ainda a partir de Bhabha, o processo de identidade e identificação deve-se a um processo de (re)conhecimento pelo Outro: “…existir é ser chamado à existência em relação a uma alteridade, seu olhar ou locus.” idem; p. 75.

[15] Uma discussão valiosa sobre o tema da imagem, é proposta por Sartre, em O Imaginário (SARTRE, Jean-Paul. O Imaiginário. S.P. : Ática; 1996.)

[16] BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética (A Teoria do Romance).S.P.: Hucitec-Annablume, 2002; pp. 85-106.

[17] “… todas as linguagens do plurilinguismo, qualquer que seja o princípio básico de seu isolamento, são pontos de vistas específicos sobre o mundo, formas da sua interpretação verbal, perspectivas específicas objetais, semânticas e axiológicas. Como tais, todas elas podem ser confrontadas, podem servir de complemento mútuo entre si, oporem-se umas às outras e se corresponder dialogicamente. Como tais, elas se encontram e coexistem na consciência das pessoas, e antes de tudo na consciência criadora do romancista.” idem. p. 98. Grifo nosso.

[18] ANDRADE, Oswald. Marco Zero I A Revolução Melancólica. (Obras Completas de Oswald de Andrade) S.P: Globo, 1991; p. 199.

[19] “Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim, não pode ver: (…) Graças a posições apropriadas, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la totalmente, seria preciso fundir-se em um, tornar-se um único homem. (…) Esse excedente constante de minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro, é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar, (…) todos os outros se situam fora de mim. A exotopia concreta que beneficia só a mim, e a de todos os outros a meu respeito, sem exceção, assim como o excedente de minha visão que ela condiciona, em comparação a cada um dos outros (…); tudo isso é compensado pelo conhecimento que constrói um mundo de significados comuns, independente dessa posição concreta que um indivíduo é o único a ocupar, e onde a relação “eu e todos os outros” não é absolutamente não invertível, pois a relação “eu e o outro” é, no abstrato, relativa e invertível, porque o sujeito cognoscente como tal não ocupa lugar concreto na existência.” (BAKHATIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal.S.P.: Martins Fontes, 2000; pp. 43, 44. grifo nosso) É na qualidade exotópica, dessa forma, que a diferença entre “eu e o outro” se compõe, mesmo que ambos de nós ocupássemos um único lugar no mundo, ou seja, mesmo que olhássemos para o mesmo ponto, teríamos sobre esse ponto, divergentes observações que nos caracterizam em relação a uma alteridade diferenciada.

[20] “Parto de que a nacionalidade, ou, como se talvez prefira dizer, devido às múltiplas significações dessa palavra, nation-ness, bem como o nacionalismo, são artefatos culturais de um tipo peculiar. Para compreendê-los…é preciso que consideremos com cuidado como se tornaram entidades históricas, de que modo seus significados se alteraram no decorrer do tempo, e por que… inspiram uma legitimidade emocional tão profunda” p. 12 (grifo nosso) e: “Dentro de um espírito antropológico, proponho, então, a seguinte definição para nação: ela é comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e soberana.”(…)”Ela é imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão”. ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional S.P.: ed. Ática, 1989; p. 14.

[21] ANDRADE, Oswald. Marco Zero I A Revolução Melancólica ob. cit. p. 50. Grifo nosso.

[22] ANDRADE, Oswald. Marco Zero II Chão. (Obras Completas de Oswald de Andrade) S.P.: Globo, 1991; p. 141.

[23] ANDRADE, Oswald. Marco Zero I A Revolução Melancólica ob. cit. p. 74. Grifo nosso.

[24] Mais à frente, quando tratarmos das categorias de migração, voltaremos a trabalhar sobre o tema relativo a esse deslize entre categorias.

[25] ANDRADE, Oswald. Marco Zero I A Revolução Melancólica ob. cit. p. 86.

[26] ANDRADE, Oswald. Marco Zero II Chão. ob. cit. p. 107. Grifo nosso.

[27] idem, ibidem. p. 108. Grifo nosso.

[28] ANDRADE, Oswald. Marco Zero I A Revolução Melancólica ob. cit. p. 116. Grifo nosso.

[29] idem, ibidem. p. 25.

[30] idem, ibidem. p. 24. Grifo nosso.

[31] CAPELA, Carlos Eduardo Schmidt. “Literatura e Imigração: convergências”, Anais do VIII Congresso Internacional ABRALIC-BH, B.H.: ABRALIC, 2003 (edição em CD-Room).

[32] ANDRADE, Oswald. Marco Zero I A Revolução Melancólica ob. cit. p. 145. Grifo nosso.