Uma imersão na reprodutibilidade técnica

João Gabriel Almeida

RESUMO: O presente ensaio busca retomar os conceitos formulados por Walter Benjamin em A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica e repensá-los a partir da revolução linguístico-informacional do Capitalismo contemporâneo, explorando a pertinência e radicalidade que os mesmos tomam na atual conjuntura mundial.

PALAVRAS-CHAVE: Reprodutibilidade técnica; arte; capitalismo cognitivo; revolução; marxismo.

ABSTRACT: This essay reflects about the concepts created by Walter Benjamin in The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction, defending its importance after informacional linguistics revolucion of Nowadays Capitalism.

KEYWORDS: Mechanical reproducibility; art; cognitive capitalism; revolution; marxism.

 

1 WALTER BENJAMIN E SEU O CAPITAL

Quem detém um conhecimento do senso comum sobre Marx se surpreenderia ao ler O Capital. Olavo de Carvalho entraria em choque ao notar que ao invés de manuais para elaboração de bombas há, por exemplo, críticas aos ludditas, movimento inglês que destruía as fábricas. A quarta parte d’O Capital é um traçado histórico da constituição da Indústria e no subcapítulo “Luta entre trabalhador e máquina”, Marx diz:

A enorme destruição de máquinas nos distritos manufatureiros ingleses durante os primeiros 15 anos do século XIX, provada principalmente pelo emprego do tear a vapor, conhecida pelo nome de movimento luddita, proporcionou aos governos antijacobinos de Sidmouth, Castlereagh e Quejandos o pretexto para as mais reacionárias medidas de violência. Era mister tempo e experiência para o trabalhador aprender a distinguir a maquinaria de sua aplicação capitalista e atacar não os meios materiais de produção, mas a forma social em que são explorados. (MARX, 2011, p. 489)

Passagens como esta demonstram uma sutileza do marxismo. O cerne desta teoria não é um anticapitalismo na acepção comum, como se qualquer postura de resistência ao sistema fosse válida. Ao contrário, é uma compreensão de que uma forma social gera seu excedente que, ao cobrar seu espaço na sociedade, gera sua implosão e a obriga se transformar. O Capitalismo, portanto, não é um monstro cujos tentáculos assustadores vão nos englobar, mas uma ameba que tenta fagocitar tudo o que encontra e que, exatamente por isso, pode explodir em uma nova vida. A concepção que é o Capitalismo, e não qualquer outro sistema, o germe de uma sociedade igualitária é uma marca distintiva do marxismo. É o que historicamente distingue o comunismo de diversas correntes anarquistas e o que leva Lênin a escrever o capítulo “Os métodos artesanais dos economistas e a organização dos revolucionários”, no seu famoso O que fazer?. Walter Benjamin é, nesse sentido, um dos grandes marxistas. Ao contrário de seu colega Adorno, Benjamin mantém-se fiel ao princípio da negação da negação que Jaime Osório tenta elucidar:

En los dos casos señalados, hablar de sutura no supone ninguna situacíon superadora (o “cicatrizacíon de la herida”) que borra toda huella de lo desgarrado. Opera más bien “la lógica de la negación de la negación” que “no implica ningún retorno a la identidad positiva, ninguna abolición, cancelación de la fuerza desgarradora de la negatividad, reducción a un momento pasajero en el proceso automediador de identidad”. Por el contrario, “en la negación de la negación”, la negatividade conserva todo su potencia desgarrador; de lo que se trata es de que experimentamos que este poder negativo, desgarrador, que amenaza nuestra identidade es al mismo tempo uma condición positiva de ella”. (OSÓRIO, 2012, p. 32)

Negação da negação, princípio inicialmente hegeliano, é nessa lógica a instituição da posição Singular que funda um terceiro elemento para além da simples dicotomia. É a compreensão que o Outro do Ser não é o Não-ser, pois o Não-ser é constitutivo e não existe sem o Ser. O terceiro elemento é aquele que implode o próprio Ser e gera algo novo, para além do par afirmação/negação.

Essa reflexão inicial permite falar sobre a Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica. Os comentadores desse autor insistem em ler sua obra somente na chave do conceito de experiência, muito influenciados pelo pensamento de Giorgio Agamben. O que essa chave acaba por ocultar, muitas vezes, é o porquê esse conceito era tão caro para Benjamin. Ele era um autor engajado, que acreditava na Revolução. Quando se perde isso de vista, algo se perde do seu pensamento. A arte não está à toa na obra de Benjamin. A impossibilidade da experiência vem sempre carregada da noção de negatividade da negatividade: o que é impossível é exatamente o que implode o conjunto de afirmações e nos obriga a formular o novo.

O ensaio de Benjamin inicia com dois movimentos distintos. O primeiro com a citação “A verdade/real é o que se pode; o falso é o que se deseja” (BENJAMIN, 1996, p. 165) (tradução livre de: “Le vrai est ce qu’il peut; le faux est ce qu’il veut.”), e o segundo exatamente com a aproximação de seu texto à obra de Marx.

A citação vem de uma mulher que viveu durante um período revolucionário. Temos aí um corte temporal típico de Benjamin. A frase de Madame de Duras ressurge como um resto transformado em mônada. Como um Angelus Novus, o autor resgata exatamente a voz de quem a revolução burguesa não pôde atender os anseios. Então, surge um resto da revolução burguesa que diz que a verdade – ou seja, a ordem positiva – está na esfera da possibilidade, enquanto o desejo excede essa ordem positiva, é falso para tal, é uma impossibilidade. Isso abre dois caminhos distintos: ou cair na aceitação passiva do possível, ou ser fiel à impossibilidade do desejo.

A introdução demonstra a escolha do autor. Como Marx, ele propõe-se a analisar o atual estado das coisas, traçando um prognóstico de suas possibilidades e impossibilidades. É crucial compreender que:

[…] esses prognósticos não se referem a teses sobre a arte de proletariado depois da tomada do poder, e muito menos na fase da sociedade sem classes, e sim a teses sobre as tendências evolutivas da arte nas atuais condições produtivas. (BENJAMIN, 1996, p. 166)

Aqui temos uma distinção que faz com que Benjamin seja radicalmente contemporâneo. Ao contrário do que ocorre com outros teóricos, como Lukács, por exemplo, a obra de Benjamin não se deixou iludir pela euforia da Revolução Russa. Ao invés de se conformar com o movimento particular da União Soviética, Benjamin lê o movimento global, influenciado pela noção de totalidade, e entende que, para além de qualquer mérito do comunismo soviete, a lógica mundial ainda é a lógica do Capital. Portanto, é a isso que um teórico preocupado com a Revolução deveria se ater. Nesse momento, devemos fazer uma pausa e compreender o que significa totalidade para o marxismo:

En la totalidad tenemos una unidad que es una actividad (um “ir siendo”), histórica, en tensión interna, en negacíon y conflictividad constitutivas, que la hacen outra desde si misma, que articula, estructura, organiza y jerarquiza la vida societal. La totalidad otorga sentido a la vida em sociedad. Dicho sentido es formulable y explicable al dar cuenta de la actividad conformadora de unidad y de la conflictividad que la constituye. Con ello podemos afirmar que la vida en común es inteligible, explicable de maneira sustantiva. La totalidad constituye una “universalidad diferenciada”, con particulares en donde lo universal se efectiviza como diferencia y da paso “a novidad efectiva de lo distinto” (OSÓRIO, 2012, p. 16-17)

É importante fazer uma ressalva. De forma oportunista, diversos teóricos aproximam totalidade de totalitarismo. O que esses teóricos não compreendem, ou fingem não compreender, é que quando se fala de totalidade em termos marxistas não se está defendendo uma forma política, mas sim dizendo que o Capital opera através da totalidade e que isso torna necessário ter uma leitura de totalidade.

2 WALTER BENJAMIN E O ATUAL CAPITALISMO

Seguindo o texto, Benjamin se esforça para formular conceitos que, “[…] novos na teoria da arte, distinguem-se dos outros pela circunstância de não serem de modo algum apropriáveis pelo fascismo. Em compensação, podem ser utilizados para a formulação de exigências revolucionárias na política artística.” (BENJAMIN, 1996, p. 166). O que Walter Benjamin não tinha como prever era a queda do modelo fordista na década de 70 e a reorganização do trabalho que alguns autores denominam de Capitalismo Cognitivo. Em síntese, essa reordenação da forma de produção pode ser entendida como:

(a) The production of wealth is no longer based solely and exclusively on material production but is based increasingly on immaterial elements, in other words on raw materials that are intangible and difficult to measure and quantify, deriving directly from employment of the relational, affective and cerebral faculties of human beings.
(b) The production of wealth is no longer based on a standardised and homogenous models for the organisation of the labour process regardless of the types of good produced. Production in cognitive capitalism takes place through a wide variety of labour-process models made possible by the development of new technologies of linguistic communication and transportation, and particularly characterised by forms of networking.
As a result of this restructuring of labour processes the traditional unilateral hierarchical form of the factory gradually comes to be replaced by hierarchical structures that are organised territorially via producer chains of sub-contracting suppliers, characterised by cooperation and/or command;
(c) The way in which work is done alters both quantitatively and qualitatively. In the material conditions of labour there is a marked increase in working hours. Often there is also a piling-on of additional tasks, a tendency for the the separation between work time and life time to disappear, and a greater individualisation of work relations. Moreover the nature of work itself comes to involve more and more elements of immateriality. Relational activities, communicational activities and brain activity becomes increasingly present and important. These activities require training, skills and attention: we move beyond the separation between mind and brawn typical of Taylorised work.
(d) The subjection of the worker within the production process is no longer imposed in disciplinary fashion by direct command (foremen etc); most of the time it is introjected and developed through forms of conditioning and social control. Individualised contractual relations are the order of the day, and this tends to introduce individual competitiveness into people’s working behaviours.
(e) The role of knowledge becomes fundamental. To the creation of value through material production is added the creation of value through the production of knowledge. Cognitive capitalism means that the production of wealth takes place increasingly through knowledge, through the use of those faculties of labour that are defined by cognitive activity (cognitive labour), in other words principally through immaterial cerebral and relational activities.
(f) Precisely because of its individual nature, cognitive labour demands a high degree of relational activity, as the instrument for the transmission and decodification of its own brain activity and accumulated knowledges:
Cognitive abilities and relational activities are two faces of the same coin and can be regarded as indivisble. They are the basis of General Intellect, in other words the form of diffuse intellectuality which Marx discusses in his Grundrisse.
(g) Cognitive capitalism is also necessarily a networked reality. In other words it is not linear, and the hierarchies which it develops operate within the individual nodes, and between the various nodes, of the network.”(COGNITIVE CAPITALISM, 2014, não paginado)

No que isso interessa para ler Benjamin? Os pontos centrais que ele reconhece como potencialmente revolucionários são exatamente os que são apropriados dentro do Capitalismo Cognitivo para produzir valor. O que os formuladores desse conceito colocam é que a lógica do Capital não consegue mais desenvolver as forças produtivas, pois seu cerne, a propriedade privada, está em contrassenso com as demandas de produção. As patentes impedem que esse capital intelectual global circule e aumente a produtividade.

Muitos teóricos da arte de hoje em dia caíram em uma armadilha fatal. Ao invés de entender como a arte ajuda a ler o mundo, criaram um espaço especial para ela, como se fosse a última zona de resistência. Os conceitos de Walter Benjamin desse texto ajudam não somente a ler a arte, mas pensar as produções imateriais humanas como um todo. Se elas são o que estruturam o Capitalismo contemporâneo, esses conceitos são essenciais.

3 SOBRE A PROPRIEDADE PRIVADA

O primeiro conceito forjado é Reprodutibilidade Técnica. A síntese dessa questão é que o nível de reprodutibilidade está tão avançado que, de uma questão secundária, a técnica de reprodução passa a funcionar de forma autônoma na arte. Hoje em dia, isso é ainda mais radical. Com as novas tecnologias, é possível prescindir do artista profissional e de seus instrumentos tradicionais para fazer arte. Qualquer um, com o software adequado, pode fazer uma música com o instrumento que desejar, por exemplo. Há leitores digitais de partituras. A animação gráfica permite que você crie suas histórias sem atores. Um exemplo que demonstra o que Walter Benjamin quis dizer é a diferença entre o videoclipe e a gravação de um show. No segundo caso, temos a reprodução de uma obra de arte tradicional. No primeiro, ao contrário, tem-se um lugar próprio. Isto é, um videoclipe não é meramente uma forma de reproduzir uma, mas uma peça que tem suas propriedades próprias, que cria sua própria estética. Esse conceito é o solo comum para pensarmos que, de fato, a arte cada vez mais prescinde de seus antigos instrumentos para ser executada em outro espaço. Do palco para o computador, no caso da música. E não é isso que ocorre no Capitalismo Cognitivo? Sempre existiu a demanda de conhecimento socialmente disponível. O que muda é a hierarquia de valores. Agora, a fábrica, que era o coração da produção, toma espaço secundário em relação ao gabinete dos cientistas, designers, engenheiros, programadores e afins.  Nesse contexto, entra a questão da Autenticidade.

Essa reflexão talvez seja a mais contemporânea. Na arte tradicional, a obra tem história, e esta pode ser traçada de duas formas:

Os vestígios das primeiras só podem ser investigados por análises químicas ou físicas, irrealizáveis na reprodução; os vestígios das segundas são o objeto de uma tradição, cuja reconstituição precisa partir do lugar em que se achava o original. (BENJAMIN, 1996, p.167)

Benjamin prossegue dizendo:

O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica. (BENJAMIN, 1996, p. 167)

Isso que permite o desaparecimento da aura que é:

O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade.  (BENJAMIN, 1996, p. 168-169)

Somam-se a isso elementos sobre da Destruição da Aura, que é o terceiro conceito.  Em primeiro lugar: “Em suma, o que é aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.” (BENJAMIN, 1996, p. 169) e por fim: “Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar ‘o semelhante no mundo’ é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-la até no fenômeno do único.” (BENJAMIN, 1996, p. 170).

Enquanto a Universidade, no auge do seu anacronismo, perde-se nessas afirmações, qualquer um que gaste quinze minutos no YouTube ou no Facebook tem a dimensão dessa acertiva. Nos espaços virtuais citados, cenas de filmes e músicas misturam-se com fotos de namorados, fragmentos de romances ressurgem como título de fotografias, as referências se tornam cada vez mais irrastreáveis, os autores se confundem, e isso cada vez importa menos. A tradição de que Walter Benjamin fala é a tradição da propriedade. Com a internet tudo virou copiável, apropriável. O que ele tinha previsto assumiu dimensões radicais a ponto de mercadorias clássicas, do primeiro estágio da reprodutibilidade (livros, CDs, vinis, litografias, fotos impressas, etc.), estarem virando objeto de museu ou de colecionadores, enquanto as mídias e as artes são cada vez mais bytes circulam, são baixados e apagados por milhares de pessoas em questão de segundos.

A partir disso, podemos pensar o quarto conceito de Walter Benjamin, Ritual e Política, quando ele diz: “com a reprodutibilidade técnica, a obra se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual.” (BENJAMIN, 1996, p. 171), ele vislumbra o que vivemos hoje: cada vez menos se conserva a obra. É uma experiência já cotidiana de diversas pessoas ao redor do planeta ver um filme e apagá-lo logo em seguida. Isso já se relaciona, inclusive, com o quinto conceito Valor de culto e Valor de Exposição. É menos importante se ter o objeto artístico do que vê-lo hoje em dia. Por isso, Benjamin cunha as questões seis e sete, Fotografia e Valor de Eternidade.

Esses seis conceitos se interligam na seguinte questão: a arte progressivamente se afasta do “artesanal” e adquire as feições da sociedade industrial. Ela se torna, portanto, produto do trabalho coletivo. Os meios de produção da obra se tornam mais complexos e, assim como as demais mercadorias que passam por esse processo, ela perde a “impressão” do autor, sofre da alienação do trabalho. Esse mesmo movimento, que cria a alienação do trabalho na arte, cria novas condições para a mesma. A questão central aqui é a desestabilização da arte, enquanto propriedade sustentada pela tradição, pelo ritual, pelo valor de culto e pelo valor de eternidade. Cada vez mais, ela fratura a concepção própria de mercadoria, pelo simples motivo de não poder ser oferecida a um comprador somente. É o que Walter Benjamin percebeu com o cinema, o qual seria extremamente caro para ser oferecido a apenas um espectador e que por isso seria inerente o seu caráter expositivo.

A insistência da manutenção da tradição nesse contexto, que é a insistência na propriedade privada, só pode provocar o fascismo, porque contradiz a própria materialidade do objeto. E não é isso que observamos hoje em dia? Cada vez é mais barato produzir arte, colocá-la em circulação. O que possui valor é o conhecimento humano para a produção. Se uma pessoa comum aprende a programar, ela faz o que de mais caro existe em um computador. Se ela aprende as ferramentas de edição, ela faz o que de mais caro existe em um filme. Para impedir que isso afete os lucros precisa-se de um policiamento ostensivo das “propriedades intelectuais”. É só observar os Estados Unidos, o caso Snowden, o caso Assange e afins. A perseguição aos produtos “piratas”.  É o que já foi observado aqui: a noção de propriedade privada contradiz os recursos técnicos disponíveis para a produção de arte, assim como para a produção de qualquer mercadoria. Se antes havia a desculpa da necessidade do burguês para organizar a fábrica, o que dizer quando existem impressoras 3D?  O Capitalismo sofre de si mesmo. O que isso quer dizer?

Há um ciclo do Capital que consiste em D-M-D’. Para se alcançar a mais-valia, o lucro, o burguês possui Capital Constante (CC) – que é a composição orgânica do Capital composta de maquinaria, conhecimento humano socialmente disponível e matéria-prima – e Capital Variável (CV) – que é a Força de Trabalho disponível. O CC consome trabalho e não produz, enquanto o CV consome trabalho e consegue produzir mais trabalho. Trabalho, nessa acepção, funciona assim:

O trabalho, com sua chama, delas [coisas] se apropria, como se fossem parte do seu organismo e, de acordo com a finalidade que o move, lhes empresta vida para cumprirem suas funções, elas são consumidas, mas com um propósito que as torna elementos constitutivos de novos valores-de-uso, de novos produtos que podem servir ao consumo individual como meios de subsistência ou a novo processo de trabalho como meios de produção. (MARX, 2011, p. 217)

O problema é que há uma contradição nesse ciclo, denominada de queda tendencial da taxa de lucro.

Žižek, baseado em Karatani, vai reiterar que há um duplo movimento econômico: consumo e produção:

No inglês de hoje, pig refere-se aos animais que os fazendeiros criam, e pork à carne que consumimos. A dimensão de classe é clara aqui: pig é a antiga palavra saxã, já que os saxões eram os fazendeiros desprivilegiados, enquanto pork vem do francês porc, usado pelos privilegiados conquistadores normandos que em sua maioria consumiam os porcos criados pelos fazendeiros. (ŽIŽEK, 2004, p. 177)

As implicações econômicas disso são:

A própria tensão entre os processos de produção e circulação é, assim, mais uma vez, uma paralaxe. Sim, o valor é criado no processo de produção; no entanto, é criado ali, por assim dizer, apenas em potencial, já que só se efetiva como valor quando a mercadoria produzida é vendida e o ciclo D-M-D assim se completa.
A lacuna temporal entre a produção de valor e sua concretização é fundamental aqui: embora o valor seja criado na produção, sem a conclusão bem-sucedida do processo de circulação não há, stricto sensu, valor – a temporalidade, no caso, é aquela do futuro do pretérito, ou seja, o valor não “é” de imediato, ele apenas “seria”. É realizado retroativamente, encenado de modo performativo. (…) É em razão dessa lacuna entre em-si-mesmo e por-si-mesmo que o Capitalismo precisa da igualdade e da democracia formais:
O que distingue exatamente o capital da relação senhor–escravo é que o trabalhador enfrenta-o como consumidor e possuidor de valores de troca e que, na forma de possuidor de dinheiro, na forma de dinheiro torna-se um simples centro de circulação – um de seus infinitos centros, em que sua especificidade de trabalhador se extingue. (ŽIŽEK, 2008, p. 124)

Além disso, essa lacuna temporal tem outra decorrência. Ela gera a necessidade de a mercadoria se apresentar no mercado em comparação a outras mercadorias similares. Esse consumidor irá escolher que mercadoria comprar, e um dos critérios centrais é o preço. Decorre daí que o lucro do capitalista não advenha da mais-valia que ele produziu, mas do quanto que ele consegue se apropriar de mais-valia no mercado. O que isso quer dizer? Um capitalista que produza pouca mais-valia, ou seja, que consiga ter alta composição orgânica na sua mercadoria, muita tecnologia e pouco trabalhador, vai conseguir produzir um produto mais barato que o preço médio da mercadoria. Simplificando: vamos supor que temos três indivíduos que produzem a mesma mercadoria, um o faz por R$6,00, outro, por R$5,00; e outro, por R$4,00. Esse terceiro, ao vender o que produziu por R$4,75, consegue não somente a mais-valia já contida na sua mercadoria, mas também as dos demais produtores que não conseguem vender sua mercadoria. Por isso, apesar de ser o trabalhador que produz valor e não a máquina, não é do interesse do burguês produzir mais-valia. Ele deseja apropriar-se sem produzir. Por isso se investe tanto em tecnologia. O burguês quer consumir sem produzir. É por causa desse fator que o Capitalismo está fadado a investir no que lhe mata.

4 O NÃO-LUGAR DA TÉCNICA

 Walter Benjamin previu uma questão que está em voga hoje. Classicamente, se pensava que o que matava o Capitalismo na questão da queda tendencial da taxa de lucro era o não-lugar constituinte do trabalhador, que forçaria ele se organizar para tomar o poder. Para além disso, há ainda um não-lugar da técnica, cujo desenvolvimento a leva a superar a própria estrutura da fábrica e como consequência compromete a noção de propriedade.  Essa leitura que Walter Benjamin permite.

Com isso chegamos ao oitavo ponto: Fotografia e Cinema como arte. A partir de então, ele aprofunda a questão, de certa forma percebendo essa problemática do não-lugar. Seu argumento central é que não está em questão se a fotografia e o cinema são artes ou não, o ponto central é que a sua existência obriga a repensar o que é arte e, como consequência, fundar novos valores. É a partir dessa constatação que ele inicia  nos conceitos posteriores uma análise sobre o cinema.

Considero então que há dois momentos no texto. O primeiro é o propriamente diagnóstico, que através de um conjunto de assertivas demonstra o panorama material com o qual nos deparamos. A partir de Fotografia e Cinema como arte começa propriamente seu esforço de pensar uma nova teoria de arte. Benjamin analisa o cinema, porque ali está o coração da reprodutibilidade técnica de seu tempo. Provavelmente, hoje, ele se aproximaria mais das produções digitais. Isso é um dos traços distintivos do materialismo em relação ao idealismo. Para o materialismo, a história gera o objeto e não o objeto gera sua história. Vamos então a essas considerações.

A primeira dessa sessão é Cinema e Teste. Ele começa pontuando uma questão que hoje em dia nos parece mais óbvia: a reprodução pode ser criativa. Junto com isso ele vai inserir o conceito montagem, dizendo que é a gênesis da arte (BENJAMIN, 1996, p. 178), demonstrando como o que antes era a arte (a encenação, por exemplo) vira parte do processo, a execução de um teste. Peguemos a frase que foi grifada pelo autor: “É esta a especificidade do cinema: ele torna mostrável a execução do teste, na medida em que transforma num teste essa ‘mostrabilidade’.” (BENJAMIN, 1996, 179). Ele pensa essa questão com o enfoque no ator, que recupera sua dignidade perante a máquina ao superar seu teste, um teste no qual o trabalhador é submetido cotidianamente. Será que hoje em dia não podemos pensar isso de forma ainda mais radical? Um trabalhador ordinário hoje pode não somente aparecer no filme, mas fazer um filme.

Walter Benjamin se refere a algumas questões que estão presentes no Capital. Marx irá dizer no capítulo A Jornada de Trabalho:

Temos de confessar que nosso trabalhador sai do processo de produção de maneira diferente daquela em que nele entrou. No mercado, encontramo-lo como possuidor da mercadoria chamada força de trabalho, em face de outros possuidores de mercadorias; vendedor, em face de outros vendedores. O contrato pelo qual vendeu sua força de trabalho ao capitalista demonstra, por assim dizer, preto no branco, que ele dispõe livremente de si mesmo. Concluído o negócio, descobre-se que ele não é nenhum agente livre, que o tempo em que está livre para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la e que seu vampiro não o solta “enquanto houver um músculo, um nervo, uma gota de sangue a explorar. (MARX, Karl, 2011, ps. 345,346)

É a essa opressão que Walter Benjamin se refere. Isso diz respeito à objetificação do homem perante o Capital: “O próprio homem, visto como personificação da força de trabalho, é um objeto natural, uma coisa, embora uma coisa viva e consciente, e o trabalho é a manifestação externa, objetiva, dessa força” (MARX, 2011, p. 238).

Na esfera da produção, o trabalhador não é nada senão uma fonte de extração de mais-valia. Entretanto, ele se faz sujeito no consumo, no qual o burguês necessita agradar-lhe para ter efetivamente o que lhe roubou. Eis a questão da reprodutibilidade que Walter Benjamin está observando. A máquina, que antes era de uso exclusivo do capitalista para extrair mais-valia, passa a ter uso para o trabalhador em seu momento de consumo. É o que vemos hoje com o computador. O que Benjamin não podia prever é que hoje não é somente na condição de ator que desafiamos a câmera, mas na própria condição de montagem. Os fotógrafos de festas estão se tornando cada vez mais uma profissão em extinção, por exemplo. Uma pessoa com acesso a uma câmera e um Instagram cria hoje álbuns mais bem elaborados que diversos fotógrafos de antigamente. Talvez por isso precisemos fazer algumas leves digressões na leitura dessa parte e da seguinte, O Intérprete cinematográfico. As atribuições que se dava ao ator são atualmente do produtor como um todo de uma obra.

5 CAPITALISMO E INFORMÁTICA: CASAMENTO SOMENTE PELO FASCISMO

O Intérprete cinematográfico é central ao texto. Basicamente nessa parte se aponta o movimento ideológico para a conservação do cinema dentro da lógica do Capital apesar de seu potencial revolucionário.

Pois o capital cinematográfico dá um caráter contrarrevolucionário às oportunidades revolucionárias imanente a esse controle. Esse capital estimula o culto do estrelato, que não visa conservar apenas a margia da personalidade, há muito reduzida do clarão putrefato que emana do seu caráter de mercadoria, mas também o seu complemento, o culto do público, e estimula, além disso, a consciência corrupta das massas, que o fascismo tenta pôr no lugar de sua consciência de classe. (BENJAMIN, 1996, p. 180)

Feito a ressalva anterior, de lermos as questões do ator não somente quanto o ator em si, mas como quem produz o todo de uma arte no contexto digital, não percebemos isso hoje? No caso da informática há o exemplo clássico de Steve Jobs. Quantas pessoas produzem vídeos na internet?  Por que a grande mídia tenta alavancar alguns canais de YouTube, apropriando-se deles?

Walter Benjamin faz dois grifos importantes: “A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original” (BENJAMIN, 1996, p. 180), e “Durante a filmagem, nenhum intérprete pode reinvidicar o direito de perceber o contexto total no qual se insere sua própria ação” (BENJAMIN, 1996, p. 181). Podemos ler essas duas afirmativas como: “a arte perdeu sua origem”, e “fazer arte não é mais obrar, mas montar”. Sendo assim, ninguém mais pode possuir a pretensão de ser O autor de uma obra.

Se pensarmos no cinema: é a música produzida por alguém, com a fotografia de um outro alguém, com diversos rostos, tudo isso montado e sincronizado por outro, indo até o máximo de todo o trabalho partir de softwares e máquinas que foram produzidos por outros. O que isso quer dizer é que agora a arte é radicalmente comunitária. Dizer que “o ator cinematográfico típico só representa a si mesmo” (BENJAMIN, 1996, p. 182) não é à toa. A questão não é banal, é dizer que cada um entra e sai com o fruto do seu trabalho. Não há mais alguém que possui o fruto do trabalho de todos.

O esforço que Walter Benjamin começa a esboçar é de perceber quais mecanismo permitem, apesar dessa potencialidade, a arte contemporânea ser utilizada em favor do Capital. A seção Exposição perante a massa avança nesse sentido:

O rádio e o cinema não modificam apenas a função do intérprete profissional, mas também a função de quem se representa a si mesmo diante desses dois veículos de comunicação, como é o caso do político. O sentido dessa transformação é o mesmo no ator de cinema e no político, qualquer que seja a diferença entre suas tarefas especializadas. Seu objetivo é tornar “mostráveis”, sob certas condições sociais, determinadas ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las, da mesma forma como o esporte o fizera antes, sob certas condições naturais. Esse fenômeno determina um novo processo de seleção, uma seleção diante do aparelho, do qual emergem, como vencedores, o campeão, o astro e o ditador. (BENJAMIN, 1996, p. 183)

É nesse contexto que podemos entender a questão do biopoder, do homo sacers e afins. A tendência do Capital contemporâneo é sobreviver à custa de restringir o direito de acesso ao consumo. No texto de Walter Benjamin, fica claro essa dimensão de consumo na seção sucessiva, Exigência de Ser Filmado. É preciso ler com atenção as seguintes passagens: “Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o direito de ser filmado” (BENJAMIN, 1996, p. 183), e “Com isso a diferença essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer. Ela se transforma numa diferença funcional e contigente.” (BENJAMIN, 1996, p. 184). Em seguida ele fala das estratégias do Capital Cinematográfico e coloca:

Tudo isso para corromper e falsificar o interesse original das massas pelo cinema, totalmente justificado, na medida em que é um interesse no próprio ser e, portanto, em sua consciência de classe. Vale para o capital cinematográfico o que vale para o fascismo no geral: ele explora secretamente, no interesse de uma minoria de proprietários, a inquebrantável aspiração por novas condições sociais. (BENJAMIN, 1996, p. 185)

Recapitulando alguns pontos já levantados: temos o ciclo do Capital que obriga investimento em tecnologia. Isso barateia e altera o caráter da mercadoria, chegando ao ponto de a cadeia produtiva clássica se tornar menos central na produção. O próprio desenvolvimento da produção decreta o fim do Capital, pois coloca em xeque a necessidade da propriedade privada. Junto a isso, tem-se a questão das esferas de produção e consumo: as massas, que são objeto na produção, ressurgem como sujeitos de consumo; quando obtém acesso ao que antes era de posse somente da burguesia, ela passa a reinvidicar sua posse. Com medo, a burguesia insere valores normativos que regulam quem verdadeiramente tem direito àquele consumo, os quais, por medo de perder seus privilegios, abstêm-se de consumir ainda mais, o que implicaria o fim da burguesia. Fazendo o paralelo com o Primo Levi, o Capitalismo cede à exigência de ser filmado da zona cinzenta, produzindo, com isso, mulçumanos.

Na continuidade do texto, Benjamin entra em algumas questões que dizem respeito à relação entre cinema e pintura, que são menos produtivas para essa leitura. Proponho avançar para o Camudongo Mickey. Há nessa parte a criação do conceito inconsciente ótico, que é bastante interessante. Para um pensamento sobre estética, creio que essa seja uma das sessões mais importantes. Porém, quero me ater a seguinte passagem:

Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas consequências, engendrou nas massas – tensões que em estágios críticos assumem um caráter psicótico -, perceberemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. A hilaridade coletiva representa a eclosão precoce dessa psicose de massa. A enorme quantidade de episódios grotescos atualmente consumidos no cinema constitui um índice impressionante dos perigos que ameaçam a humanidade, resultantes das repressões que a civilização trás consigo. Os filmes grotescos, dos Estados Unidos, e os filmes de Disney, produzem uma explosão terapêutica do inconsciente. Seu precursor foi o excêntrico. Nos novos espaços de liberdade abertos pelo filme, ele foi o primeiro a sentir-se em casa. É aqui que se situa Chaplin, como figura histórica. (BENJAMIN, 1996, p. 190)

Isso permite analisar os fenômenos dos games, de Tarantino e da fixação por zumbis. O que é significativo dessa seção é que a forma como Walter Benjamin aborda a questão do Camundongo Mickey consolida a diferenciação entre uso e técnica. Isso fura um dos pilares do discurso burguês contemporâneo. A sociedade burguesa, perante o pavor do que produz, externaliza o que lhe é insurpotável e trata como agente intruso que merece ser exterminado. Não é acidental que autores como Badiou e Bakhtin, cada um ao seu modo, coloquem a tragédia como correlato dos valores do Capitalismo ou da Tradição e a comédia como uma reação das camadas populares. Freud, no seu texto O Humor, comentando sobre como a comédia opera diz “Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!” (FREUD, 1927, p. 166).

Em seu livro Como Ler Lacan, Slavoj Žižek dirá:

No mercado atual, encontramos toda uma série de produtos desprovidos de suas propriedades danosas: café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool… e assim por diante. Que tal o sexo virtual como sexo sem sexo, a doutrina de Colin Powell da guerra sem vítimas (do nosso lado, é claro), a redefinição contemporânea da política enquanto arte da administração especializada como a política sem política, até o multiculturalismo liberal tolerante de hoje como uma experiência do Outro privado de sua Alteridade (o Outro idealizado que executa danças fascinantes e tem uma abordagem holística ecologicamente saudável da realidade, enquanto aspectos como espancamento das esposas permanecem esquecidos)? A realidade virtual simplesmente generaliza esse procedimento de oferecer um produto despojado de sua substância: fornece a própria realidade despojada de sua substância, do núcleo duro resistentente do real – do mesmo modo como café descafeinado tem cheiro e gosto de café real sem ser a coisa verdadeira, a realidade virtual é experimentada como realidade sem o ser. Tudo é permitido, você pode desfrutar tudo – com a condição de que tudo seja privado da substância que o torna perigoso. (ŽIŽEK, Slavoj, 2010, p. 51)

Podemos, com essas considerações, acrescentar duas possibilidades perante as reflexões de Walter Benjamin em Camudongo Mickey. Em primeiro lugar, essa explosão terapêutica pode ser o lado positivo desse fenômeno do “café descafeinado”, de que Žižek fala a respeito, aproximando-se das reflexões sobre a sublimação em psicanálise. A outra possibilidade, que se tem confirmado, é como que exatamente essa forma de lidar com o “potencial psicótico” é cada vez mais perseguida. Quem vê os novos desenhos animados para crianças percebe mudanças. Nada mais de bigornas caindo na cabeça. A criança está cada vez mais sendo “protegida” da violência e imersa na “pedagogia”. Não me surpreenderia se o mesmo ocorresse com os adultos dentro em breve. Com todas as ressalvas possíveis, podemos pensar isso no discurso de perseguição a pornografia, ou qualquer conteúdo como do famoso site 4CHAN.

Talvez possamos entender grande parte da indústria cultural como arte sem arte, seguindo a brincadeira de Žižek. Na seção seguinte do texto de referência, Dadaísmo, Benjamin termina dizendo:

O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo. Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante, numa escala individual, quanto enfrente o tráfico, e como as experimente, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vingente. (BENJAMIN, 1996, p. 192)

A seção posterior Recepção tátil e Recepção ótica destrincha essa questão. Ele levanta a questão do que Žižek chamará de interpassividade (ŽIŽEK, 2010).  É a reação de Walter Benjamin a diversos teóricos pretensamente progressistas, mas que demonstram sua veia mais reacionária ao imbecilizar as massas. Ele inverte a valoração e coloca a distração como um elemento positivo, uma forma na qual a massa apodera-se da arte.  Podemos entrar em uma provocação nesse sentido. Relembremos a separação consumo/produção. Quando um trabalhador produz, ele produz para o capitalista, quando consome, consome para si, faz-se sujeito a sua forma. Em todo momento que o trabalhador aceita “distrair-se”, quando não é simplesmente para recompor sua força de trabalho, ele não produz, ele está voluntariamente gastando para si o que o capitalista mais deseja: seu tempo de trabalho.

O texto encerra com a sessão Estética da Guerra. Há duas frases que sintetizam tudo que falei até agora:

O fascismo tenta organizar as massas proletárias recém-surgidas sem alterar as relações de produção e propriedade que tais massas tendem a abolir. Ele vê sua salvação no fato de permitir às massas a expressão de sua natureza, mas certamente não a dos seus direitos. (BENJAMIN, 1996, p. 195)

Nesse texto de 1935/36, há uma clareza do que hoje sentimos na pele: “como a utilização natural das forças produtivas é bloqueada pelas relações de propriedade, a intensifação dos recursos técnicos, dos ritmos e das fontes de energia exige uma utilização antinatural” (BENJAMIN, 1996, p. 196). Há melhor explicação para, por exemplo, todo o desenvolvimento da tecnologia informacional se transformando em tecnologia de segurança e vigilância? Exatamente o que permite todos os fenômenos apontados aqui, se transforma hoje no maior dispositivo de controle do trabalho.

6 É O POVO NA ARTE, É A ARTE NO POVO E NÃO A ARTE DE QUEM FAZ ARTE PARA O POVO

 “Eis a estetização da política, como a prática o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte. (BENJAMIN, 1996, p. 196)”

A pergunta fundamental aqui é: o que é política? O exercício dos politikos, os cidadãos de uma pólis. O que Walter Benjamin quer nos dizer é que deveríamos apostar na posse que a massa faz da arte. Apostar nesse sentido não é fazer uma arte para a massa, como alguns militantes propõem, ou fazer arte sobre a massa, mas sim deixar que a massa faça arte, consuma arte. O caminho inverso que as universidades propõem, distanciando-se cada vez mais das experiências da massa com medo de perder seu direito ao consumo, como bons elementos da zona cinzenta.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1999.

BADIOU, A. Pequeno manual de inestética.  São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1996.

COGNITIVE CAPITALISM. In: P2P Foundation. 2014. Disponível em: <http://p2pfoundation.net/Cognitive_Capitalism>. Acesso em: 28 abr. 2014.

MARX, K. O Capital. 29. ed. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2011. v. 1.

FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. v. 1.

FREUD, S. O humor. In: ______. Sigmund Freud: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. p. 189-194. v. 21.

OSORIO, J. Estado, biopoder, exclusión: Análisis desde la lógica Del Capital. México: Universidade Autónoma Metropolitana, Unidad Xochimilco, 2012.

ŽIŽEK, S. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

______. The parallax view: Karatani’s trancritique on Kant and Hegel. Disponível em: <http://libcom.org/library/the-parallax-view-karatani-s-transcritique-on-kantand-marx-ŽIŽEK>. Acesso em: 30 out. 2013.

______. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.

Data de envio: 9 de julho de 2015.