“Martim Afonso de Sousa e a sua linhagem”, de Alexandra Pelúcia: novas abordagens de estudo ao pioneiro da colonização do Brasil

Jorge António Araújo

Martim Afonso de Sousa e a sua linhagem: trajectórias de uma elite no Império de D. João III e D. Sebastião é a obra de Alexandra Pelúcia publicada em 2009, pelo Centro de História de Além-Mar, a partir da sua dissertação de doutoramento em História, apresentada em 2007 à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O estudo enquadra-se na especialidade em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, área que a autora tem privilegiado ao longo da sua carreira, em torno do qual vem exercendo maioritariamente a sua atividade de investigação e lecionação. Entre os trabalhos de Alexandra Pelúcia, para além de diversos artigos e capítulos de livros, destacam-se obras como Corsários e Piratas Portugueses: Aventureiros nos Mares da Ásia (2010) e, mais recentemente, Afonso de Albuquerque: Corte, Cruzada e Império (2016).

Não são inéditas, portanto, as excursões da autora em torno do papel exercido pela nobreza portuguesa nos domínios da expansão portuguesa. O modo como o faz, a partir do estudo da figura de Martim Afonso de Sousa e da sua linhagem, enquadra-se num contexto surgido, na historiografia ultramarina portuguesa, já nos finais do século XX, de acentuação do campo social, face ao primado da vertente económica (p. 15). Mais especificamente, é a própria Alexandra Pelúcia quem insere a sua obra no campo da biografia social, «de que a História de Portugal e da Expansão Portuguesa ainda se encontram deficitárias» (p. 21), segundo refere. 

A escolha de Martim Afonso de Sousa e dos Sousas Chichorro – já alvo de estudos e visões gerais por parte de diferentes autores (p. 23-24) – para figuras centrais do plano da obra justifica-se na medida em que, segundo Pelúcia, esta linhagem compõe «um dos melhores modelos disponíveis para compreender o papel da nobreza portuguesa que, ao longo do século XVI, se espalhou pelo mundo e dirigiu in loco a empresa expansionista» (p. 23), constituindo uma rede de influências à escala do Império[1], assente na ligação e serviço à Casa Real, «no desenvolvimento de assinaláveis interesses económicos e na ocupação de inúmeros cargos político-militares» (p. 22). Neste processo, Martim Afonso de Sousa, por uma série de circunstâncias e acontecimentos decorridos ao longo da sua vida, vai-se afirmando como uma espécie de figura de proa ou centro gravitacional[2] da linhagem, evoluindo, não sem sobressaltos e momentos de dificuldade, de jovem fidalgo que aos 16 anos vê o seu futuro na via para Castela, a cortesão experiente, respeitado, rico e celebrado, pouco tempo após a sua morte, em Os Lusíadas[3] (1572). 

É esta a história aqui narrada. Diga-se, aliás, criativamente narrada, não fosse Alexandra Pelúcia orientada por João Paulo Oliveira e Costa, pelo que não faltam os momentos de escrita fluída, apelativa e inventiva. Ao enlevo da narrativa não é alheio o facto de sermos frequentemente levados à porta de uma verdadeira psicologia das personagens, em que a autora nos apresenta traços das suas personalidades e formas de pensar. Trata-se de uma narrativa apelativa, sim, mas também arriscada, sobretudo quando a personagem principal surge envolta numa certa aura de predestinação, aclamada «pela sua invencibilidade» (p. 174) e capacidade tentacular de tudo controlar, desde a geopolítica[4] aos destinos da sua linhagem, por várias gerações[5], traço denunciador, por ventura, da predileção da autora pelo seu objeto de estudo.

O percurso de Martim Afonso de Sousa, para além da sua singularidade biográfica, é enquadrado na obra em problemáticas mais gerais, como os contextos políticos – e não apenas portugueses –, as dificuldades e estratégias de adaptação de certos sectores da nobreza no decurso do processo de expansão, as formas de fixação e administração portuguesa nos espaços ultramarinos, a atuação política, militar e comercial nesses territórios, e também em questões que poderíamos considerar no campo da história das mentalidades[6]. O âmbito geográfico e cronológico da dissertação acompanha, assim, a vida de Martim Afonso de Sousa (1500-1571), estendendo-se a três continentes – Europa, Ásia e América – ao longo dos reinados de D. João III e D. Sebastião. Num plano mais alargado, a autora recua até ao século XIII, para nos inteirar da origem dos Sousas Chichorro, e avança até 1578, quando filho e neto de Martim Afonso de Sousa, ambos primogénitos, caem em Alcácer Quibir, com outros membros da linhagem.

Estruturalmente, a obra divide-se em três partes, correspondendo cada uma, em geral, a diferentes etapas da vida de Martim Afonso de Sousa. E embora seja esta a personagem central, a autora não nos deixa de apresentar de perto algumas das figuras que acompanharam a ascensão do biografado, como o Conde de Castanheira, D. António de Ataíde e outros Sousas Chichorro com posições de relevo – Tomé de Sousa merece mesmo um subcapítulo particular, referente à ocupação do cargo de primeiro governador-geral do Brasil. 

Relativamente à História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, não estamos perante uma obra que traga novas teorias em matérias estruturais. O mesmo não se pode dizer, porém, do ponto de vista da biografia de Martim Afonso de Sousa, em que a autora lança novas possibilidades, fruto do seu estudo e da crítica que faz às fontes, contestando, inclusivamente, ideias adotadas pelo seu orientador científico. Veja-se isto nas hipóteses avançadas quanto à estratégia matrimonial de Martim Afonso de Sousa, à possibilidade de este ter sido, em 1558, um dos nomes escolhidos pela Rainha D. Catarina para o governo do Estado da Índia, ou na refutação das teorias de João Paulo Oliveira e Costa relativamente à não recondução do governador, em 1545 (p. 229-239). Noutras matérias, como a da infância e adolescência do biografado, a autora assume o vazio de conhecimentos e a inexistência de avanços (p. 81), ainda que tal não possa ser atribuído a uma inapropriada seleção e utilização das fontes. Pelo contrário, a panóplia de fontes bibliográficas e documentais utilizada é vasta e inclui perspectivas de alguns dos estudos mais recentes, à data da dissertação. A autora revela o domínio da bibliografia portuguesa, espanhola, francesa e anglo-saxónica, aplicando-a ao conhecimento de outras realidades, que enriquecem o seu trabalho, como: para além da história de Portugal, a história dos reinos ibéricos, sobretudo Castela; o conhecimento aprofundado de outras famílias e linhagens, não só portuguesas, e das realidades políticas e militares europeias; o enquadramento de outros reinados, que não apenas os de D. João III e D. Sebastião; e ainda a ligação de certos aspectos a matérias estudadas anteriormente pela autora.

Uma crítica deve, porém, ser feita ao nível da bibliografia utilizada para os assuntos do Brasil e da Índia, pois raramente encontramos o recurso a perspectivas historiográficas locais. No caso do Brasil, onde a língua comum poderia facilitar tal trabalho, somos mesmo levados a questionar se a produção historiográfica sobre estes assuntos será assim tão reduzida. O mesmo sucede em relação às fontes documentais, que, apesar de variadas, centram-se sobretudo em Portugal e Espanha. De resto, a própria autora reconhece as potencialidades de um eventual acesso – não conseguido – a arquivos familiares (p. 26) ou a documentação até agora não identificada[7]. Saliente-se, ainda assim, o modo inventivo como a autora seleciona e utiliza as fontes, recorrendo não só à documentação clássica, mas também a aspectos arquitetónicos e elementos artísticos[8].

Alguns dos dados apresentados ao longo da obra são compulsados e sistematizados de modo bastante perspicaz e oportuno, mostrando-se engenhosa, por exemplo, a análise feita pela autora às taxas de nupcialidade da Casa do Prado face às congéneres de Gouveia e Beringel (p. 108-109). O texto é ainda complementado com um conjunto de anexos iconográficos, quadros sinópticos e representações genealógicas de grande propriedade, ainda que possamos ver aqui algum potencial de aprofundamento. A referida análise às taxas de nupcialidade, tomando novamente este exemplo, não mereceu qualquer tipo de representação gráfica. Não existe também qualquer anexo de natureza cartográfica, apesar de todas as viagens descritas e do âmbito geográfico alargado da obra. Do mesmo modo, os anexos iconográficos poderiam conter outros elementos de possível interesse e que são referidos no texto, desde logo a Vista de Lisboa, que a autora nos descreve, a propósito da partida da armada de Martim Afonso de Sousa (p. 206). Para uma melhor sistematização dos dados ao leitor, não podemos deixar de referir a utilidade de uma eventual cronologia, que não existe. Mas o que criticamente salta à vista é a não utilização de um sistema de numeração nas representações genealógicas, como o Aboville ou Tupigny, que permitiria uma melhor identificação das gerações e dos indivíduos, para além de facilitar o desenvolvimento de textos genealógicos e a organização do Anexo Genealógico XV.

Isto não retira, todavia, o mérito e a qualidade da obra. Pelo contrário, estamos perante um trabalho que se destaca pelo grande volume de informação que colige e pela descentralização face a temáticas ou personagens habitualmente mais estudadas. Representa uma adição ao conhecimento do papel e do comportamento da nobreza no processo da expansão portuguesa, ainda que não seja possível generalizar as principais conclusões deste estudo a todo o grupo nobiliárquico, ou construir modelos transversais a este estrato social. Como refere a autora, é necessário que se prossigam os estudos em torno destas temáticas, para que do cruzamento das diversas perspectivas se torne viável «a construção de uma história da nobreza no Império» (p. 108-109).

 

[1] Expressão utilizada pela autora (p. 22). Termos nossos.

[2] Termos nossos

[3] Veja-se Os Lusíadas, Canto X, 63-67.

[4] Exemplo da análise de Martim Afonso aos Mogóis (p. 165), entre outros casos.

[5] «Martim Afonso de Sousa sentia-se pessoal e socialmente responsabilizado para tentar controlar o tempo futuro até à geração dos seus bisnetos…» (p. 287), entre outros casos.

[6] Por exemplo, quando a autora aborda a possível educação de Martim Afonso de Sousa, o modo como preparou a morte, as estratégias de promoção pessoal e linhagística que seguiu ou a viragem dos interesses nobiliárquicos para a mercancia.

[7] A exemplo de um regimento dado por D. João III a Martim Afonso de Sousa e que, segundo Jaime Cortesão, terá sem dúvida existido (p. 128).

[8] Como o pelourinho da vila do Prado ou uma Vista de Lisboa do Museu Nacional de Arte Antiga.