O galhofeiro e o riso quando ainda não existiam os memes

Samanta Rosa Maia

O galhofeiro

Autor desconhecido

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Na 31ª edição da Mafuá, a sessão Obra Rara não traz um livro com “pretensões literárias”, pois O galhofeiro “não tem outro fim senão fazer rir”: “não é uma obra de educação ou de moral. É uma simples coleção de anedotas, casos engraçados, pequenos contos humorísticos, casos galhofeiros, variedades e passatempo”. Assim diz o prefácio do livro, datado de 1920, sem assinatura.

O leitor atual, curioso, poderá verificar, numa busca rápida pela internet, que alguns sites de leilões de itens antigos informam a autoria da obra como sendo de “João Pindoba” (há, também, menção a outras edições do título, de anos anteriores). No entanto, não é possível assegurar essa informação. Nenhuma das páginas do exemplar traz qualquer referência a um autor: trata-se apenas de uma coleção de anedotas, casos, fatos e contos engraçados que “andam de boca em boca”.

Mas, então, além das previsões para cada signo do horóscopo (que aproximam o Galhofeiro de nossos almanaques e revistinhas de sala de recepção de consultórios odontológicos), o que pode mais interessar o leitor nessa publicação? A própria questão da autoria das piadas é um fio que pode nos conduzir à(s) resposta(s).

Para Sírio Possenti (1998, p. 37), não há mesmo uma “subjetividade que seria de alguma forma responsável” por esse tipo de texto, “por sua unidade” ou “por seu sentido”, isto é, as piadas não têm autor. Consequentemente, para interpretá-las não temos como aplicar esse critério. “Por outro lado, e por essa razão”, observa, “elas são uma evidência de que existem discursos que se dizem – que são ditos por todos -, dadas certas condições, sem que sua origem esteja relacionada a um indivíduo de forma relevante” (1998, p. 37). Possenti quer dizer que o texto humorístico deve ser tratado como um objeto de leitura produtivo, pois é um material riquíssimo para pesquisas em diversas linhas, como a Análise do Discurso, uma vez que “as piadas só podem ocorrer num solo fértil de problemas, como os das zonas discursivas […], solos cultivados durante séculos de disputadas e de preconceitos” (POSSENTI, 1998, p. 37).

A linguagem do humor no início do século XX – o humorismo – também cumpriu um importante papel histórico, qual seja, o de representar os “impasses” e “temporalidades” “diversas da história brasileira, no período inaugurado pela Abolição e pela República” (SALIBA, 1998, p. 297). Demandas que só poderiam impor-se como interrogações, como bem formula Elias Thomé Saliba:

O que significava ser brasileira naquela realidade cada vez mais paradoxal, infinitamente variada e diversificada? O que era ser brasileiro naquela sociedade cosmopolita e provinciana, moderna e antiquada, liberal e oligárquica – enfim, como situar-se, se não como cidadão pelo menos como indivíduo, naquela realidade cada vez menos fugidia, rarefeita e permeada de instabilidades sociais, com determinações racionais ou com base em esquemas sérios ou repertórios cognitivos tradicionais? Com que linguagem descrever essa experiência da sobreposição de tempos, da anulação dos espaços e da esterilização dos destinos individuais? (1998, p. 297)

Desse modo, o cômico foi um dos códigos disponíveis de representação cultural dos modos de vida daquela sociedade, simbolizando, segundo Saliba (1998), “a vida privada e individual no interior daquela indefinida comunidade imaginada chamada Brasil”, uma República recém-nascida que carecia de uma “forma definida”.

Deparamos, n’O galhofeiro, portanto, com pequenas narrativas caseiras, internas, que revelam um pouco da intimidade do Brasil das primeiras décadas do século XX, uma república “construída sobre arranjos instáveis e informais” (SALIBA, 1998, p. 305), como retrata a anedota da página 50:

Certo sujeito, que tinha sido governador de um Estado, com fama de tirar dele mais interesse do que era lícito, queixava-se diante de alguns cavalheiros de uma grande dor de dentes;
Perguntaram-lhe onde a tinha adquirido.
– No meu governo – respondeu ele.
– Isso não pode ser, acudiu logo um malicioso, por que se lá lhe doessem os dentes, não havia V. Ex. de comer tanto.

É preciso ter em mente, ainda, que os debates políticos e sociais nem sempre se fazem explícitos. Numa “obra que pode ser lida por homens e mulheres, moços e velhos, meninos e meninas, etc. etc.”, conforme anúncio publicitário da revista O Malho, que certificava a “moralidade” da publicação, tem-se amostra da condição das mulheres da época, o casamento como futuro inalterável reservado à elas e a realidade da vida em casal:

Entre duas meninas:
– O meu papá deu-me um vestido. E a mamã deu-me uma boneca.
– Como? Pois tu ainda brincas com bonecas?
– E a tua, aquela que te comprou teu tio?
– Está guardada no armário. Quando eu for casada há de ser para meus filhos…
– E se os não tiveres?
– Se os não tiver… será para os meus netos!

A uma esposa infeliz chegava o marido, de quando em quando, a roupa ao corpo. Por fim queixou-se à polícia.
– De que pretextos se serve seu marido para lhe bater? – perguntou-lhe a autoridade.
– Não se serve de pretextos – respondeu a mulher a chorar – serve-se de um cabo de vassoura.

Em um colégio de meninas:
O professor – D. Josephina, se lhe disser que o cérebro feminino pesa 20 gramas menos que o masculino, que conclui daí?
Josephina – Que nos cérebros femininos não entra questão de quantidade, mas sim de qualidade.

Por fim, vale destacar que a obra conta com capa (seria somente a capa?) produzida por Raul Pederneiras (1874-1953), famoso caricaturista carioca, pioneiro do “humor gráfico” brasileiro, amigo de K. Lixto Cordeiro e J. Carlos, colaborador de várias revistas e jornais, como O Mercúrio, O Globo, Fon-fon, Última Hora, O Malho, Revista da Semana, Tagarela e D. Quixote, autor de textos humorísticos, teatrólogo, pintor, compositor, professor de anatomia artística (na Escola Nacional de Belas Artes) e de direito internacional. Pederneiras publicou, ao longo de sua vida, 17 livros, dentre eles Com licença (1899), Versos líricos (1900), Geringonça carioca (1922), Cenas da vida carioca (1924-1934) e Musa travessa: ruma de rimas sem rumo (1936). A quem desejar conhecer mais sobre esse artista, recomendamos a leitura de Modernidade em desalinho: costumes, cotidiano e linguagens na obra humorística de Raul Pederneiras (1898-1936), tese de doutorado de Rogério Souza Silva, publicada pela Paco Editorial em 2017.

“Ninguém poderá conservar o sério!”
“Quem quer rir?!… Quem quer rir?!…”: Não precisa comprar,
Agora o livro está disponível na Mafuá!!!

Raul Pederneiras

Referências

POSSENTI, Sírio. Os humores da língua: análises linguísticas de piadas. São Paulo: Mercado das Letras, 1998.

SALIBA, Elias Thomé. A dimensão cômica da vida privada na República. In: SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil 3 – República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das letras, 1998.

SILVA, Rogério Souza. Modernidade em desalinho: costumes, cotidiano e linguagens na obra humorística de Raul Pederneiras (1898-1936). São Paulo: Paco, 2017.