A construção da identidade em Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu

Milene Gayer Goulart

RESUMO: O presente trabalho analisa o romance Onde andará Dulce Veiga? (1990), de Caio Fernando Abreu, investigando o processo abordado na narrativa de descaracterização do sujeito inserido na pós-modernidade e no espaço urbano, assim como a busca individual do protagonista por uma reconstrução identitária através da recuperação das memórias. A análise é feita a partir das contribuições teóricas de Stuart Hall sobre a pós-modernidade e seus desdobramentos nas identidades dos sujeitos. Por meio da utilização de referências culturais e de imagens que demonstram a insatisfação e frustração do indivíduo, o romance de Caio Fernando Abreu retrata a relação do sujeito na década de 1980 com a urbanização e a manifestação cultural, abordando o modo como esses elementos contribuem para a construção por parte do sujeito de uma narrativa identitária própria.

PALAVRAS-CHAVE: Romance Contemporâneo; Caio Fernando Abreu; Identidade; Memória; Pós-modernidade.

ABSTRACT: The present work analyzes the novel ‘Onde andará Dulce Veiga?’ (1990) by Caio Fernando Abreu, investigating the process addressed in the narrative of subject depersonalization inserted in postmodernity and urban space, as well as the protagonist’s individual search for an indentity reconstruction throught the recovery of his memories. The analysis is based on the theoretical contributions of Stuart Hall on postmodernity and its consequences on the identities of the subjects. Through the use of cultural references and images demonstrating the individual’s dissatisfaction and frustration, Caio Fernando Abreu’s novel portrays the subject’s relationship with urbanization and cultural manifestation in the 1980s, addressing the way these elements contribute to the construction by the subject of his own identity narrative.  

KEYWORDS: Contemporary Novel; Caio Fernando Abreu; Identity; Memory; Postmodernity.

 

Com a intensificação do processo de urbanização na década de 1950, o espaço urbano fica superpopuloso, gerando desemprego e, consequentemente, desigualdade social. Posteriormente, com o advento da globalização, a mídia, em concordância com a lógica capitalista, eleva as culturas de massa, anulando outras culturas e intensificando uma estrutura social que se baseia no consumo. Em decorrência desse quadro, a desigualdade social e alienação dos sujeitos é acentuada, desencadeando as problemáticas do período histórico da pós-modernidade.

Nesse cenário, com a economia de mercado incentivando o consumismo e oferecendo sempre novas possibilidades, o sujeito consome diferentes bens culturais, transitando em diversas e efêmeras identidades. Esses fatores se relacionam diretamente com a fragmentação de identidade do indivíduo pós-moderno, que, desempenhando diversos papéis e tendo acesso a diferentes estímulos, apresenta uma identidade múltipla e fragmentada, acarretando a dificuldade de reconhecimento de si próprio. 

Segundo Stuart Hall (2006), a concepção de identidade para o sujeito sociológico inclui a noção de complexidade do mundo moderno e uma consciência de que o núcleo interior do sujeito não é autônomo e autossuficiente, pois é formado com base na relação com outras pessoas, que mediarão para ele os valores, os sentidos e a cultura. Dessa forma, a identidade é construída de forma interativa, através das relações que o sujeito estabelece com os outros, bem como com o acesso a um determinado espaço e cultura. Entretanto, com o acúmulo de papéis sociais em que o indivíduo atua na pós-modernidade, a construção de uma identidade única se torna improvável, uma vez que “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente.” (HALL, 2006, p. 13). Com esse transitar entre diferentes identidades, há uma dificuldade de reconhecimento próprio, característica do homem pós-moderno.

No romance Onde andará Dulce Veiga?, do escritor Caio Fernando Abreu, essa temática é abordada por meio de imagens e alusões que remetem à busca identitária do sujeito inserido nesse contexto. Desse modo, pretende-se fazer uma análise do romance, investigando a descaracterização sofrida pelo protagonista, assim como seu processo de reconstrução identitária e as estratégias utilizadas pelo autor para simbolizar os conflitos da personagem e as influências do meio espacial e cultural em que está inserida.

A obra a ser discutida, Onde andará Dulce Veiga? – Um romance B, do escritor sul-rio-grandense Caio Fernando Abreu, foi publicada pela editora Companhia das Letras no ano de 1990. Como o próprio título sugere, narra a busca por Dulce Veiga, uma cantora desaparecida na década de 1960. Através dessa busca, a personagem principal, um jornalista com uma carreira pouco promissora, acaba por resgatar memórias antigas e passar por um processo de reconhecimento e reconstrução identitária. Ainda no início do romance, é destacada a precariedade dessa personagem principal, descrito como um homem com pouco mais de 40 anos, vivendo sozinho em um apartamento em más condições e em crise existencial. A narrativa se passa nos anos 1980, embora em diversos momentos, por conta das memórias resgatadas pela personagem, aponte para a década de 1960, recuperando memórias com a cantora e retratando os conflitos políticos do período ditatorial no Brasil. 

A obra apresenta o subtítulo “Um romance B”, o que remete à arte cinematográfica e traz um juízo de valor, quase uma categorização ao livro. O termo “filme B” era utilizado originalmente para se referir a filmes de Hollywood destinados a serem, normalmente, o filme de menor orçamento de uma sessão dupla. Eram apresentados, portanto, gêneros de fácil apelo comercial, como investigação policial e ficção científica, sendo, por vezes, exibidos em cinemas de áreas periféricas. Nesse sentido, quando se leva em conta o subtítulo, espera-se um romance que fuja dos padrões literários à medida que incorpora elementos dos “filmes B”, incorporando personagens, espaços e identidades heterogêneas, que descrevam este outro lado. De fato, a narrativa apresenta uma estrutura de romance que foge da tradicional, principalmente por se constituir de forma muito híbrida; trazendo referências culturais diversas, com a presença de uma cultura de maior prestígio intelectual e da cultura pop e de massa que cresciam na década de 1980.

Composta por diversas referências culturais, a narrativa estabelece vínculos com outras linguagens artísticas além da literatura, como a música, o teatro e, como citado antes, o cinema. Relacionado à globalização e ao fácil acesso a diferentes culturas, a narrativa apresenta uma crítica à ascensão da indústria e de um mercado cultural que se aproveita das produções a fim de lucrar. Ainda levando em conta o processo de globalização, o sujeito tem acesso a muitas informações e a elementos de diversas culturas, o que reflete no hibridismo apresentado na obra. Além disso, a personagem principal, sendo um homem culto que circula em diferentes ambientes, acaba tendo contato com extratos socioculturais e linguagens diferenciadas.

 Quanto à cinematografia ligada ao subtítulo “filme B”, é perceptível, de forma mais geral, a relação estabelecida entre elementos presentes no cinema e no livro. Ainda no início da narrativa, o protagonista afirma “imaginar estar sendo sempre filmado ou avaliado por um deus de olhos multifacetados.” (ABREU,1990, p. 13). A seguir, quando discute acerca das mudanças causadas pelo novo emprego, comenta que “Deus vira mais uma página de seu infinito, chatíssimo roteiro.” (ABREU, 1990, p. 13). Portanto, além de fazer menções a termos ligados ao cinema, são feitas, ao longo da própria narrativa, sugestões a uma irônica espécie de consciência de criação por parte da personagem, o que remete ao processo metaficcional presente no romance.

 Conforme explicita Rodrigo Araújo (2011) e Ellen Mariany da Silva Dias (2008), o romance Onde andará Dulce Veiga? é constituído por meio de uma técnica de colagens de diferentes ordens discursivas, criando um embate entre linguagens. A narrativa se constrói por meio de uma espécie de montagem de textos, pertencentes a diferentes gêneros do discurso, de forma que a narrativa se fragmenta em diversas sobreposições de histórias e enredos, transitando entre imagens do passado e do presente e, por vezes, se aproximando das narrativas policiais e de mistério ou das performances de melodrama. De acordo com Araújo (2011), por apresentar uma estética do excesso e do exagero e diversas reviravoltas, o romance possui identificação com o melodrama. O excesso de apelos sensoriais, como as músicas, cores, memórias visuais e auditivas despertadas pelo narrador aproximam o romance da estética do melodrama, gênero cinematográfico que estimula múltiplas emoções e sensações no espectador. As encenações melodramáticas, os grandes gestos, a solidão e incompreensão ficam evidentes também na personagem Dulce, que se configura como o centro e o mistério do romance.

A narrativa se constrói pelo excesso de sensações do narrador autodiegético, fundindo memórias, impressões e reflexões sobre a cultura e o espaço. Assim, a narrativa é capaz de abordar o hibridismo cultural, que se manifesta tanto através da diversidade cultural que rodeia as personagens, quanto através da linguagem utilizada na narrativa, que se refere a diferentes ordens discursivas. Com essa estratégia, a narrativa apresenta uma estrutura híbrida, que causa estranhamento e que, combinada ao excesso de descrições caóticas do espaço, consegue incorporar a atmosfera conflituosa do próprio protagonista. O espaço urbanizado, caótico e híbrido se destaca na narrativa, compondo o espaço pós-moderno, caracterizado pela impessoalidade. A metrópole caótica é cenário para a narrativa, revelando a relação dos sujeitos com o espaço e o quanto este pode ser opressor. Por se tratar de um narrador autodiegético, nos termos de Gérard Genette (1995), o excesso de descrições do espaço e dos sentimentos, além das referências de linguagens diversas, toma um sentido mais particular, uma vez que são projeções e sensações do próprio protagonista sobre as ações.

O espaço urbano é descrito e percebido pelo narrador como conturbado, saturado de elementos que contribuem para o caos. Nesse sentido, a linguagem apresenta um excesso de imagens, uma descrição excessiva que é capaz de transpor para o leitor a sensação de desordem e desconforto que o espaço causa no protagonista: “cinzeiros perdidos entre pilhas de laudas, fotos, clips, pastas, envelopes, copo de plástico, adoçante artificial, tubos de cola, rolos de dinheiro, bilhetes de loteria, blocos, lápis, canetas” (ABREU, 1993, p. 14). Esse espaço de desordem descrito mescla-se com o estado de espírito do protagonista, ambos em decadência e em processo de mudança. As diversas imagens apresentadas no espaço apontam para uma desordem que se relaciona à própria identidade do protagonista, que transita em diferentes papéis. Na diegese as personagens vivem em um ambiente que só colabora para a impessoalidade e a segregação, como visto no trecho seguinte:

Britadeiras vibravam no prédio em construção em frente ao Quênia’s Bar, ao lado da funerária. Nordestinos quase nus, carrinhos de mão, pedras, suspensos nos andaimes, formigas fervilhantes numa longa fila, do Cariri à Estação da Luz, lembravam Metrópolis. A cidade ia explodir um dia e eu não tinha nada a ver com isso. Ou tinha?” (ABREU, 1990, p. 81).

Esse espaço agitado e em constante mutação não só segrega as personagens, como também contribui para a impessoalidade das relações e a dificuldade em se reconhecer, visto que passam a estar silenciados, marginalizados em relação à cultura de prestígio. O protagonista vive em um prédio em situação precária e lá se relaciona com outras personagens em situação semelhante. A vizinha Jandira e seu filho Jacyr não se encaixam no padrão determinado pela sociedade. Jacyr, homossexual e usuário de drogas ilícitas, transita entre duas identidades de gênero, o que a mãe explica por meio da religião: “A mãe diz que é Oxumaré, que eu trago comigo. Seis meses homem, seis meses mulher.” (ABREU, 1990, p. 39). Assim, ambas as personagens são segregadas por se distanciarem do padrão aceito, a mãe pela religião estigmatizada e o filho pela sexualidade e envolvimento com drogas.

  O romance, portanto, aborda a figura do indivíduo isolado, segregado e vivendo como anônimo na metrópole impessoal e alienante. Desde o início a narrativa caracteriza, através do protagonista, o retrato do homem inserido no caos da pós-modernidade, vivenciando relações frágeis e em conflito existencial constante. O narrador nunca é nomeado durante o romance, sendo apenas referido, em diversos momentos, como “o jornalista” ou “o cara do jornal”, evidenciando apenas sua função e silenciando sua identidade. A ausência do nome do protagonista, assim como seu descontentamento narrado em primeira pessoa, são os primeiros indícios da fragmentação desse sujeito. Desse modo, quando o protagonista se vê encarregado de encontrar Dulce Veiga, encara a tarefa também como uma busca por si mesmo. Há urgência nesse processo quando, ao lembrar da existência de Dulce, a personagem afirma: “Eu precisava falar de Dulce Veiga. Dela, de mim, do tempo.” (ABREU, 1990, p. 30). Compreender Dulce Veiga é também compreender a si mesmo; resgatar memórias que envolvem a cantora é uma forma de reconstruir sua própria identidade com base em suas vivências. Logo, é através de um processo de alteridade que o protagonista baseia sua busca, visto que reconstrói sua identidade através da relação com o outro. 

Relacionando esse conceito ao romance Onde andará Dulce Veiga?, é possível perceber o quanto a identidade do protagonista se desloca de acordo com os espaços em que ele atua. Em seu prédio ele interage com os vizinhos Jandira e Jacyr, compartilhando a mesma cultura e condição que essas personagens, aproximando-se de elementos culturais próprios delas, como a religião. Em dado momento, o protagonista joga os búzios de Jandira e recebe uma previsão do que encontrará: “Não se preocupe, você vai encontrar essa pessoa. Ela é amiga de Ossanha, Oxum cuida bem dela. E muita coisa mais, coisa que você nem imagina, meu filho, você vai encontrar.” (ABREU, 1990, p. 139). Há ainda outras personagens periféricas com quem o protagonista interage: Arturo, o argentino que se prostitui, mas que busca ascensão no teatro; o traficante do Quenia’s Bar; Dora, uma prostituta nordestina contratada.

 Já em outros espaços, o protagonista atua como um intelectual, “o cara do jornal”, como muitas vezes é referido. Na presença da personagem Patrícia, por exemplo, o primeiro contato se faz por meio de um jogo cultural, citando o nome de figuras femininas relacionadas à arte: “Se você faz mesmo questão, podemos levar horas nisso. Posso chamar a Marianne Faithfull ou a Moore, a Charlotte Brontë ou a Rampling. Muito cultural e tudo.” (ABREU, 1990, p. 19). Enquanto escritor, ainda que em um jornal pequeno, o protagonista também tem sua identidade formada por uma posição de prestígio intelectual.

Embora por vezes negada, o protagonista ainda apresenta outra identidade quando recorda o romance vivido com a personagem Pedro, antigo amante que conheceu em um metrô em São Paulo. O envolvimento com Pedro permite que o protagonista repense sua identidade sexual, passando por um processo de reconhecimento conflituoso: “Tentei afastá-lo, repetindo que nunca tinha feito aquilo. Eu gostava de mulher, eu tinha medo. Todos os medos de todos os riscos e desregramentos.” (ABREU, 1990, p. 113). Em dado momento o conflito cessa e o relacionamento com Pedro permite que a personagem construa sua identidade, passando por um processo de aceitação: “Só alegria, eu senti com Pedro. Uma alegria que era o avesso daquela que tinham me treinado para sentir.” (ABREU, 1990, p. 115). Entretanto, com a partida inesperada de Pedro, o protagonista torna-se, novamente, incapaz de se reconhecer: “Desde esse dia, perdi meu nome. Perdi o jeito de ser que tivera antes de Pedro, não encontrei outro. (…) Mas Pedro não voltou, eu não voltei.” (ABREU, 1990, p. 116).

 Assim, pode-se dizer que o processo de crise da personagem principal tem ligação com os deslocamentos da sua identidade e com a incapacidade de reconhecer a si próprio. Ainda no início do romance, com uma metáfora ligada à identidade, o jornalista observa seu reflexo no espelho e tem dificuldade de reconhecimento: “Olhei minha cara no velho espelho riscado, as marcas que eu nem sabia se pertenciam ao vidro ou à pele”. (ABREU, 1990, p. 12). Fica claro o processo de crise identitária. Dessa forma, o processo de busca por Dulce Veiga se torna um pretexto para a busca pelo reconhecimento identitário. De acordo com Mariana Souza:

Rememorar é muito mais do que trazer o passado para o presente, trata-se de um instrumento para reavaliações, revisões, autoanálise, autoconhecimento e é por este caminho que a memória alcança a identidade, sendo fator chave em sua (re)construção. (2014, p. 109)

 Portanto, conforme recupera as vivências de sua juventude, o protagonista passa por um processo de autoanálise, criando uma narrativa de vida, que servirá como alicerce para o autoconhecimento e a reconstrução de uma identidade. A memória é o meio pelo qual se constrói uma consciência de si e do outro. Desse modo, a memória individual atua como uma ferramenta de reconstrução identitária, além de contribuir para o entendimento acerca do outro e do mundo.

A música, nesse contexto, age como um gatilho para o acesso a essas memórias. Conforme Mairim Linck Piva e Márcia Regina Veras, é através da música “que a personagem vai cumprindo suas tarefas e retomando suas memórias para finalizar as etapas do herói (…) a música embala as lembranças da infância, os amores perdidos, vincula o presente a sensações passadas” (2014, p. 404). Logo, a música atua na narrativa como uma forma de reafirmar os sentimentos e as vivências das personagens, servindo também como um elo com as lembranças reprimidas. Nesse sentido, a música “Nada além”, antes cantada por Dulce Veiga e posteriormente regravada na voz de Márcia na banda Vaginas Dentatas, funciona como um elo entre passado e presente, reconectando a personagem com a lembrança de Dulce. Assim, é ouvindo a música “Nada além” que o protagonista acessa sua primeira memória de Dulce Veiga:

Por trás da porta, vinha uma música familiar. Não apenas familiar. Havia nela, ou na sensação estranha que me provocava, algo mais perturbador. Tentei ouvir melhor, mas o que lembrava não era exatamente aquilo, embora o que eu não identificava que fosse, e quase lembrava, também estivesse lá. Dava saudade, desgosto. E outra coisa mais sombria, medo ou pena. Na minha cabeça cruzaram figuras desfocadas, fugidias como as de uma tevê mal sintonizada, confundidas como se dois ou três projetores jogassem ao mesmo tempo imagens diversas sobre uma única tela. (ABREU, 1990, p.24).

A primeira recordação começa apenas de forma sensorial, até que a personagem começa a visualizar o espaço em que Dulce Veiga estava quando a encontrou. Depois, recorda a poltrona forrada de veludo verde, que sempre se associa à cantora. Processo de recordação semelhante ocorre quando o jornalista lembra pela primeira vez da personagem Pedro. A lembrança vem à tona enquanto, em um táxi, ele escuta uma música do cantor e compositor Cazuza. A menção ao cantor de rock Cazuza, muito popular nos anos 80, além de contribuir para o repertório de diversidade cultural no romance e ambientação dos anos 80, remete, quando se leva em conta a vida pessoal do cantor, à homossexualidade e à incidência dos casos de HIV durante esse período, que também se relacionam à situação do protagonista. Ambas as situações remetem à influência de Pedro que, assim como a figura de Dulce, é parte da construção de uma narrativa identitária para a personagem principal. 

Durante o romance, essa questão identitária do protagonista é reforçada através de diversas estratégias, como a presença de algumas metáforas. Quando de fato o protagonista está no processo de reconstrução de um “eu” simbolizado pela busca por Dulce Veiga, ele encontra um jogo formado por um labirinto:

Era um jogo. Americano, japonês, não havia nenhuma indicação. Um labirinto em forma de hexágono, sobre um fundo preto, com uma gota prateada de mercúrio do lado de fora do labirinto, tudo coberto por acrílico transparente. Virei-o nas mãos, a gota de mercúrio bateu contra uma das paredes e partiu-se em três. (ABREU, 1990, p. 172).

A imagem do labirinto remete à busca, a fragmentação da identidade é metaforizada por meio da figura da gota de mercúrio, que se parte em três. Dulce Veiga sempre afirmava procurar “outra coisa” e, em dado momento, o jornalista passa a se dedicar a mesma procura. Essa busca é tanto uma tentativa de compreensão de si quanto de ressignificar a vida. É relevante também a estrutura do romance dividida em sete dias da semana e, portanto, sete etapas, o que faz alusão ao Gênesis, da Bíblia. Com isso, se relaciona o processo de criação do mundo em sete dias com o processo de recriação da identidade da personagem. Há, também, uma relação metalinguística, uma vez que a narrativa também é construída em sete dias, conforme é narrada por seu protagonista.

A identidade da personagem principal sofre deslocamentos de acordo com os espaços que ocupa e os papéis que desempenha, de modo que as interações são fatores decisivos para a reconstrução identitária. Nesse sentido, o espaço e o contexto histórico também são relevantes para a compreensão do romance e dos conflitos do protagonista. A narrativa ocorre em um retrato caótico de São Paulo em processo de urbanização. Na diegese esse espaço é retratado como uma metrópole em pleno desenvolvimento. Com tantas pessoas atraídas pela vida na metrópole, a cidade torna-se superpopulosa e, consequentemente, suja e conturbada. Como resultado, a desigualdade social cresce, evidenciando espaços e pessoas privilegiadas em detrimento da marginalização. Esse processo sugere a presença de personagens plurais na narrativa, representando tanto papéis sociais de prestígio quanto minorias sociais exploradas. 

Como forma de evidenciar a urbanização e essa maior concentração de população na metrópole, é frequente na narrativa a aparição de personagens que passaram por processo migratório, com a esperança de uma vida melhor em espaços urbanizados. A personagem Dora, prostituta que o protagonista encontra na rua, está entre aqueles que migraram em busca de uma ascensão social, porém ficaram à margem do sistema, ocupando uma posição de exclusão e degradação. Dora ainda tem sua marginalização reforçada pelo sotaque nordestino, que difere da língua padrão utilizada pela elite paulista. Arturo, o vizinho argentino do protagonista, passa por situação semelhante, sendo descrito como “o argentino-michê-do-meu-prédio” (ABREU, 1990, p. 128). 

Apesar de ser um sujeito intelectual, o protagonista do romance também está à margem, pois não ocupa um espaço de poder econômico ou social. Além disso, faz parte de uma minoria social por conta da sua sexualidade. Vive também em um local decadente; o apartamento em que mora é minúsculo e o prédio está em péssimas condições. Esse espaço físico é descrito como “um edifício, doente, contaminado, em estado terminal” (ABREU, 1990, p. 37), o que reflete a situação pessoal da personagem.

 É através desse espaço que o protagonista vai ter suas interações com outras personagens marginais. As referências à cultura, seja ela de prestígio ou popular, são fatores que contribuem para a estrutura pouco tradicional do romance, garantindo uma narrativa que se constrói através da influência de diversas linguagens artísticas, além de possibilitar uma mimese, ainda que de forma caricata, da explosão cultural vivida nas décadas de 1970 e 1980. Logo, é comum a presença de elementos da cultura popular, como a religião, o jogo de búzios, a astrologia e elementos provenientes a uma cultura de prestígio, como nomes importantes na música, cinema e literatura.

Com isso, Onde andara Dulce Veiga? aborda não só a ausência da identidade da personagem principal, como também a ausência de identidade daqueles que, por ocuparem um lugar de massa, são silenciados e ignorados. De acordo com Zygmunt Bauman (2005), com a ascensão do capitalismo, surge um grande grupo nomeado como “subclasse”, que tem o privilégio de reivindicar uma identidade negada. Esse grande grupo é composto por parte da população que não teve acesso à educação, de ex-viciados em drogas, de mendigos e de outros sujeitos que se distanciam do que é considerado adequado. No romance, essa “subclasse” destacada por Bauman (2005) é retratada através das diversas personagens que fogem do padrão, seja pela sexualidade, pela condição social e/ou pelo uso de substâncias ilícitas.

 Retratando o período ditatorial, o romance ainda aborda a forma dura como os sujeitos que desrespeitam a ordem, criticando ou questionando o regime político, são punidos com a marginalização. Nesse sentido, há a personagem Saul, que se mostra importante para representar as perseguições políticas e a violência causada pelo período da ditadura militar. Saul é o antigo amante de Dulce Veiga que, por questionar a política da ditadura militar, é punido de forma tão violenta que tem sua integridade e identidade prejudicadas. Quando o protagonista o encontra, a personagem está travestida de Dulce Veiga, em um estado mental debilitado por conta dos abusos sofridos. À margem de qualquer padrão, sua identidade se funde à lembrança que tinha de Dulce. 

A trama por trás da personagem Saul aborda uma violência e silenciamento vividos por toda uma geração em um contexto histórico de regime militar. O romance ainda retrata situações muito características do contexto dos anos 1980, como o aumento da incidência da AIDS, o medo e ignorância em relação à doença, explorados através da história do protagonista e de Márcia, filha de Dulce Veiga. 

 Pensando no processo de reconhecimento e aceitação que o protagonista passa, Saul apresenta-se como uma figura essencial. O beijo trocado no passado por ele e o protagonista, assim como a lembrança da denúncia, permanecem por bastante tempo em esquecimento. Essas lembranças fazem surgir o sentimento de culpa no protagonista, uma vez que, ao denunciar Saul e Dulce, ele acaba por se tornar culpado pelo sumiço de ambos. Além disso, em diversos momentos, a personagem principal nega sua orientação sexual, agarrando-se a ideia de que a relação com a personagem Pedro era seu único relacionamento homoafetivo. Logo, quebrar essas barreiras e recordar esses acontecimentos, de certa forma, representa um momento de aceitação, no caso da sexualidade, e de perdão, no caso da denúncia de Saul e Dulce. Assim, o segundo beijo que é compartilhado por Saul e o protagonista representa um processo de reconhecimento de si:

É preciso beijar meu próprio medo, pensei, para que ele se torne meu amigo. Entreaberta, a boca dele cheirava mal, os lábios cobertos de partículas purulentas, os dentes podres. Uma cara de louco, uma cara de miséria, de maldição. Uma maldição passada de boca em boca, que eu poderia exorcizar agora, devolvendo um beijo que era ao mesmo tempo a retribuição daquele, e inteiramente outro. (…) Eu repeti, de outra forma, aquele vago conhecimento assim: é preciso ser capaz de amar meu nojo mais profundo para que ele mostre o caminho onde eu serei inteiramente eu. (ABREU, 1990, p. 190).

O beijo trocado simboliza um processo de alteridade em que a personagem tem suas memórias, seus erros e sua própria identidade representados através do outro. Nesse sentido, beijar o outro, principalmente quando ele se apresenta de forma tão repulsiva, é aceitar a si mesmo, fazendo as pazes com o passado e expurgando a culpa por ter delatado Saul. Esse processo de alteridade fica ainda mais evidente no seguinte trecho: “Ele fechou os olhos quando aproximei mais o rosto. E eu também fechei os meus, para não ver meu espelho” (ABREU, 1990, p. 190). Com a metáfora do espelho, é evidenciada a forma como o protagonista se vê através de Saul. Portanto, a imagem decadente de Saul atua como um espelho para a própria decadência da personagem principal, que acaba por aceitá-la, purgando-a através do beijo.

O processo de reconhecimento identitário continua quando finalmente o jornalista descobre o paradeiro de Dulce Veiga. A poltrona verde que sempre simboliza a presença da cantora acaba por revelar o diário de Dulce e o mapa com seu paradeiro. Com isso, o protagonista deixa o centro urbano e caótico em que vive e se desloca até o município de Estrela do Norte. A cidade de Estrela do Norte, além de ser significativa por conta do nome, que remete à expressão de “encontrar o próprio norte”, ganha significado uma vez que contrasta com a metrópole. Enquanto o primeiro espaço em que o jornalista vive é conturbado e impessoal, Estrela do Norte apresenta-se como um local calmo, de reflexão e ascendência espiritual. 

O primeiro encontro da personagem principal com Dulce é mediado pela música. Nesse momento, Dulce é vista como uma figura materna, que parece deter uma sabedoria ainda desconhecida para o protagonista. Através do chá que é oferecido por Dulce, essa sabedoria parece ser compartilhada. O chá, descrito como “o pior gosto do mundo, a pior dor do mundo” (ABREU, 1990, p. 203), remete à forma como o processo de sair da ignorância e descobrir-se é sempre doloroso e conflituoso. 

A sétima e última parte do livro, chamada de “Domingo Nada Além”, traz novamente o intertexto com o Gênesis da Bíblia, uma vez que domingo é o dia de descanso e o capítulo se caracteriza por possuir poucas ações, enfatizando o processo de reflexão da personagem na companhia de Dulce Veiga. Apresentando um caráter místico, as ações narradas em “Domingo Nada Além”, como o chá compartilhado com Dulce e a massagem, têm um caráter simbólico, funcionando como um ritual que aproxima e prepara a personagem para uma verdade, a descoberta da “outra coisa” que Dulce sempre disse procurar. Conforme se aproxima o fim da narrativa, a personagem principal parece finalmente ter compreendido essa “outra coisa”, estando pronto para deixar a Estrela do Norte: “Eu estava ali, onde eu devia estar. Inteiro. Como uma gota de mercúrio.” (ABREU, 1991, p. 210).

Com o final da narrativa, quando Dulce Veiga grita algo que, para o protagonista, parece ser seu próprio nome, é enfatizado o momento em que finalmente a personagem consegue completar o seu processo de construção identitária. A narrativa apresenta-se como um ciclo com o propósito da busca de identidade e ressignificação da vida por parte da personagem, visto que a primeira frase do romance é “Eu deveria cantar” e a última é “E eu comecei a cantar”. Nesse sentido, o ato de cantar simboliza um estado de felicidade e plenitude, que só é alcançado ao fim da narrativa. Logo, o romance retrata a passagem de um estado decadente e em crise para um processo de transcendência e redescoberta de si. Os resgates das memórias passadas, a aceitação do passado e a construção de uma narrativa para si através do outro são os meios pelos quais o protagonista alcança essa transcendência e consegue, através da reconstrução identitária, ressignificar a vida.

Referências:

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