Humor sombrio e melancolia em “A lua vem da Ásia”, de Campos de Carvalho

Pablo Vinícius Nunes Garcia

RESUMO: O presente ensaio busca analisar o narrador/protagonista de A Lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho, a partir do jogo entre humor sombrio e melancolia. O humor sombrio ou mórbido, na obra em pauta, tangencia desde questões materiais e imediatas a matérias de cunho mais filosófico e abstrato, relacionando-se com a melancolia, cujos traços aqui apontados permitem abordagens tanto psicanalíticas quanto relativas à memória cultural do Ocidente.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura brasileira; Campos de Carvalho; Humor; Melancolia.

ABSTRACT: This essay aims to analyze the narrator/protagonist of A Lua vem da Ásia, by Campos de Carvalho, in view of a balance between morbid humour and melancholy. Morbid or dark humour, in that text, touches since material and immediate issues to matters of a more philosophical and abstract kind, relating with melancholy, whose features here indicated allow psychoanalytic approaches, besides, it is possible to make ties between melancholy and the cultural memory of the western world.

KEYWORDS: Brazilian literature; Campos de Carvalho; Humour; Melancholy.

 

Considerações iniciais

Astrogildo – anteriormente Adilson, Heitor e Ruy Barbo, sucessivamente – é o protagonista de A Lua vem da Ásia, obra de Campos de Carvalho cuja primeira edição ocorre em 1956. Narrada em primeira pessoa, a história leva às últimas consequências a interferência da subjetividade do protagonista, não se podendo delimitar exatamente o quanto o relato dos acontecimentos é afetado pelos desvarios de Astrogildo, ao mesmo tempo em que seu caráter performático é um tanto evidente e mesmo declarado, quando ele se assume um clown (CARVALHO, 2008, p. 49), legitimando assim a volubilidade de sua identidade, volubilidade essa que também se estende para outros elementos, como a estruturação da narrativa e o espaço que lhe serve de fundo (ROSA, 2018, p. 267-268). Daí a possibilidade de questionamento da suposta loucura – talvez performática – do narrador, que se encontra em um manicômio, onde será ambientada a maior parte da narração – póstuma, pois ao final nos é revelado que ele cometeu suicídio –, entremeada por críticas que a personagem atira para diversas instâncias humanas, desde o próprio ambiente manicomial até condições mais existenciais, também passando por costumes e parâmetros sociais. 

Os ataques de Astrogildo vêm revestidos por um subgênero do humor conhecido por seu caráter transgressor, o humor sombrio – antes chamado de “humor negro”, termo que tem sido evitado em atenção a seu possível teor racista –, cuja presença se estende pelas obras de outros escritores brasileiros além da de Campos de Carvalho, alguns dos quais contemporâneos dele, nos meados do século XX. Cabe mencionar que o Surrealismo, vanguarda que muito influenciou o escritor uberabense, fez do humor sombrio uma de suas ferramentas. Ainda que os textos carvalhianos contenham outras espécies de humor, é o subgênero em pauta que interessa a este artigo e, por isso, elenca-se A Lua vem da Ásia como objeto de estudo, por ser o livro do autor em que o riso sedicioso se manifesta mais causticamente.

O ímpeto jocoso de Astrogildo, contudo, não é invulnerável ou constante. A personagem apresenta igualmente nódoas da melancolia, representando mais um exemplo, na literatura, em que o riso e a melancolia se combinam, conforme se vê desde muitos séculos. Mais do que contraste, parece haver entre os dois elementos uma relação de fundamentação: a melancolia sendo o terreno em que prolifera o riso que se insurge contra o mal e as hostilidades, um riso que é signo da indignação.

Portanto, a primeira parte deste trabalho abordará as manifestações do humor sombrio veiculado pelo clown Astrogildo, tangenciando, além disso, a loucura da personagem, que mais parece excesso de sensatez e humanidade, ou que se constitui como performance a partir de cujo lugar o narrador está apto a atacar o meio social, observando-o de fora. A segunda parte investigará os indícios de melancolia observáveis na construção da personagem, levando em conta diferentes pensamentos reunidos em torno do assunto ao longo do tempo, desde concepções mais antigas às contribuições de Sigmund Freud nos limites da psicanálise.

A performance do clown: o riso e a loucura

A obra de Campos de Carvalho é profundamente arraigada pelo humor, em suas diversas espécies, sendo já ressaltado pelo próprio autor, em entrevista, como forma de alívio (CARVALHO apud GONZAGA, 2007, p. 18-19). É especialmente o humor sombrio que abordaremos, isto é, um humor, de caráter mórbido, que responde a forças repressivas, uma válvula de (breve) escape em meio a uma condição indesejada e hostil. Esse é inclusive o fundamento que Freud encontra na construção humorística. Se o efeito cômico pode ser interceptado quando sentimentos de dor e desprazer estão em cena, o papel do humor, operação psíquica cujo refinamento não deixa de ser ressaltado por Freud, é justamente suspender tais sentimentos e permitir o desencadeamento do riso (FREUD, 2017, p. 323). Em sentido similar, Henri Bergson posiciona o riso no âmbito da inteligência pura, sendo-lhe desfavorável a interferência dos sentimentos, que devem ser postos de lado quando da produção do cômico, o que possibilita que se ria de uma situação que poderia ensejar piedade (BERGSON, 2018, p. 38-39).

O humor carvalhiano não é um humor comportado; o autor não abre mão de posicionar as coisas sérias na mira de seu riso. O caso de Carvalho é particularmente interessante por sua admitida adesão aos moldes do Surrealismo (CARVALHO apud GONZAGA, 2007, p. 60), um movimento de vanguarda surgido na França no intervalo entre as duas Guerras Mundiais. É notório o interesse dos surrealistas pelo humor, especialmente o sombrio – à época chamado de “humour noir”, em francês, e “black humour”, em inglês, o que no Brasil já se traduziu como “humor negro” –, que inclusive é objeto de uma das obras de André Breton, mentor intelectual dessa vanguarda, a Anthologie de l’humour noir. Esse subgênero é radicalmente oposto a expressões de sentimentalismo e pode chegar às vias da morbidez. Acerca dessa espécie ousada de humor, vejamos o pensamento do líder surrealista, quanto a seus recursos e manifestações:

O poeta francês explica a natureza do HN [Humor Negro], sempre rebelde e contrária ao senso comum e estabelece a filosofia que molda esse subgênero do humor. Aponta elementos vitais que permanecem como fundamentos para a construção e a compreensão de textos de HN, como o imprevisto/previsto, as contradições dilacerantes, analogias/ e correspondências, atração pelo mal, incompatibilidade que permeia essa atração, dramas íntimos, amor sublime/degradação, o ser humano degradado/o sujeito criador; satanismo romântico […], transgressão como opção e escândalo como conseqüência, causa-efeito, desafio ao religioso, à literatura vigente e ao socialmente correto, queda do homem e do demônio; unidade autor-obra, dissipação e trabalho intelectual, subversão dos parâmetros do gosto, elogio à imaginação, irrupção do maravilhoso, o maravilhoso contra o mistério e o contraponto ao realismo fantástico (mágico) e ironia, tudo isso presente, vivo, voraz e materializado por via da linguagem. (MAGALHÃES, 2008, p. 53. Grifos nossos)

Consoante à histórica função ameaçadora do humor, em seu levante contra as autoridades e formas de controle, vale ressaltar, para os fins de nossa análise, que o humor sombrio é comumente usado contra o status quo, pois constitui um dos meios de desacato às normas e condicionamentos sociais (MARWOOD, 2010, p. 2). A obra de Campos de Carvalho é transgressora em muitos aspectos, e a inconformidade com o que está dado na realidade social configura uma de suas bases. Juntamente a Campos de Carvalho, outros autores brasileiros podem ser citados como utilizadores do humor sombrio na segunda voga do Surrealismo no Brasil, cujo início remonta à década de 1940, a exemplo de Clarice Lispector e Manuel de Barros (LIMA, 2008, p. 767).

A produção desse humor ácido vem entremeada à suposta loucura do protagonista. Sua inadequação à vida em sociedade (quando vivo), unida a sua condição de defunto, tal como a de Brás Cubas (ROSA, 2018, p. 269), cujo discurso muitas vezes é satírico, permitem a Astrogildo a ridicularização do meio social e da atividade dos homens, em diversos domínios. A começar pelo acontecimento que leva o narrador ao claustro do manicômio – que no seguinte trecho ele diz se tratar de um hotel de luxo, provavelmente usando de ironia e falseando ingenuidade –, após a deflagração de uma guerra:

No dia seguinte, como a guerra houvesse rebentado, apresentei-me a um general-de-divisão que encontrei espairecendo pelo Bois de Boulogne, e ele foi muito gentil para comigo, dando-me uma corneta e cinco mil francos para comprar um uniforme. Com a corneta toquei o Danúbio azul, mas em surdina, e com os cinco mil francos fui a uma sessão de cinema (um filme de Clara Bow, se não me engano) e dei o resto a um mendigo que me pareceu mais honesto do que os outros – ou do que eu, pelo menos. […] Tudo isso do meu passado eu conto para que se possa ter uma idéia exata da minha situação presente, depois que me deram por excêntrico e me jogaram neste hotel de luxo onde os garçons, o gerente e o subgerente andam todos de branco, e têm também os dentes brancos e não vermelhos ou amarelos como toda gente. (CARVALHO, 2008, p. 14-15)

Eis, de um só golpe, a subversão da seriedade militar, a crítica antibelicista e a satirização do ambiente manicomial. A menção ao excesso da cor branca entre os empregados do asilo remete à função higienista da psiquiatria nos séculos XIX e XX. Percebendo a loucura como doença que oferece perigo ao meio social, a psiquiatria então se encarrega de afastá-la, alijando os chamados loucos da sociedade (FOUCAULT, 2010, p. 101-102). Tão simplesmente por ser considerado um excêntrico, um inadequado – critério afinal bastante arbitrário e frágil e que não destoa da realidade dos asilos e manicômios, considerando sua historicidade, conforme expõe Michel Foucault em História da loucura –, Astrogildo é levado a permanecer nesse espaço, que toma a maior parte da narrativa, ao qual a criticidade da obra endurece exponencialmente quando é comparado a um campo de concentração. Embora o narrador estranhe previamente o peso do controle exercido dentro do “hotel de luxo”, apenas alega se tratar, na verdade, de um campo de concentração após ser amarrado e submetido a uma sessão de eletrochoques (CARVALHO, 2008, p. 45-47). E, então, vendo-se em situação semelhante à do kafkiano Joseph K, de O processo, divaga:

Estaremos porventura numa nova Inquisição, ou será a mesma antiga que nunca deixou de existir e que só agora, pela primeira vez, se fez sentir em toda a sua plenitude sobre meu peito cansado e meu olhar triste, por motivos que desconheço e que aos outros parecerão óbvios? (Serei tão herege assim, eu que nem sequer nunca pensei em criar um deus à minha imagem e semelhança e em adorá-lo como se adora um senhor todo-poderoso, com subserviente hipocrisia?) Ou será que efetivamente sou um agente secreto de qualquer potência estrangeira – tão secreto que eu mesmo não sei – e, dotado de dupla personalidade, esteja no momento posando de santo, até que eles provem o contrário e me lancem com a minha verdade em pleno rosto? Tudo é possível neste mundo de infinitas surpresas, e o que me resta, como a elas, é apenas aguardar que os acontecimentos se sucedam por si mesmos e que eu venha a revelar um dia, por bem ou por mal, meu terrível segredo, ou – o que será mais triste – minha desesperada inocência. (CARVALHO, 2008, p. 47)

Já se anunciam, nesse trecho, outros objetos que serão satirizados, contudo, ainda em atenção à crítica da instituição manicomial, encontram-se aqui aspectos que espelham a operacionalidade desse ambiente no mundo moderno – questão que poderá ter suas variáveis de acordo com o local que se toma por referência, contudo, o manicômio que isola Astrogildo do meio social não tem sua localização esclarecida (CARVALHO, 2008, p. 65), o que permite certa abrangência pela qual se estende a criticidade do autor. Foucault escreve acerca da condenação asilar da loucura nos dois últimos séculos:

Agora ele [o “louco”] é julgado: e não apenas uma vez, na entrada do asilo, de maneira a ser reconhecido, classificado e inocentado para sempre. Pelo contrário, é aprisionado num julgamento eterno que não pára de persegui-lo e de aplicar contra ele suas sanções, de proclamar suas faltas e por elas exigir uma multa, de excluir enfim aqueles cujas faltas implicam o risco de comprometer por muito tempo a boa ordem social. A loucura só escapou ao arbitrário para entrar numa espécie de processo indefinido para o qual o asilo fornece ao mesmo tempo policiais, promotores, juízes e carrascos. […] Se têm o privilégio de não mais serem misturados ou assimilados a condenados, são condenados a estar, a todo momento, sujeitos a um ato de acusação cujo texto nunca é revelado, pois é toda a vida no asilo que o formula. O asilo da era positivista […] não é um livre domínio de observação, de diagnóstico e de terapêutica; é um espaço judiciário onde se é acusado, julgado e condenado e do qual só se consegue a libertação pela versão desse processo nas profundezas psicológicas, isto é, pelo arrependimento. […] Por muito tempo, e pelo menos até nossos dias, permanecerá aprisionada num mundo moral. (FOUCAULT, 2017, p. 496)

A despeito do tom um tanto sério do último trecho transcrito de A Lua vem da Ásia, a ironia e o humor subsistem, assim como em grande parte do discurso do narrador. E, quanto ao paralelo entre o asilo e o campo de concentração, faz-se jus ao que Breton afirma sobre a veemente rejeição do humor sombrio ao sentimentalismo e sua preferência pela transgressão, já que Carvalho ousa jogar com um assunto tão delicado e veicular, dessa forma, o caráter ácido de seu clown

O espaço do manicômio, conforme mencionado, tem ampla participação na narrativa. O autor não o utiliza apenas para criticar a instituição, pois a falta de liberdade, que constitui um de seus aspectos mais notáveis, e do qual Astrogildo reclama muitas vezes, parece torná-lo sinédoque do mundo dito civilizado, se se levar em conta o espectro de configurações e instituições sociais às quais os ataques do narrador são dirigidos, acrescentando-se ainda, sistematicamente, as afirmações que ele faz de sua individualidade, face a uma sociedade demasiado condicionante, cerceadora (CARVALHO, 2008, p. 42-43). Logo, o elemento humano não pode ser desconsiderado. Aliás, a própria autodeclaração de clown, como figura que foge à normalidade, é laivo dessa distinção em meio aos outros, a despeito da já citada volubilidade que caracteriza essa figura. Segue um excerto em que o narrador rapidamente estende ao mundo, de forma generalizada, uma condição interna ao ambiente em que está aprisionado; a interferência civilizatória humana nesse mundo é evocada pela figura do soldado:

Mas se a comida não é intragável, a liberdade aqui [no asilo] é uma palavra que já não existe nem sequer nos dicionários e de que só ouvimos falar quando somos nós que a pronunciamos, em geral em voz baixa e para nós mesmos. E sem liberdade, hão de convir VV. Exas. que este mundo, por melhor que seja, não passa de um pesadelo e de uma farsa de mau gosto – como há de achar no front o soldado com o seu fuzil e suas polainas, num dia azul de primavera (CARVALHO, 2008, p. 67)

O destaque da disparidade entre a falta de liberdade no mundo e a beleza nele presente dá alguma força à crítica. O Cristianismo, tão presente na civilização – pelo menos, na ocidental –, já tangenciado antes pela menção à Inquisição, também não escapa ao riso mordaz proposto por Carvalho. Antes de acusar a atividade alienante da Igreja Católica, que puniu com a Inquisição aqueles que “preferiam caminhar sobre dois pés em vez de quatro” (CARVALHO, 2008, p. 181), Astrogildo zomba dos ideais de puritanismo e inibição sexual – veiculados pela instituição do pecado capital da luxúria, por exemplo – ao comentar o regime de abstinência a que estão submetidos os pacientes no ambiente asilar:

Não que eu fuja à regra geral da masturbação; mas posso afirmar que sinto muito menos os aguilhões da carne do que, por exemplo, o legado pontifício ou seu casmurro secretário, para não falar de um estudante chamado Vinícius e que vive a recitar a Bíblia justamente naqueles trechos em que a Bíblia desperta a imaginação da juventude e favorece, de certo modo, as poluções noturnas. (CARVALHO, 2008, p. 68)

O humor se manifesta na obra como retaliação ao controle das instituições; é conhecido o poder deletério do riso, não raro empregado para deslegitimar as autoridades (PROPP, 1992, p. 46). Contudo, a disrupção do narrador envolve também a política, o que servirá de gancho para expressar uma disrupção ainda maior, mais fundamental ou existencial, como veremos adiante.

Geraldo Noel Arantes trata, em sua tese, da aparente falta de engajamento político de Campos de Carvalho, cujos livros foram lançados nos anos que antecederam o Golpe de 1964. Embora esclareça que ele jamais fora perseguido pela censura dos militares (ARANTES, 2010, p. 254), duvida da suposta ausência de posicionamento político do autor, ponto com o qual concordamos:

Declaradamente insurgente, Campos de Carvalho desafiou uma cultura social religiosa e conservadora; de um reacionarismo cuja compreensão exige a prospecção da camada geológica profunda de nossa pequena burguesia e de seus mais intransigentes sentimentos arcaicos. (ARANTES, 2010, p. 253-254)

Não obstante, não se poupa do riso a atividade política no presente texto de Carvalho. No capítulo “C” (CARVALHO, 2008, p. 115-118), que compõe a segunda parte da obra, Cosmogonia – em que o narrador faz, sem observar a lógica, o relato de suas lembranças anteriores ao tempo no asilo –, Astrogildo se encontra em um conflito armado, durante uma revolução comunista. O escárnio transparece já no primeiro parágrafo e, de maneira subjacente, uma certa ideia de inutilidade ou desimportância:

Quando acordo, estamos em plena revolução comunista, com barricadas por todos os cantos e um ruído de metralha cortando o espaço em todas as direções. Lavo o rosto na poça d’água onde ainda dormia o meu irmão, e saio correndo em direção à esquina mais próxima, onde dois cachorros, indiferentes à calamidade, se entregam à doce tarefa de perpetuar a espécie, junto a um busto de Bolívar. (CARVALHO, 2008, p. 115)

Essa impressão de inutilidade matiza, em larga medida, o discurso de Astrogildo, quando se refere às coisas humanas, conforme se verá na parte referente à melancolia. A percepção da esterilidade que permeia desde a vida individual até uma realidade coletivamente construída pela ação humana faz com que o narrador chame a tudo de “merda” (CARVALHO, 2008, p. 122). Tal parece ser, muitas vezes, o fundamento por trás de seu humor sórdido, cujas manifestações abrangem uma outra passagem do capítulo “C”: trata-se de seu comentário após matar um homem com um fuzil: “O resto do vinho mistura-se com o sangue que lhe jorra aos borbotões do nariz e da boca, e a mistura do vinho e do sangue forma um colorido entre o marrom e o tanga, que faria inveja a qualquer pintor acadêmico.” (CARVALHO, 2008, p. 118). Em contrariedade aos princípios que regem a sociedade, Carvalho brinca com a vida, que se revela, sob o olhar pessimista da personagem, inútil, sem valor. Outro bom exemplo em que se conjugam o humor sombrio e a percepção implícita da banalidade generalizada está no capítulo “H”, no qual Astrogildo negocia a venda de um cadáver, e seu interlocutor encara a bizarra transação com naturalidade (CARVALHO, 2008, p. 144-145).

Tem-se, então, a alçada do riso a níveis mais existenciais, ontológicos, não se restringindo a camadas mais imediatas, como a das instituições que balizam a ordem social. A natureza irrisória do homem é especialmente apontada por Astrogildo no seguinte trecho, mais uma vez, não isenta de humor:

[…] e é para o vosso cu que vos conclamo olheis diante do espelho, se preciso de joelhos e com uma vela na mão para enxergar melhor, toda vez que vos sentirdes possuídos de um orgulho oceânico e vos julgardes tão poderosos quanto vosso Deus, que pelo menos (que eu saiba) não tinha nenhum cu à vista. (CARVALHO, 2008, p. 158)

Astrogildo, que aponta a equivocidade dos homens, está em posição de distinção. É relegado ao asilo por não se encaixar nas diretrizes vigentes que pautam a civilização, daí a pecha de excêntrico. Talvez possa ser visto como um sábio, apartado da alienação que cega a maioria dos homens, provocando assim questionamento em torno da loucura da qual é acusado. Ele, que se refere a si mesmo como “superlúcido” (CARVALHO, 2008, p. 19), consciente de sua própria distinção (CARVALHO, 2008, p. 188), reveste-se da loucura para, em movimento inverso, revelar a loucura ao redor. Em virtude da aparente lucidez da personagem, a confusão entre asilo e hotel de luxo e, mais tarde, campo de concentração, parece ser nada mais que ironia no primeiro caso e hipérbole, no segundo, ambos eivados de criticidade. 

Vale, portanto, exemplificar a temática da relação entre loucura e sabedoria, na historicidade do imaginário ocidental, com História da loucura, em que Foucault discorre a respeito desse parentesco, no primeiro capítulo da obra. Ao fim da Idade Média, a figura do louco, no âmbito do teatro, operava como veículo da verdade e agia no sentido de afastar as ilusões dos homens (FOUCAULT, 2017, p. 14). Certas concepções, em voga no século XVI, aproximavam a loucura da razão. Uma não poderia ser dissociada da outra, e a razão, surpreendentemente, poderia ser acessada pela via da loucura (FOUCAULT, 2017, p. 34-36). Torna-se inviável considerar a loucura como algo que nada tivesse a ver com a sabedoria: “A sabedoria e a loucura estão muito próximas. Há apenas uma meia-volta entre uma e outra. Isso se vê nas ações dos homens insanos.” (CHARRON apud FOUCAULT, 2017, p. 34). 

Logo, não se trata da loucura, segundo a descrição de Erasmo de Rotterdam, que afasta os homens das preocupações, abrindo-lhes as portas do lúdico e do prazer (ROTTERDAM, 2013, p. 20), ou da loucura, também abordada pelo pensador, identificável sob a perspectiva da moral e da consciência crítica do homem sobre si mesmo, isto é, uma loucura atrelada aos vícios e às falhas, conforme o esclarecimento de Foucault (FOUCAULT, 2017, p. 28). A loucura da personagem carvalhiana pode ser entendida como excesso de lucidez, cuja região limítrofe com a sabedoria é um tanto nebulosa, embaçada. Por isso, é plausível conjecturar que sua loucura é apenas simulada, consoante a seu papel de clown, que traz em si a faculdade da performance. Pode-se dizer que o papel da loucura, em A Lua vem da Ásia, é legitimar o riso contrário ao status quo, dentro de cujos limites o narrador, um “louco”, não se encaixa.

E retornando à presença do humor no texto, a fim de melhor esclarecer seu uso por Campos de Carvalho, cabe pensar no contexto histórico de sua confecção, o século XX, que também corresponde ao tempo da narração (CARVALHO, 2008, p. 66). O século XX foi um período de calamidades, o tempo das Guerras Mundiais, do Holocausto, da ameaça nuclear. Filiado ao Surrealismo, tem-se na obra carvalhiana um humor que se vale da absurdez, da não lógica, fazendo frente a um “mundo em que o absurdo é cada vez mais a regra geral” (CARVALHO, 2008, p. 68). 

O humor e a ironia generalizam-se no século XX, mas um e outro são constatações de impotência, condutas que permitem ultrapassar o absurdo do mundo, do homem, da sociedade. […] O humor, escreve Keith Cameron, “foi sempre uma fonte de consolo e uma defesa contra o desconhecido e o inexplicável. A própria existência do homem pode ser considerada como uma brincadeira: sua significação está mal definida e é difícil explicá-la fora da religião.’ O humor moderno é menos descontraído que o de séculos passados, porque incide não mais sobre este ou aquele aspecto da vida, mas sobre a própria vida e seu sentido, ou sua ausência de sentido. (MINOIS, 2003, p. 569)

Evidencia-se, no século XX, um humor que se sustenta na percepção de que o homem não tem “porto seguro”; ele, perplexo, não consegue identificar o sentido da sua existência, sobre a qual pairam grandes dúvidas. A fé já não tem o poder de épocas passadas. A possibilidade da absoluta nulidade, do absoluto nada, está à espreita. É o século em que, no campo da filosofia, o Existencialismo vem à tona, com suas luzes incidindo sobre o absurdo da vida. Mais do que nunca, talvez, o século XX salienta o estranhamento do homem dentro de sua própria existência, e o estado de angústia imanente a ela (HEIDEGGER, 2009, p. 254-255).

A afluência das críticas e ataques, realizadas pelo protagonista a instituições e balizas sociais – bem como à hipocrisia que as cobre –, e que igualmente envolve camadas mais abstratas e existenciais, culmina em seu suicídio. Mesmo o suicídio de Astrogildo, que ele comunica à seção necrológica do Times por meio de uma carta, não dispensa a “pena da galhofa”; mais uma vez se expressa, sub-repticiamente, a nulidade absoluta que dá o tom do seu discurso:

A morte de um mosquito é tão importante quanto a minha própria morte, digo-o sem falsa modéstia, e disso o senhor mesmo [o redator do jornal] terá prova ao ficar sabendo do meu suicídio, que o afetará tanto quanto a morte de um dos milhões de perus sacrificados à véspera do Natal. (CARVALHO, 2008, p. 186)

Verifica-se como a tradição do humor sombrio, especialmente aquele que abarca a temática do suicídio, é bem contemplada em A Lua vem da Ásia, dada a ampla presença de seus traços na obra:

Much black humour on suicidal themes is directed against people’s greed, narrow-mindedness, complacency and hypocrisy. Black suicidal humour frequently satirizes human attitudes, social institutions, including government bureaucracies, the military, large corporations, even medical system, depicting them as dehumanizing organizations and persons. Black humourists often attack the absurdity they see in life itself, as well as ills of the society. The awareness of human mortality including, of course, suicide is basic to black humour giving many of the works (caricatures, cartoons, jokes, wits, etc.) a desperate, even hopeless tone. (LECHER-ŠVARC, 2017, p. 399)

Portanto, a percepção da banalidade, por Astrogildo, prevalece sobre a ideia de valor da individualidade por ele manifesta em mais de um momento. O que soa como contradição, em vista de seu pessimismo, constitui apenas a marca de sua distinção em relação aos outros homens, que, dentro do asilo, parecem alienados de sua condição (CARVALHO, 2008, p. 72), alienação essa que se estende para dimensões maiores, isto é, para os homens de modo geral.

É possível traçar um paralelo entre Astrogildo e a personagem Demócrito, que participa de uma antiga narrativa atribuída ao filósofo Hipócrates, que também figura nela como personagem. Hipócrates teria sido chamado pelos habitantes da cidade de Abdera para averiguar o que havia de errado com Demócrito, que se isolara do convívio dos homens em uma colina e ria de tudo, indistintamente, mesmo de coisas sérias, a exemplo de ferimentos ou mortes ([HIPÓCRATES], 2011, p. 31). Os abderitas criam-no louco ou enfermo. Hipócrates, após conversar com Demócrito e descobrir as razões de seu riso, convence-se de que o suposto louco é o mais sábio dos homens ([HIPÓCRATES], 2011, p. 62). Com o riso, Demócrito respondia à insensatez generalizada que atravessa a conduta da maioria dos indivíduos, às preocupações e valores efêmeros, ao incansável esforço em busca do que trará, ilusoriamente, a felicidade, como a riqueza material ([HIPÓCRATES], 2011, p. 53). Em meio a uma longa exposição sobre a estupidez humana, Demócrito parece reconhecê-la como inerente aos homens:

Desde que nascem, todos os homens não passam de doentes, quando bebês, sem saberem fazer nada, vivem clamando por ajuda. Quando crescem um pouco se tornam idiotas e presunçosos por influência da pedagogia, quando chegam à idade adulta, passam a ser arrogantes, e, na velhice, tornam-se resmungões, colhendo sofrimentos como frutos da própria irracionalidade. Também são influenciados pelo sangue impuro de suas mães, pelo qual permanecem irascíveis e sem nenhuma medida em seu ímpeto, vivem nos infortúnios e nos combates, uns sendo arruinados pelo adultério, outros pela bebida, outros por desejar o que é de outrem ou mesmo por arruinarem-se em sua própria desmesura. ([HIPÓCRATES], 2011, p. 59-60)

Além da similaridade de atitude entre Demócrito e Astrogildo frente ao mal, a questão proposta por pseudo-Hipócrates se repete na obra de Carvalho: a loucura está naquele que é apontado como louco ou nos outros que o acusam? Astrogildo, diferente dos demais, é consciente do absurdo da existência, da falta de justificativas para o cultivo de qualquer orgulho; não obstante, recusa-se a participar do desatino dos homens, manifesto na sociedade sob diversas formas. Em outras palavras, segue sua consciência, mas sabe que ela não o salvará da condição miserável que compartilha com todos. A construção desse narrador, que em si traz um jogo entre pessimismo e comicidade, contempla o extremo a que a existência, inerentemente trágica, conduz o sujeito, condenado a um papel que chega a ser cômico em face dos infinitos sofrimentos e esforços que se lhe impõem ao longo da vida (SCHOPENHAUER, 2014, p. 36). Contudo, o pessimismo de Astrogildo nem sempre é expresso sob tom humorístico. Há oscilação entre o riso trágico e a pura melancolia. Passemos, então, à seção seguinte, em que se abordará esse segundo aspecto.

Um melancólico por trás da máscara

Mais do que uma questão psiquiátrica, a melancolia hoje integra a memória cultural do Ocidente, tendo influenciado as artes no correr das épocas, como tão bem demonstram, por exemplo, Jean Starobinski e Moacyr Scliar em suas respectivas obras, A tinta da melancolia (L’Encre de la mélancolie) e Saturno nos Trópicos. Entendida como uma forma prolongada de tristeza, a melancolia foi, por muitos séculos, explicada pela teoria dos humores, formulada por Hipócrates. O corpo conteria quatro humores: o sangue, a bile amarela, a linfa e a bile negra, de modo que a cada um se vincularia um temperamento, um estado psicológico. À bile negra, cujo caráter patológico era mais evidente em relação aos outros três humores, liga-se a melancolia (SCLIAR, 2003, p. 70). O temperamento melancólico, portanto, seria desencadeado a partir do acúmulo de bile negra no organismo. Mesmo após superada a hipótese dos quatro humores, a melancolia não deixou de ser objeto de investigação, inclusive da psicologia, sendo abordada por Freud, em seu ensaio intitulado Luto e melancolia (Trauer und melancolie), ao qual recorreremos mais tarde. 

À luz das tradições que se formaram em torno da melancolia, buscaremos apontar, nesta subseção, os motivos que possibilitam apontar o herói de A Lua vem da Ásia como um melancólico. Voltando à narrativa pseudo-hipocrática que utilizamos como termo de comparação, é interessante a conjectura de que Demócrito conserva também a melancolia por trás de seu riso indiferente (STAROBINSKI, 2016, p. 143). Esse paralelo permanecerá útil para ilustrar, adiante, determinados traços de Astrogildo. 

São muitas as passagens, na obra de Campos de Carvalho, em que Astrogildo se expressa em tom lamentoso, as quais são destituídas do frequente timbre cômico que se faz ouvir em seu discurso, e, por conseguinte, privadas dos ataques veiculados pelo riso. O sentimento de impotência lhes fornece o pano de fundo. É da melancolia, vale conjecturar, que se origina o pessimismo tão incisivamente manifesto pela personagem, mesmo nos trechos humorísticos. O sentimento melancólico dá seus sinais em momentos desde os mais sutis, a exemplo de quando o narrador cita os “dias cinzentos” que está vivendo (CARVALHO, 2008, p. 33), até os mais radicais, como a sugestão, quando da comunicação de seu suicídio, de que é possível encontrar diversas razões para o suicídio de toda a humanidade (CARVALHO, 2008, p. 186). Mas, evidentemente, a melancolia entremeia-se também com o humor presente na obra, pois este não enseja um riso apotropaico, e sim um riso inquietante que aponta o mal, o absurdo, a hostilidade. Sérgio Lima, ao discorrer sobre o então chamado humour noir, sugere sua relação, aos olhos de Breton, com a melancolia (LIMA, 2008, p. 772). Aliás, o jogo entre riso e melancolia não é nem de longe restrito a um curto espaço na história da literatura ocidental, tampouco é recente, sendo propriedade, por exemplo, da persona satírica, existente desde a Antiguidade (STAROBINSKI, 2016, p. 132-133), e também da fórmula shandiana sobre a qual escreve Sergio Paulo Rouanet em Riso e melancolia, e que, inclusive, é adotada por Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas

A particularidade de Astrogildo, tal como é o caso de Demócrito, é a adição, a esse jogo entre riso e melancolia, da imprecisão entre lucidez e loucura, tendo em vista o objeto – a insensatez aparentemente natural dos homens que contribui para a absurdez do mundo – que motiva a reação, tanto de um quanto de outro, pelas vias do riso e da ironia. Assim, surge a perspectiva de que o que realmente está em cena é o excesso de lucidez. E por que Demócrito e Astrogildo são dotados dessa lucidez? Cabe examinar as tradições da melancolia, a partir dos entendimentos tecidos historicamente acerca dessa desordem, ainda que atualmente não sejam mais de todo aceitos – salientamos, nosso interesse é mais cultural do que clínico, porém, ambos os pontos de vista serão aqui utilizados.

Além dos traços patológicos, a melancolia se revestiu, ao longo do tempo, de certa nobreza, pois foi muito ligada à faculdade reflexiva. Nas Problemata, cuja autoria talvez tenha sido de Aristóteles, apresenta-se o melancólico como um indivíduo que se distingue entre os demais “no que diz respeito à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes” (STAROBINSKI, 2016, p. 131). Robert Burton, autor da obra que constitui a pedra de toque em se tratando desse tema, A anatomia da melancolia (The anatomy of melancholy), percebia nela, juntamente a um provável tédio, “uma condição existencial envolta em aura filosófica” (SCLIAR, 2003, p. 58). O olhar do anjo na emblemática gravura de Albrecht Dürer, Melencolia I – frequentemente abordada em produções acadêmicas que tratam do assunto –, sinaliza a entrega meditativo-filosófica típica do melancólico (SU, 2007, p. 162). Enfim, indício significativo do exercício reflexivo de Astrogildo ocorre em:

De resto, a noite não é tão triste assim, e eu bem posso, querendo, sentar-me à beira da cama, colocar as duas mãos na fronte como o faria qualquer sujeito de bom senso, e distrair-me assim com o espetáculo da parede sempre branca e sempre imóvel, a dois palmos do meu nariz. Livros eu não tenho para ler no momento, nem eles [os funcionários do asilo] dão coisa que preste que me faça mais sábio do que sou […] Violão também não tenho, nem piano, nem saxofone, de maneira que a chuva ainda é a melhor coisa que me poderia acontecer nesta noite sem mês e sem ano, já que as paredes brancas e iguais já não me oferecem segredo nenhum, à força de eu me postar diante delas como diante de um espelho. (CARVALHO, 2008, p. 18. Grifo nosso)

Em seguida, o narrador afirma o poder maior de sua consciência em relação aos demais (CARVALHO, 2008, p. 19). Ainda que o estado emanado aqui pareça ser o tédio, a menção a “espelho” é particularmente intrigante e possibilita ao menos duas relações com a melancolia, um tanto próximas, e igualmente cabíveis no estudo do herói carvalhiano. Entendendo que a comparação com o espelho evoca o ato de olhar para si mesmo, fazer convergir o pensamento para o interior, recorremos a Freud, que afirma ser o ego do melancólico dominado pelo “trabalho interior” (FREUD, 2016, p. 103). Contudo, essa concepção freudiana nos será necessária adiante. Acerca do sistema de significação espelho-reflexão-inclinação filosófica, cita-se:

A metáfora do espelho tem uma longa história, independente de qualquer colusão com a melancolia. Mas, quando os dois temas se encontrarem, vão se reforçar e se aprofundar mutuamente. […] O campo da melancolia e o da reflexão não são exatamente passíveis de superposição, é preciso convir: a implicação afetiva da tristeza e do temor não é necessariamente ligada à reflexão […]. Mas devemos convir que existe uma área em que reflexão e melancolia se justapõem, e que disso resulta um notável “efeito de sentido”. Qualquer reflexão implica um afastamento, e o afastamento pode receber o valor de uma perda. Assim que entra em cena a noção de perda, a sombra da melancolia cai na reflexão. A distância é então interpretada como um exílio; a guinada reflexiva aparece como consequência de um banimento. (STAROBINSKI, 2016, p. 134-135, grifo do autor)

Saturno, um dos mais importantes símbolos da melancolia, igualmente expressa a distinção intelectual do melancólico, pois se trata de uma divindade capaz de acessar as verdades de um plano superior, conforme pregava a mentalidade renascentista (STAROBINSKI, 2016, p. 135). E, em relação à situação de banimento que enseja o trabalho da introspecção, vê-se que Astrogildo não escapa a ela, considerando seu isolamento físico do meio social imposto pelas paredes do asilo, porém, segundo a própria personagem, esse banimento se desdobra igualmente para o interior, atingindo dimensão psicológica, o que é sinalizado por sua incapacidade de se misturar com os outros homens (CARVALHO, 2008, p. 188). Tal como o anjo da gravura de Dürer, cujas asas representam o poder de uma inteligência fora do comum (SCLIAR, 2003, p. 82), Astrogildo é capaz de atingir grandes alturas, onde a impressão da pequenez das coisas humanas não deixa de acompanhá-lo:

O mundo se divide em duas partes bem definidas: eu e o resto do mundo, e a minha defesa está justamente nos meus sonhos, ou desvarios como queiram, em cujas asas vôo a alturas que vocês nunca atingirão de foguete, e de onde avisto as cúpulas dos edifícios como se fosses cabeças de alfinete, como o são realmente. […] Aos mil professores que tentaram deseducar-me respondo-lhes com um piparote no cocuruto, exatamente como fiz ao médico que não soube descobrir a causa do meu pranto, e a toda a sua ciência oficial e cheirando a naftalina eu oponho a onisciência do meu instinto indomável e sem máscara, mesmo porque não existe (que eu saiba) nenhuma máscara de mil faces. (CARVALHO, 2008, p. 183. Grifo nosso)

Assim como neste trecho, o narrador menciona ainda outra vez que seu choro é imotivado (CARVALHO, 2008, p. 167), aliás, ele chora por motivos bastante difusos: “as mazelas e as incongruências deste mundo tão cotidiano” (CARVALHO, 2008, p. 169-170). Fazendo uso de múltiplos pontos de vista sobre a melancolia, o que nos é permitido pela obra em pauta, cabe citar o que Freud aponta sobre essa desordem, que, diferente do luto, não tem uma causa que se permita delimitar facilmente. A melancolia parece ser uma afecção desencadeada dentro do próprio Eu (FREUD, 2016, p. 102). Não se refere ao prejuízo de um objeto externo no qual o sujeito investe sua atenção, mas sim à subjetividade: “o melancólico não faz o luto da perda objetal. Ele se identifica ao objeto perdido, numa situação que sinaliza um quadro narcísico peculiar.” (PINHEIRO; QUINTELLA; VERZTMAN, 2010, p. 150. Grifo dos autores). Depreende-se dessa perda a depreciação que o melancólico faz de si mesmo (FREUD, 2016, p. 102-103), sintoma verificável também no herói carvalhiano, que, ao comunicar seu suicídio, diz: “Enjoei de mim, como poderia ter enjoado da cara de um vizinho que nunca me tivesse feito mal em sua vida – e como não sou obrigado a viver de enjôo, cortei simplesmente o mal pela raiz, eliminando-me da minha vista.” (CARVALHO, 2008, p. 187). A evocação do espelho no fragmento acima exposto desdobra-se então em um segundo sentido: o olhar que se volta para dentro, o exame do próprio Eu, o “trabalho interior”, que absorve o indivíduo acometido de melancolia (FREUD, 2016, p. 103). 

O trecho a seguir, em particular, igualmente interessa a nossa análise sobre a melancolia da personagem: “[…] em mim eu mato o homem que não me agrada e não o meu eu verdadeiro, que é até simpático” (CARVALHO, 2008, p. 187). Astrogildo assume um duplo, o que não é de todo estranho para o que já se pensou a respeito da melancolia, pois é conhecida a hipótese de um “outro melancólico” “as the unknown part of ourselves, that which is so close we cannot ‘see’ it, which overflows and is irreducible to perception and representation.” (SU, 2007, p. 160).

Talvez a personagem veja em si a mesma efemeridade que enxerga em tudo ao redor. Não se chega, portanto, à resolução do ciclo: Astrogildo se autodeprecia por perceber a banalidade também em si, ou sua perda egóica o faz estender essa perda às coisas externas a ele? Além disso, parece haver outra contradição entre o desprezo por si próprio e a já abordada afirmação de sua individualidade. O papel desta última, na leitura que propomos, é enfatizar sua consciência rara, ou sua inteligência privilegiada, em meio à loucura geral dos homens, que ora é referida metonimicamente por meio da figura das instituições sociais, ora é referida de maneira mais direta. Essa consciência, que muito soa como o niilismo, legitima que mesmo questões sérias, como a morte, sejam objeto da bufonaria do narrador. O preço que se paga em troca dessa iluminação, contudo, engloba a impossibilidade de usufruir das fontes de prazer mais comuns (CARVALHO, 2008, p. 170).

Na esteira de seus lamentos, o clown carvalhiano fala de sua insônia em mais de um momento (CARVALHO, 2008, p. 19, 93). Novamente é sugerida a intensa atividade do pensamento: “[…] a noite foi feita para os galos dormirem e os insones roerem a sua insônia. Roerem – não disse bem?” (CARVALHO, 2008, p. 18. Grifo do autor). A insônia é assinalada por Freud como um dos sintomas da melancolia, junto a outros males que, conforme vimos, afetam o narrador de A Lua vem da Ásia:

O quadro desse delírio de inferioridade [Kleinheitswahn] [a autodepreciação] – predominantemente moral – completa-se com insônia, recusa de alimentação e uma superação da pulsão – extremamente peculiar do ponto de vista psicológico – que obriga todo ser vivo a se apegar à vida. (FREUD, 2016, p. 103. Grifos nossos)

E enquanto o intelecto e a imaginação de Astrogildo são agitados, por outro lado, a personagem tem apreço pelo ócio (CARVALHO, 2008, p. 131). A imobilidade – que também é evocada, juntamente ao tédio, quando o narrador chama a um rio próximo ao asilo de “rio da Monotonia” (CARVALHO, 2008, p. 33) – é mais um elemento que encontra ressonância no legado cultural da melancolia. Em mais um paralelo com Melencolia I, de Dürer, consideramos o comentário de Scliar:

Na gravura há ainda uma profusão de objetos usados no cotidiano, em vários ofícios, na ciência: uma balança, uma ampulheta, uma sineta, martelo, serrote, pregos. Aparentemente eles não estão ali para serem utilizados; ao contrário, sugerem imobilidade – a mesma imobilidade que transparece na própria Melancolia […]. O tempo está congelado: os dois compartimentos da ampulheta contêm a mesma quantidade de areia. Há ainda uma tábua numérica (daquelas em que os números, somados, dão sempre o mesmo resultado, na horizontal ou na vertical) […] (SCLIAR, 2003, p. 84)

Com base no exposto, vê-se que os atributos da melancolia reverberam em considerável medida na construção dessa personagem, que, para além das máscaras cômicas, pode ser encarada também em roupagens mais sóbrias. Para concluir a exposição a que nos propomos, o trecho a seguir é valioso:

Eu que sempre levei uma vida aventurosa, modéstia à parte, rindo-me de tudo e de todos sem pedir licença ao papa nem ao chefe de polícia, sempre fui no íntimo um pobre espantalho dentro da noite, mais triste do que o palhaço mais triste, com o riso da caveira à guisa de gargalhada. É que o meu riso, que a muitos parecia louco, era em verdade e apenas um pranto disfarçado […] (CARVALHO, 2008, p. 170)

Assim como a melancolia de Demócrito se subjaz ao seu riso universal, que abarca tudo indiferentemente, a face melancólica de Astrogildo está sobreposta pelo papel cômico. Aliás, o riso parece ser a alternativa ao pranto, “um pranto disfarçado”, isto é, o riso e o choro têm o mesmo ponto de partida: a indignação frente às loucuras humanas. O riso apresenta caráter ameaçador, diferentemente do choro, representando uma atitude mais contundente contra o absurdo ao redor. Embora os tempos mudem, a conduta dos homens permanece atravessada pela insensatez. E, em virtude da semelhança da conduta de Astrogildo com a do filósofo nas cartas pseudo-hipocráticas, pode-se atribuir-lhe, a despeito das nuanças distintas de um e de outro, a faceta de um Demócrito moderno, que ri não dos costumes dos homens no tempo da Antiguidade, mas das loucuras da dita civilização no século dos regimes totalitários na Europa – cujas ideologias eram amplamente apoiadas –, do napalm, da divisão do globo em duas metades inconciliáveis. Entremeando-se as narrativas, não é equívoco concluir que, mais uma vez, Hipócrates se convenceria de que o verdadeiro desatino habita entre a maioria dos homens.

Considerações finais

Conforme a afirmação do próprio herói, Astrogildo é um clown. A volubilidade é traço característico dessa figura, que não obedece aos padrões lógicos hegemônicos na construção narrativa, o que corresponde ao alinhamento surrealista de Campos de Carvalho, entre outros fatores. No entanto, observa-se que o ethos da personagem permanece constante durante toda a obra. Suas convicções, mediante um exame mais geral, não parecem conter contradições. Aliás, a notória complexidade da personagem talvez dê vazão a futuros trabalhos acadêmicos; uma questão válida, possivelmente, a ser abordada, é a relação entre o pessimismo do herói e o pensamento de Schopenhauer. Não deixa de haver, tampouco, sólida coerência temática na manifestação de seu humor, que ataca instituições, imperativos sociais e se radicaliza a ponto de transgredir a sacralidade da vida, princípio que, em nossa sociedade, molda configurações políticas e jurídicas, sem mencionar seu papel no âmbito da religião predominante no Ocidente, o Cristianismo. Sendo um texto de fortes contornos surrealistas, tal coerência ou linearidade fazem pensar acerca dos possíveis limites para a ilogicidade nas obras que se relacionam ao Surrealismo.

A legitimidade desse humor reside na inconformidade com o que está dado. Na análise que propomos, essa inconformidade provém de uma consciência mais profunda do mundo, dependente de uma inteligência que se destaca, que é pouco comum. A formulação da personagem permite, para fins de estudo, que relacionemos a melancolia, enquanto questão psicanalítica e cultural, à sua superioridade intelectual e crítica, já que a melancolia por muito tempo foi entendida como típica dos indivíduos inclinados ao exercício filosófico. 

Embora Astrogildo dê asas a esse intelecto por meio da ironia, frente ao mal onipresente, termina optando pelo suicídio, e aí se manifesta o grande pessimismo da personagem, que aparenta prevalecer sobre sua vontade cômica e deletéria. O riso funciona como paliativo momentâneo, mas não é suficiente para dar outro desenho à realidade. Todavia, a obra de Campos de Carvalho termina com uma solução antitética: seu herói escolhe o próprio aniquilamento, mas deixa seus ditames à posteridade. Novamente, é possível a comparação com Brás Cubas, que, também consciente da efemeridade da vida – o que se depreende da dedicatória a um verme –, cuida para que sua palavra se imortalize (ASSIS, 2018, p. 7). Tal decisão, em ambos os casos, entra em conflito com o pensamento das personagens, marcado pelo pessimismo, assombrado por ideias de impotência e desvalor.

Conforme fora ressaltado, o legado cultural e literário do Ocidente traz inúmeros exemplos em que se tem o jogo entre humor/riso e melancolia. A utilização do humor nos textos carvalhianos pode ainda oferecer muitas oportunidades de pesquisa, em razão de sua variedade e presença. No entanto, os elementos mais sóbrios podem igualmente colaborar com os estudos em torno da obra do escritor uberabense e, mais ainda, as eventuais conexões entre esses elementos e o(s) humor(es).

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O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ­ Brasil, sob o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, e da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, da Universidade Federal de Ouro Preto.