A figura feminina em Gil Vicente: Uma análise da oposição entre a tradição e a modernidade na “Farsa de Inês Pereira”

Pedro de Oliveira Rodrigues

RESUMO: Este artigo objetiva refletir, através de oposições, sobre a representação feminina em A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, considerando suas três personagens principais: Inês Pereira, a Mãe de Inês e Lianor Vaz. Serão usados para sustentar a análise fatores históricos e literários tratados por estudiosos da literatura (ABDALA JUNIOR; PASCHOALIN, 1985; MOISÉS, 1995), principalmente quanto à caracterização do contexto histórico em que o autor viveu (REDE MUNICIPAL DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS DO CONCELHO DE PALMELA, 2010; SEVCENKO, 1988), a escola literária a que é canonicamente filiado e as características gerais que permeiam a obra vicentina. A hipótese apresentada será a de que Gil Vicente faz uma representação feminina crítica em relação ao tradicional e o considerado moderno em seu momento histórico. Esta análise conclui que Gil Vicente, na peça analisada, compreende como ideal a mulher portadora de valores conservadores, isto é, medievais e não em acordo com os novos propostos pelo novo ideário burguês que surgia à época.

PALAVRAS-CHAVE: Gil Vicente; Humanismo; Idade Média; Feminino; Farsa.

ABSTRACT: This paper aims to think, through opositions, about the woman’s figure in The Inês Pereira’s Farce, of the portuguese author Gil Vicente, considering, there fore, its mains characters: Inês Pereira, the Inês’s Mother and D. Leonor. To sustain this analysis, historic and literary aspects already spoken by literature’s reasearchers (ABDALA JUNIOR; PASCHOALIN, 1985; MOISÉS, 1995), focusing on: the caracterization of the historic contexto that Vicente lived (REDE MUNICIPAL DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS DO CONCELHO DE PALMELA, 2010; SEVCENKO, 1988), the aesthetics literary school which is traditionally attached and the general peculiarities that permeate the Gil Vicente’s literary creations. The thesis pointed will be thtat Gil Vicente do a critic feminine representation in relation to the traditional and the concepted as modern in his historic momentum. This analysis deduce that Gil Vicente, in the impromptu analysed, comprehends as ideal the woman with conservatives values, namely, medieval and discordant with the new proposed by the new bourgeois ideology inceptive at the time.

KEYWORDS: Gil Vicente; Humanismo; Idade Média; Feminino; Farsa.

 

1. Introdução

Gil Vicente é um dos maiores autores da literatura portuguesa, dentro do cânone literário estabelecido (cf. ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1985), e, igualmente, um dos maiores da literatura mundial com grande quantidade de peças de alta qualidade e de característica genialidade (MOISÉS, 1995). Tratou de vários temas, ilustrou muitos falares e representou uma sociedade em transição: a sociedade portuguesa nos fins do feudalismo e ascensão do capitalismo.

Como tal, enquadra-se, ao mesmo tempo, no humanismo literário e no movimento humanista europeu, isto é, o grupo de intelectuais e literatos que, a partir do século XIII, passaram a ter por tema central de suas produções o homem em todas as suas características, pensamentos, ações, emoções e contradições (cf. ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1985; MOISÉS, 1995; SARAIVA, 1999; SEVCENKO, 1988).

Tomando por base a afirmação de Massaud Moisés de que um “[…] autor, embora se oculte mais que possa, sempre conduz as personagens, não como espectros ou marionetes (o que pode acontecer deliberadamente), mas como representações de que se vale para comunicar o seu modo de ver o mundo.” (MOISÉS, 2012, p. 252), é preciso, por esse viés, buscar examinar e entender o seu contexto histórico e social, quais valorações (VOLOCHÍNOV, 2013) explícitas e implícitas existiam em seu meio e de que forma este sujeito que é o autor tratou e comunicou, através de suas criações, a sua existência e a influência que sofreu por isso tudo.

Desta forma, este artigo tratará da representação feminina n’A farsa de Inês Pereira (VICENTE, [s.d.]) segundo a hipótese de que nela se delineia uma dicotomia entre passado e presente (ou modernidade), sendo cada um dos tempos representado pelas diferentes valorações e ideias vocalizadas pelas personagens. Inês Pereira, a protagonista, representando os valores da modernidade quinhentista ascendente e sua Mãe e Lianor os valores da tradição medieval quatrocentista decadente.

2. O teatro de Gil Vicente

O marco para a estreia do teatro vicentino é o ano de 1502, data da sua primeira representação na corte (com o Auto da Visitação), na ocasião do nascimento do Rei D. João III, a pedido de D. Leonor.

O teatro vicentino a que temos acesso constitui-se de 46 peças, sendo “[…] uma em castelhano, 16 bilíngues e as restantes em língua portuguesa.” (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1985, p. 26). A última representação ocorre em 1536 com a encenação da Floresta dos Enganos, sendo esta, também, o último registro que se tem da vida do escritor dramaturgo.

O autor foi influenciado pelas encenações que ocorriam em Portugal ainda sem unidades textuais e, portanto, não podendo serem chamadas de teatro, como os milagres, os mistérios, as farsas, os sotties, e os momos (REDE MUNICIPAL DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS DO CONCELHO DE PALMELA, 2010) e pelas representações pastoris de Juan del Encina (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1985). Essas influências mostram-se nas obras metafísicas que o dramaturgo produziu e em seus autos pastoris (como o auto supracitado).

O teatro de Gil Vicente é caracterizado por seu foco no ser-humano, apresentando-o em suas diversas facetas através de tipos e estereótipos sociais encontrados por Gil Vicente (MOISÉS, 1995) através da observação da sociedade em que vivia. Esses tipos são caracterizados parodicamente (cf. SARAIVA, 1999), em grande quantidade de suas obras, em todas as suas particularidades e maneirismos. O retrato realiza-se nas variedades linguísticas dos personagens (REDE MUNICIPAL DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS DO CONCELHO DE PALMELA, 2010), suas formas de agir e seus valores: “Para arquitetar o melhor de seu teatro, dramaticamente falando, precisou debruçar-se na paisagem humana de seu tempo, e analisá-la com impiedosa e causticante bonomia.” (MOISÉS, 1995, p. 44).

É preciso ressaltar que, no discurso vicentino, não há exceção de classe quanto à representação. Todos os tipos sociais de todos os estratos percebidos pelo compositor são retratados em suas peças, assumindo os papéis mais diversos, desde exemplos de danação até bons exemplos. Como pontuado por Moisés (1995, p. 44, grifo do autor):

Teatro de sátira social, não perdoa qualquer classe, povo, fidalguia ou clero. Obra de moralista, põe em prática o lema castigat ridendo mores (rindo, corrige os costumes), realizando o princípio de que a graça e o riso, provocados pelo cômico baseado no ridículo e na caricatura, exercem ação purificadora, educativa e purgadora de vícios e defeitos.

O humanismo cristão, do qual faz parte, é marcante, principalmente, em suas obras metafísicas, tal como a Trilogia das Barcas, em que “A crítica ao homem tem como função abrir sua consciência e reaproximá-lo de Deus.” (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1985, p. 28). Os frades vendedores de indulgências, os clérigos que se perdem em amores e desejos são alvos frequentes em suas obras. Vicente moraliza a estes e a todos os outros, orientando-os para uma conduta que considera positiva.

A moral cristã, os bons costumes, a valorização da via sacra e a contemplação de um mundo ideal são todas características que impregnam essas peças. A sua posição perante a expansão mercante e à acumulação de bens se traduz nos destinos que dá para o rico, o burguês, e para o pobre, humilde e explorado: “O paraíso é reservado ao simples e humilde, ao puro […]” (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1985, p. 28, grifo nosso). Isso é a reprodução clara do discurso clerical medieval, que é contra o lucro, as ideias de mobilidade e condena o acúmulo material.

Moralização é, em verdade, o principal traço da criação vicentina, ocorrendo através de falas de personagens, como n’ O auto da Barca do Inferno, em que o Diabo recrimina, através de seu discurso irônico, as condutas usurárias do sapateiro, a presunção e a vaidade do fidalgo, a devassidão do padre e da cafetina e a corrupção dos magistrados.

Os personagens e os tipos sociais utilizados para este papel moralizante são variados, podendo ser: anciões (ãs) – como no caso de A farsa de Inês Pereira em que a mãe representa esta voz tradicional, que diz como as moças devem portar-se –; parvos (pobres) – como no caso do Velho da horta em que o servo do velho demonstra desaprovação perante a conduta do seu senhor idoso –; figuras celestiais – como o anjo do Auto da Barca do Inferno que, embora tenha menos falas do que o Diabo, expressa também os valores a que Gil Vicente está ligado por sua formação moral-religiosa medieval e medievalista.

Vivendo num período de transição, Gil Vicente ocupa-se tematicamente com a degeneração humana, a derrocada dos costumes, a corrupção humana trazida por este novo modo de vida expansionista, pelos descobrimentos, o foco na vida material e um olhar antropocêntrico que exalta o homem em sua potencialidade e distinção em relação a Deus.

Contrastando o foco no homem como protagonista de sua produção literária com Deus como figura magnânima e central na vida deste homem retratado, e expressando as oposições entre alma e corpo, Gil Vicente consolida-se como literato de transição: 

Servindo de ponte de trânsito, traço de união, entre a Idade Média e a Renascença, fixou em suas peças o momento em que as duas formas de cultura se defrontavam, uma, para terminar (ou melhor, para diminuir seu influxo e domínio), a outra, para começar (MOISÉS, 1995, p. 43).

Estruturalmente Gil Vicente não se mostra um autor preocupado com a caracterização teatral de suas peças, sendo característica a sua maior preocupação com o texto em si e com a eficiência da comunicação das mensagens. Esse traço do teatro vicentino é reforçado pela ausência de didascálias em todas as suas peças, sendo mínima a presença dessas (ocorrendo apenas para indicar fatos essenciais para as cenas, tais quais a entrada e a saída de cada personagem, se há algum objeto o acompanhando e assim por diante).

Seu teatro foi feito para o entretenimento e encenação dentro da corte portuguesa. Por isso, há uma ausência de descrições dos cenários em suas peças, uma vez que, dadas as condições em que apresentava, também não havia grande espaço para adaptações ou criações deste teor. O cenário vicentino pode ser encarado como um cenário convencional, quando não ausente.

As peças se reproduzem, por vezes, nos mesmos ambientes, e, às vezes, exatamente da mesma forma, seguindo uma fórmula-procedimento. Estas características são muito evidentes na Trilogia das Barcas, em suas peças pastoris e na peça do Velho da Horta tendo funções, por vezes, educativas, pois, como já foi dito, Gil Vicente é um autor moralizador e seu objetivo é passar suas concepções de mundo para os que o assistem usando a repetição como recurso.

Formalmente, Gil Vicente apresenta as falas de seus personagens através da medida velha, os redondilhos maiores e menores, mesmo quando reproduz variantes linguísticas próprias do tipo social ao qual pertence o personagem em ação. É característica do humanista contraditório que o autor é o formalismo mas não focando a forma clássica idolatrada pelos seus pares da futura Itália e de outras nacionalidades.

A classificação da obra vicentina é bem ampla e bastante discutida por diversos autores (MOISÉS, 1995), tendo seu filho, Luis Vicente, inclusive, em sua Compilaçam de todaslas Obras de Gil Vicemte, proposto uma classificação para as obras do pai. Entretanto, o próprio Gil Vicente, para efeito distintivo, já dividiu sua obra (MOISÉS, 1995), segundo o critério temático, em comédias, farsas e moralidades.

3. A farsa de inês pereira

3.1 Visão Geral

A peça foi escrita e representada em 1523 na corte de Portugal, no Convento de Tomar, segundo o que consta no seu texto de apresentação. O argumento da peça é de que 

[…] duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube (VICENTE, [s.d.], p. 2, grifo do autor). 

Para apresentar o tema proposto, Gil Vicente concebeu uma peça sobre uma moça pobre que aspira melhorar de vida através de bom matrimônio. Renegando a primeira oferta recebida de um burguês por este não se encaixar em seus sonhos, casa-se inicialmente com um escudeiro, que a priva totalmente de sua liberdade, mesmo na sua ausência para guerrear contra muçulmanos (elemento interessante, por ilustrar a guerra santa entre religiões que naquele momento ainda ocorria). Ao receber a notícia da morte de seu primeiro marido, Inês não demora a procurar para fins de casamento o burguês que primeiramente se enamorou dela.

Casada com Pero (o burguês), o experimenta, procurando compreender se este a prenderá tal como o primeiro esposo. Ao ver que é homem submisso às suas vontades e desejos, Inês pede que este a carregue nas costas para ir à Igreja e encontrar-se com um antigo amante.

Do enredo, ainda fazem parte fatos menos diretamente ligados à trama principal, como o episódio de Lianor Vaz com o padre e a participação da Mãe que, apesar de tentar orientar a filha, tratar com Lianor e dar a casa em dote à Inês, não fazem parte do desenrolo da trajetória matrimonial de Inês.

A Farsa de Inês Pereira é uma peça característica do discurso de Gil Vicente, ao fazer crítica aberta à burguesia, às moças que desejam se ver livres dos afazeres de casa, aos padres pervertidos e aos cavaleiros fracos covardes, fujões das batalhas e mentirosos, que não levam uma vida “honrada”

Ainda é notório o discurso religioso, enquanto Inês não liga para posses. Pelo contrário, não se importa, como se verá, com as posses nem do primeiro e nem do segundo marido, mostrando-se mais interessada nas capacidades e talentos de cada um.

Há, entretanto, racionalismo veiculado na peça através da figura de Inês, que valoriza a logicidade, a eloquência e via artística como características determinantes do cônjuge ideal.

Como afirmado antes, Gil Vicente não se preocupa com muitas marcações de cena, não marcando tom de voz, detalhamento do cenário, posturas corporais ou quaisquer outros fatos e constituintes da face representativa da peça. Se vê, na obra, a maior preocupação do autor com o texto e com a mensagem veiculada.

3.2 As mulheres da Farsa

As figuras femininas que aparecem na peça são as três citadas anteriormente: Inês Pereira, a Mãe de Inês e Lianor Vaz. 

Inês Pereira é uma moça jovem, que se enxerga presa à realidade doméstica, à sua falta de posses materiais e anseia, através de bom casamento escolhido por ela, mudar tudo isso. A Mãe de Inês mostra-se senhora conservadora, tradicional, que defende a condição em que vive com a filha. Lianor Vaz, por sua vez, apresenta-se persona simples, de pouca ambição, esperançosa, fia-se nos mesmos pensares da Mãe de Inês.

As três figuras, dentro da história, relacionam-se dentro da dicotomia “passado e presente”. A mãe e Lianor representam o passado, sendo as portadoras das ideias que até aquele momento eram dominantes tanto em relação ao bem portar-se da mulher, quanto aos seus relacionamentos e funcionamento da sociedade.

A mãe, já desde o início, põe o ser e o agir feminino em prol e direcionado a um eventual casamento, de modo que a pouca proximidade ao trabalho demonstrada por Inês (chamada pela mãe de preguiçosa) não é negativo para a filha enquanto pessoa, mas sim enquanto mulher que, a mãe assume, intenciona casar e, portanto, submeter-se aos desejos e ações de um homem. E essa submissão feminina comportamental aos desejos e ações masculinas fica evidente uma vez que a Mãe não faz menção ao que pode desmotivar Inês ao casamento, mas apenas o que pode desmotivar ao possível interessado:

Mãe: Olha de ali o mau pesar…
Como queres tu casar
Com fama de preguiçosa? (VICENTE, [s.d.], p. 3).

Na fala materna fica ainda nítida a preocupação com a imagem social que Inês constrói para si através de seu lento trabalhar, a “fama de preguiçosa”, mesmo que esse fato inicial da peça desenrole-se no ambiente privado da casa delas. Isso sugere, à época, um já deslimite entre as esferas individual e coletiva, a ponto de até as ações desempenhadas em casa terem o poder de modificar a maneira como o sujeito (ou talvez especificamente a mulher) seria encarado em sua comunidade.

Ao que Inês responde que tem pressa para sair do cativeiro, sem mencionar o casamento, e que a Mãe é lenta em seu viver (ibid., p. 3). Esse discurso evidencia já o que é prioridade para a personagem: a liberdade de sair, sem considerar o compromisso conjugal como essencial para tal. Além da resposta à mãe, isto já consta no trecho anterior: “Todas folgam, e eu não, Todas vêm e todas vão Onde querem, senão eu” (ibid., p. 3). Interessante notar que em “Todas”, Inês abre mão (ou omite-se) de mencionar a condição conjugal para tal, sugerindo, portanto, inalienabilidade do que entende por liberdade de ir e vir para as mulheres. Opondo-se à Mãe, vê-se, destarte, arrojo e modernidade no discurso de Inês em comparação ao proferido pela Mãe.

Lianor, por sua vez, ao fim de seu relato sobre o padre violador, a primeira palavra que dirige à Mãe e à Inês é perguntando sobre o casamento (ibid., p. 6), o que aponta principalidade, para a personagem, deste tópico diante de quaisquer outros possíveis, sendo, portanto, fala acordante com a preocupação manifesta pela mãe de Inês. E mais: Lianor, em sua fala “Inês está consertada pera casar com alguém?” não cita, mais uma vez, atitude por parte de Inês, mas apenas ela como parte de um arranjo.

Inês, tornando a se opor aos discursos exortadores e passivistas da Mãe e Lianor, estabelece seus termos para se casar determinando que não casará senão com homem avisado, sabido, discreto em falar (ainda que pobre) (ibid., p. 6). Conforme a Mãe (ibid., p. 7), Inês é figura que sabe “latim e gramática e tudo quanto ela quer!”. Esta sequência aponta não apenas que Inês procura tomar posse de seu próprio destino mas também procura alguém cujas características e valores aproximem-se dos dela.

A partir disso, pode-se afirmar que Inês (modernidade) polariza com a Mãe e Lianor (passado). Essas insistindo em postura passiva perante o casamento, prezando a conformidade com a realidade. 

Lianor Vaz, por exemplo, tratando da temática do casamento, orienta Inês a não escolher muito, aceitar o que a vida lhe traz, apoiando uma postura diante da vida que se contrapõe totalmente a proatividade pregada pela nova ideologia burguesa-mercantil:

Lianor: Não queirais ser tão senhora.
Casa, filha que te preste,
Não percas a ocasião.
Queres casar a prazer
No tempo d’agora, Inês?
Antes casa, em que te pês,
Que não é tempo d’escolher.
Sempre eu ouvi dizer:
“Ou seja sapo ou sapinho,
Ou marido ou maridinho,
Tenha o que houver mister.”
Este é o certo caminho (VICENTE, [s.d.], p. 8).

A protagonista, por outro lado, insiste em atitude deliberada perante os fatos, escolhendo ações e consequências, sugerindo, inclusive, certo desgarramento das convenções e proibições (como patente fica pelos trechos analisados).

Inês representa o presente de Gil Vicente, as mudanças, a euforia e a racionalidade, através de um discurso marcado por exclamações e atitudes baseadas em sonhos de crescimento, liberdade e comodidade, semelhante ao discurso expansionista vigente na época em que a peça foi representada. 

A inconformidade que demonstra com os papéis designados a ela, igualmente, possui ecos no discurso quinhentista das reformulações sociais, ainda que a discussão sobre os problemas de gênero não fosse tão profícua e/ou incipiente à época

Como afirma Caldas (2005), Inês é uma “[…] protagonista que se rebela, renitente, contra o destino que lhe é oferecido […] representa a fala destoante, pois nega os lugares-comuns, inclusive por meio de uma linguagem que defende a mudança.” O trecho a seguir ilustra o essa caracterização da personagem:

Inês: Renego deste lavrar
E do primeiro que o usou;
Ó diabo que o eu dou,
Que tão mau é d’aturar.
Oh Jesus! Que enfadamento,
E que raiva, e que tormento,
Que cegueira, e que canseira!
Eu hei de buscar maneira
D’algum outro aviamento.
Coitada, assi hei de estar
Encerrada nesta casa
Como panela sem asa,
Que sempre está num lugar?
E assi hãio-de ser logrados
Dous dias amargurados que eu possa durar viva?
E assi hei de estar cativa
Em poder de desfiados? (VICENTE, [s.d.], p. 2).

Inês, na peça, casa-se duas vezes, primeiro com o cavalo que a derruba (o Escudeiro), depois com o burro que a carrega (Pero Vaz).

O Escudeiro, desde o princípio, segundo suas falas, constrói-se em duas facetas: uma privada, reservada somente para seu criado e para Inês (após o casamento); uma pública, esta apresentada para Inês (antes do casamento), Mãe e Lianor.

Para seu criado, revela-se como é: privador das liberdades femininas, ligado às aparências, mentiroso e grosseiro:

Escudeiro: Eu, assi como chegar
Cumpre-me bem atentar
Se é garrida, se honesta,
Porque o melhor da festa
É achar siso e calar.
[…]
E, se cuspir, pela ventura,
Põe-lhe o pé e faz mesura.
[…]
E se me vires mentir
Gabando-se de privado,
Está tu dissimulado […] (VICENTE, [s.d.], p. 16).

Para seu criado, mostra-se também avarento, conforme denuncia o criado, que diz o Escudeiro não o paga e que por isso não é capaz de comprar sola para seu calçado (ibid., p. 16).

No mesmo momento em que o Escudeiro posiciona-se exigentemente em relação a uma futura esposa quieta e sisuda, a Mãe de Inês a orienta neste exato sentido, apesar de este já ter sido negado por Inês em diálogos anteriores:

Mãe: Se este escudeiro há-de vir
E é homem de discrição,
Hás-te de pôr em feição,
De falar pouco e não rir
E mais, Inês, não muito olhar
E muito chão o menear
Por que te julguem por muda,
Porque a moça sisuda
É uma perla pera amar. (VICENTE, [s.d.], p. 16)

Este paralelismo de posicionamentos entre Mãe e Escudeiro concretiza e evidencia a contradição existente no pretendente de Inês, próximo, de um lado, do que é valorizado pela protagonista, e distante, do outro.

Já para Inês (antes do casamento), o Escudeiro mostra-se culto, eloquente, artista e projeta-se como nobre cavaleiro, atendendo aos anseios de Inês apontados acima, conseguindo, portanto, acoplar seus próprios valores aparentes aos valores transparentes daquela. A escolha, vê-se, não é fortuita: ambos aproximam-se do ideal racionalista, artístico e aventureiro elaborado no contexto renascentista ora emergente. 

O desacordo entre eles só se dá a partir do ponto em que o Escudeiro mostra sua face privada medievalista, na qual a relação de submissão-dominação ocupa lugar privilegiado e regedor das ações, principalmente conjugais.

Pero Marques, em seu turno, é rejeitado da primeira vez, apesar de sua fortuna, exatamente, conforme Inês manifesta, por sua parvoíce, desalinhada e desacordada com os critérios ditados pela protagonista para seu parceiro ideal.

Sendo Pero um representante da classe burguesa comerciante em ascensão na virada dos séculos XV e XVI, sugere-se, portanto, recusa parcial, por parte de Inês, aos exatos motrizes das mudanças em que sustenta seu agir perante a vida.

Da segunda vez, Pero é aceito sob a condição da mais plena submissão aos caprichos e ações de Inês, além de sua abastança, sujeitando-se, pois, a curiosa inversão de papéis, dentro da lógica ditada pela Mãe, por Lianor e pelo Escudeiro: a mulher, inicialmente submissa, passa a posição dominante e direcionadora; o homem, inicialmente dominante, passa a mero instrumento passivo perante as realizações dos desejos da esposa.

Coerentemente às suas ideias, em ambas situações, a Mãe e Lianor colocam-se a favor do casório. Para Pero, exatamente por sua condição abastada e dócil. Para o Escudeiro, precisamente por atender, ao menos em primeiro momento, às expectativas de Inês. Essas posições somente reforçam a atitude conformista (e talvez imediatista) das personagens frente ao que parece ser o fim último em suas vidas: o casamento.

Por fim, é importante lembrar, cabe à Mãe, principalmente, e Lianor o papel vaticinador legitimado, dando conselhos à Inês sobre o modo de viver e, já na situação com Pero, prevendo o sucesso da relação entre ambos, papel ilustrado nos trechos citados.

5. Considerações finais

Considerando os fatos acerca das suas construções, principalmente no teor de seu conteúdo, Gil Vicente sagra-se como autor-educador, posto que, acima de tudo, procura veicular pensamentos e visões de mundo através de seus textos, focando neles, na sua expressão, a maior parte de suas forças.

Analisar e pensar o autor dentro do movimento humanista, como parte do Humanismo literário português e inserido no Renascimento, influenciado por todos os fatos históricos que o precederam e lhe foram contemporâneos é situá-lo em seu lugar histórico, geográfico, social e ideológico. Ponto de vista este que expande as notórias características e permite novas visões acerca de sua obra.

A farsa de Inês Pereira, parte da produção teatral vicentina, passa pelo mesmo, ganhando mais camadas e densidade, ao permitir ver, dentro de si, o embate entre formas de viver (liberdade e imobilidade), o embate entre classes sociais representadas de modo caricatural e irônico próprio do discurso de seu criador (o burguês parvo e o “nobre” escudeiro covarde) (CALDAS, 2005), a coexistência e atrito entre valores distintos, bem como tempos diferentes representados nas personagens. 

A técnica de representação e figuração do tempo através de vozes e figuras humanas não é nova, sendo usada em obras anteriores à Gil Vicente, por autores de outras nacionalidades, e também em obras posteriores como n’Os Lusíadas em que o episódio do Velho do Restelo e seu personagem mostram, tal qual em Inês Pereira¸ os valores conservadores e reacionários, de uma época desvanecente, às mudanças que se seguem.

Inês pode ser sintetizada na representação da pessoa, da mulher, subversiva, revolucionária quebradora de paradigmas, insubmissa e ativa. Uma mulher que adapta os valores humanistas falocêntricos para a vida da mulher pobre. Esta é a voz daquilo que Gil Vicente repudia.

Sua mãe e Lianor, por suas vezes, podem ser sintetizadas na representação da mulher submissa, ideal no agir e pensar, racional, mas não racionalista, símbolos da ideologia medieval, agem em prol do medievalismo de seu criador. Estas são as vozes dos valores a que Gil Vicente preza.

As personagens femininas e masculinas n’A farsa de Inês Pereira são representações e críticas aos tipos a que pertencem. Note-se que são representações e críticas, mas não representações críticas, uma vez que seu propósito primeiro é representar e, em seguida, no decorrer da peça, travestirem-se em caricaturas e ironias, ganhando tezes críticas.

Por fim, diga-se, esta análise não esgota a obra investigada. A representação feminina na peça é apenas uma de suas dimensões e camadas. Futuramente, pode-se, ainda, estudar a Farsa vicentina em outros aspectos, exemplo de possível investigação é a construção das personagens masculinas e as oposições existentes entre elas, e como a peça interage com outras semelhantes, como O Velho da horta.

Referências

ABDALA JÚNIOR, Benjamim; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da Literatura Portuguesa. 2. ed. São Paulo: Ática, 1985.

CALDAS, Tatiana Alves Soares. A farsa de Inês Pereira: a figura feminina num mundo em transição. Cadernos do CNLF, [s. l.], v. 9, n. 8, 2005. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ixcnlf/8/index.htm. Acesso em: 5 out. 2020.

CAMÕES, Luís Vaz de. Canto IV. In: CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. 4. ed. Lisboa: Instituto Camões, 2000. Canto IV, p. 167-213. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/conhecer/biblioteca-digital-camoes/literatura-1.html?limit=20&limitstart=60. Acesso em: 20 nov. 2017.

MOISÉS, Massaud. A análise literária. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 28. ed.  São Paulo: Cultrix, 1995. 

REDE MUNICIPAL DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS DO CONCELHO DE PALMELA. TEATRO: Dossiê temático dirigido às Escolas. [S. l.]: REDE MUNICIPAL DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS DO CONCELHO DE PALMELA, 2010.
Disponível em: https://docplayer.com.br/68087470-Rede-municipal-de-bibliotecas-publicas-do-concelho-de-palmela-teatro-dossier-tematico-dirigido-as-escolas-novembro-71.html. Acesso em: 24 novembro. 2017.

SARAIVA, Antônio José. Iniciação à literatura portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 

SEVCENKO, Nicolau. O renascimento. 6. ed. São Paulo: Atual; Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. 

VICENTE, Gil. Auto da barca do Inferno. 3. ed. São Paulo: SOL, 1996. 

VICENTE, Gil. Farsa de Inês Pereira. Belém: Universidade da Amazônia, [s.d.]. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua00115a.pdf. Acesso em: 1 nov. 2017.

VICENTE, Gil. O Velho da horta. 16. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Disponível em: http://lelivros.love/book/download-o-velho-da-horta-gil-vicente-em-epub-mobi-e-pdf/. Acesso em: 29 nov. 2017.

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